Programação

  • AULA 1 - 18.02 - Apresentação – O que é filosofia?

    Primeira aula.

    Apresentação do curso.

    Texto: trechos da aula II de O que é filosofia? de José Ortega y Gasset.

  • AULA 2 e 3 - 03 e 10.03 - As origens da filosofia

    o   JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 2-20.

    o   RAMOSE, Mogobe. “Sobre a legitimidade e o estudo da Filosofia Africana”. In: Ensaios filosóficos, v. 4, p. 6-23, 2011.


  • EXTRA - AULA 2

    Pessoal,

    Deixo aqui alguns links, inclusive o que nos ensina a pronunciar o nome do autor, para continuarmos nossos debates sobre o texto do Jaeger.

  • AULA 4 - 17.03 - Podemos filosofar sobre educação?

    Bom dia, pessoal.


    Espero que estejam bem.
    Encaminho a mensagem da direção da FEUSP a respeito da suspensão das aulas. Compartilho também o link em que vocês podem acompanhar todas as informações sobre os procedimentos da USP no que concerne à situação da epidemia do Covid-19: https://coronavirus.usp.br/ .

    Neste momento, façam a leitura dos textos do Olivier Reboul e do Walter Kohan e tomem notas sobre possíveis respostas para a pergunta "O que é educação?". Em breve escrevo novas orientações para outras atividades que possamos realizar nas condições em que nos encontramos.

    Força, cuidado e bom trabalho!
    Juliana

    ---------- Forwarded message ---------
    De: fe USP <fe@usp.br>
    Date: seg., 16 de mar. de 2020 às 10:01
    Subject: [Comunica-docentesfe] Fwd: Orientações para esta semana
    To: comunicado-docentesfe <comunicado-docentesfe@listas.usp.br>


    Prezados/as docentes

    Conforme mensagem encaminhada pela reitoria ontem à noite, as atividades de ensino e extensão estão suspensas a partir de amanhã. As presidências das comissões estatutárias, as coordenações de cursos e as chefias dos departamentos reunir-se-ão com a direção para avaliar o quadro e planejar procedimentos comuns. Pedimos a cada docente que transmita essa informação às suas turmas com o intuito de tranquilizar os/as estudantes e aguarde o envio de novas orientações. As sugestões são bem-vindas.

    Atenciosamente,
    A Direção



    o   REBOUL, Olivier. Filosofia da Educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1988, p. 7-25.

    o   KOHAN, Walter Omar. “O ensino da filosofia frente à educação como educação”. In: GALLO, Sílvio; CORNELLI, Gabriele; DANELON, Márcio. Filosofia do ensino de filosofia. Petrópolis, RJ: Vozes, v. 7, 2003.


  • AULA 5 - 24.03 - Conceitos de Educação – Educação, experiência e imaginação

    Pessoal,

    Espero que estejam bem.

    Abaixo, deixo alguns comentários, esboço esquemas destacando pontos importantes e coloco questões sobre o capítulo 1 de Imaginação e Criatividade na Infância. Ensaio de Psicologia (1930) de Lev Vygostky e sobre o texto “A Pedagogia de Dewey” de Anísio Teixeira. 

    Como retomada dos assuntos da semana passada e ponto de partida para os temas desta semana, destaco três questões para darmos início à reflexão:

    - O que é educação?

    - Como desvincular a filosofia de propósitos exteriores a um movimento próprio do filosofar e deixá-la transbordar outros campos do conhecimento e atividades humanas?

    - Como um enfoque filosófico, considerando o movimento criador da filosofia, pode contribuir para a elaboração de noções de educação para além de uma pedagogia formativa?

     

    AULA 5 - Conceitos de Educação – Educação, experiência e imaginação

    Lev Vygotsky (1896-1934), psicólogo russo

    Alguns interesses do autor: psicologia da arte, estética teatral e educação estética

    Texto que estamos estudando: capítulo 1 de Imaginação e criatividade na Infância, livro sobre psicologia da imaginação criativa, publicado em 1930.

    Um ponto de partida na reflexão de Vygotsky: imaginação e criatividade estão em qualquer um dos âmbitos da vida.

     

    Conceitos importantes para esta leitura: imaginação e criatividade

     

    IMAGINAÇÃO

    As primeiras experiências do sujeito com o outro fundam a primeira ligação entre imaginação e realidade.

    Impulso real da criatividade.


    CRIATIVIDADE

    Ato criativo: qualquer ato humano que dá origem a algo novo.

    Desde a primeira infância: criatividade como condição necessária para a existência.

     

    Comportamento humano:

    1.      Atividade reprodutiva/reprodutora

     

    associada à memória

     

    - reproduz ou repete “modos de comportamento já anteriormente elaborados e produzidos”.

    Exemplo: aprendi um idioma e hoje, ao escrever nesse idioma, reproduzo ou repito modelos, regras assimiladas e elaboradas naquela aprendizagem.

     

    - ressuscita “traços de impressões anteriores” (experiências do passado)

    Exemplo: posso lembrar de detalhes de lugares onde estive.

     

    Importância da conservação da experiência anterior

     

    Para que o sujeito se relacione com o mundo: seus hábitos são criados e elaborados a partir da memória de suas experiências anteriores em condições análogas às quais se encontram. Essa adaptação, a partir de uma repetição simplificada de impressões conservadas de ações suficientemente fortes ou ações repetidas com bastante frequência, é possível devido à plasticidade da nossa substância nervosa, que além de alterar-se, conserva os vestígios dessa alteração.

     

    MAS as condições do meio exterior se transformam. Como se dá então a adaptação do ser humano a situações nas quais ele não identifica elementos de suas experiências passadas?

     

    2.      Atividade criadora/combinatória

     

    associada à imaginação (fundamento de toda atividade criadora)

     

    - para além da reprodução e da repetição: criação de novas imagens e ações a partir dos elementos das experiências ou impressões vividas.

     

    - possibilidade de modificar o presente / essência do ser humano: orientada para o futuro.

     

    Vale notar: se qualquer ato humano que dá origem a algo novo é um ato criativo, é errôneo não reconhecermos e não admitirmos a criatividade daqueles que não criaram grandes obras artísticas ou não realizaram grandes descobertas científicas.

    Daí pensarmos na criatividade coletiva:

    “Se tomarmos em atenção a existência da criatividade coletiva, que reúne todos estes contributos por si só insignificantes da criatividade individual, compreende-se melhor como grande parte de tudo o que foi criado pela humanidade pertence precisamente ao trabalho criativo e coletivo anônimo de inventores desconhecidos.” (VYGOTSKY, 2012, p. 26)

     

     

    Outras questões para a nossa reflexão:

     

    No que as bases da proposta de uma pedagogia da imaginação criativa de Vygotsky – as noções de imaginação e criatividade, e a compreensão da criatividade como condição para a existência – podem contribuir para a sua formação? E ainda, em tempos de crise de COVID-19, em que medida a partir de uma atividade criadora e combinatória, própria do humano, que nos permite modificar o presente e despertar nossa essência, orientada para o futuro, podemos vislumbrar possibilidades de práticas de educação quando a crise passar? As respostas para esta pergunta podem levar meses para serem construídas.

     

     

    Anísio Teixeira (1900 – 1971), educador e filósofo brasileiro

    Documentário Anísio Teixeira: educação não é privilégio:

     

    John Dewey (1859 – 1952), filósofo estado-unidense

    Dois grandes interesses do autor: problemas da educação e ensino público nos Estados Unidos.

    A partir da convicção “Democracia é liberdade.”, para a qual busca uma argumentação filosófica, Dewey visa integrar teoria e prática na educação.

    Base teórica: funcionalismo – fundado pelo filósofo e psicólogo estado-unidense William James (1842 – 1910). Em linhas gerais, o funcionalismo volta-se ao pragmatismo, foca na relação entre o sujeito e o meio ambiente, passando da pergunta “o que é a consciência?” para “para que é a consciência?”.

    Na Universidade de Chicago, Dewey cria uma “escola experimental”

    Mais sobre John Dewey:

     

    Do lugar da criança na educação

    Dewey recusa tanto teorias tradicionalistas que acusam métodos cujo foco é a criança de suprimir a autoridade dos adultos, e que pretendem impor ao educando conhecimentos sem instruí-lo a respeito dos métodos de investigação experimental, como os românticos que tomam as faculdades e interesses do aluno como importantes em si, e cujas teorias focam única e exclusivamente na criança.


    Da escola

    A proposta de Dewey é organizar a escola como cooperativa de modo a fomentar o espírito social das crianças e desenvolver seu espírito democrático. Nesse contexto, no entorno social escolar, a ser criado pelos professores, as crianças lidam com situações problemáticas a serem resolvidas por meio de conhecimentos teóricos e práticos da esfera científica, históricos e artísticos, e assumem responsabilidades de uma vida moral democrática. O filósofo tinha como proposta transformar as escolas do país em instrumentos da democratização radical da sociedade estado-unidense. Para ele, ao conceber a filosofia como uma ciência experimental, toma como ponto de partida a construção de uma escola.

     

    Sobre “A pedagogia de Dewey (Esboço da teoria de educação de John Dewey)” de Anísio Teixeira

     

    Em Vygotsky, a relação com o outro aparece como fundadora da ligação entre imaginação e realidade. E em Dewey, na leitura de Teixeira, a relação com o outro, e também com o mundo, é fundamental na vivência da experiência:

    “Pode-se mesmo dizer que tudo existe em função dessas relações mútuas, pelas quais os corpos agem uns sobre os outros, modificando-se reciprocamente.

    Esse agir sobre o outro corpo e sofrer de outro corpo uma relação é, em seus próprios termos, o que chamamos de experiência. Nosso conceito de experiência, longe, pois, de ser atributo puramente humano, alarga-se à atividade permanente de todos os corpos, uns com os outros.” (TEIXEIRA, 1980, p. 113)

     

    “Experiência é uma fase da natureza, é uma forma de interação, pela qual os dois elementos que nela entram – situação e agente – são modificados.” (TEIXEIRA, 1980, p. 113)

     

     

    Teixeira descreve três tipos de experiência:

     

    1.             experiências que apenas temos: não chegamos a conhecer seu objeto e às vezes não sabemos que as temos;

     

    2.             experiências refletidas: chegamos a conhecê-las e até mesmo a processos de análise e à indagação de sua própria realidade;

     

    3.             para além da experiência: “vagos anseios do homem por qualquer coisa que ele não sabe o que seja, mas que pressente e adivinha.” – desdobramentos de falhas, contradições e dificuldades ou de outras manifestações nas experiências.

     

    As experiências refletidas e os desdobramentos que ultrapassam a própria experiência, pela linguagem e pela comunicação formam a experiência humana.


     

    Da relação entre experiência e aprendizagem


    “Ora, se a vida não é mais que um tecido de experiências de toda sorte, se não podemos viver sem estar constantemente sofrendo e fazendo experiências, é que a vida é toda ela uma longa aprendizagem. Vida, experiência, aprendizagem – não se podem separar. Simultaneamente vivemos, experimentamos e aprendemos.” (TEIXEIRA, 1980, p. 115)

     

    E se a aprendizagem é intrínseca à experiência vivida: a educação é definida como “fenômeno direto da vida, tão inelutável como a própria vida”. (TEIXEIRA, 1980, p. 116)

     

    Na leitura do texto de Olivier Reboul sobre a educação, que vimos na semana passada, nos deparamos com a indagação: “mas também o adulto não tem que educar-se, incessantemente, seja, embora, apenas pela experiência da vida?” (REBOUL, 1988, p. 7) Podemos tomar como possível resposta, a passagem em que Teixeira, enfatizando o lugar natural que a educação tem na vida humana para Dewey, independente de processos de preparação específicos a certos períodos da vida, articula vida e educação:

     

    “Enquanto vivo, eu não me estou, agora, preparando para viver e daqui a pouco, vivendo. Do mesmo modo eu não me estou em um momento preparando para educar-me e, em outro, obtendo o resultado dessa educação. Eu me educo através de minhas experiências vividas inteligentemente. Existe, sem dúvida, certo discurso de tempo em cada experiência, mas assim as primeiras fases como as últimas do processo educativo, tem todas igual importância, e todas colaboram para que eu me instrua e me eduque  - instrução e educação que não são os resultados externos da experiência reconstruída e reorganizada mentalmente no curso de sua elaboração.” (TEIXEIRA, 1980, p. 116)

     

    Mas se em alguma medida educação, experiência e vida coincidem, para que serviriam as escolas?

     

    Teixeira identifica a escola proposta por Dewey como “mecanismo especializado e sistemático, para fornecer aquilo que a vida, diretamente, não pode ministrar.” (TEIXEIRA, 1980, p. 119) E alerta para o risco de esta escola obrigar a criança a deveres insípidos e contraproducentes e tornar-se um fim em si mesma.

    Mas mesmo na escola, a experiência é elemento fundamental na orientação da criança a apreender o sentido que as coisas tem para os outros. A experiência com o uso do objeto cadeira, por exemplo, contribui para a criança, em seguida, aprender a palavra cadeira e compreender que essa palavra representa o que significa suas experiências com a cadeira. “A experiência é ampliada por um processo de reconstrução imaginativa. As novas coisas aprendidas estão ligadas às primeiras experiências reais.” (TEIXEIRA, 1980, p. 121) Retomamos então a importância da imaginação, que vimos em Vygotsky, para a aprendizagem.

     

    E não podemos esquecer que a aprendizagem não está desprendida de um meio social. Teixeira pontua que Dewey compreende o indivíduo como ser social e, consequentemente, a intersubjetividade também é crucial no ambiente escolar. A proposta de Dewey se apóia na noção de educação como participação, na realização de atividades com outras pessoas que compartilhem os mesmos sentido e finalidade para tal atividade.

    Reforço então o peso da relação com o outro e da vida quando refletimos sobre educação, seja pela noção de imaginação em Vygotsky, fundada pela experiência com o outro, ou pelo conceito de experiência em Dewey, a partir do qual surge uma proposta de educação de um indivíduo concebido como um ser social.

    E destaco a criatividade, que nos orienta para o futuro a partir dos elementos de impressões e experiências passadas em Vygotsky, e o processo de reconstrução imaginativa na aprendizagem em Dewey, que evoca as primeiras experiências reais.  

    Intersubjetividade, imaginação, criatividade, experiência, vida, sociedade e passado são os elementos que deixo para vocês prosseguirem com suas investigações filosóficas acerca da educação.


    Referências bibliográficas

    o   VYGOTSKY, Lev Semenovitch. Imaginação e Criatividade na Infância. Ensaio de Psicologia. Tradução, introdução e notas de João Pedro Fróis. Lisboa: Dinalivros, 2012, p. 21-28.

    o   TEIXEIRA, Anísio. “A Pedagogia de Dewey (Esboço da teoria da educação de John Dewey)”, IN: DEWEY, John. Vida e Educação. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Col. “Os Pensadores”).

     

    Há um fórum aberto para esta “aula” para que vocês possam conversar sobre os temas dos textos.

    Na semana que vem trabalharemos com as páginas 25-36 e 51-63 do livro Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade da filósofa bell hooks.

    Sigo em contato com vocês pelo e-mail julianaoliva@usp.br.

    Abraços e força!

    Juliana


  • AULA 6 - 31.03 - Conceitos de Educação – Pedagogia crítica e transgressão

    AULA 6 - 31.03 - Conceitos de Educação – Pedagogia crítica e transgressão

     

    Olá, pessoal.

    Espero que estejam bem e que as leituras e reflexões estejam sendo, dentro do possível, proveitosas. Para quem não tem conseguido acompanhar os textos e os meus e-mails, sem problemas, cuide primeiro da sua saúde, das necessidades e urgências que podem atravessar a vida e das pessoas que estão precisando de você.

    Hoje envio considerações sobre os capítulos 1 e 3 de Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade de bell hooks e comentários complementares, além do vídeo do AFROLITERATO e da entrevista sugerida por nossa colega Maria.

     

    bell hooks (EUA, 1952 - )

    filósofa e educadora

     

    O pais de hooks lhe deram o nome Gloria Jean Watkins; “bell hooks” é o pseudônimo adotado por Gloria em homenagem à sua avó Bell Blair Hooks. A grafia em letras minúsculas é proposital, para dar mais ênfase ao seu trabalho do que ao seu nome.

    Sugiro que vocês assistam este vídeo, do AFROLITERATO, com comentários de João Raphael Ramos dos Santos sobre a trajetória de hooks e o livro que estamos estudando:

     

    Introdução

     

    Desde a infância, bell hooks desejava escrever, o que para ela não significava desejar ser professora. Quando o Departamento de Inglês do Oberlin College decide efetivá-la como professora, relata hooks, seu sonho era fugir, desaparecer, morrer. “O sonho não era uma reação ao medo de eu não conseguir a estabilidade no cargo. Era uma reação à realidade de que eu ia conseguir a estabilidade. Eu tinha medo de ficar presa na academia para sempre.” (HOOKS, 2013, p. 9)

     

    Contexto histórico

    Ensinando a transgredir é publicado em 1994, mas compila textos sobre diferentes momentos da vida de hooks. A autora nasce em 1952, portanto consideremos as décadas de 50 e 60 o período de sua infância e juventude, marcado pelo apartheid, pela segregação racial nos Estados Unidos. Ela relata que às meninas negras de classe trabalhadora do Sul havia três caminhos possíveis: o casamento; trabalhar como empregada; tornar-se professora. Nesse contexto, hooks via-se destinada, desde o ensino fundamental, a tornar-se professora, ainda que continuasse a sonhar em ser escritora.

    Para hooks, escrever seria o trabalho sério, associado a um anseio particular e à glória pessoal, e lecionar, o emprego, como retribuição à comunidade. É importante destacar o que significa essa retribuição: “Para os negros, o lecionar – o educar – era fundamentalmente político, pois tinha raízes na luta antirracista. Com efeito, foi nas escolas de ensino fundamental, frequentadas somente por negros, que eu tive a experiência do aprendizado como revolução.” (HOOKS, 2013, p. 10)

    Nas práticas educadoras de suas professoras, hooks conheceu “uma pedagogia revolucionária de resistência, uma pedagogia profundamente anticolonial”, ainda que aquelas professoras não definissem ou formulassem suas práticas em termos teóricos. (HOOKS, 2013, p. 10-11) A proximidade que tinham as professoras de hooks com suas turmas, o que as permitia conhecerem os alunos (pelos pais, pela condição econômica da família, pela igreja que frequentavam etc) é crucial para a formação da filósofa, atitude que ela levará para sua própria teoria e prática educacional.

     

    Educação para reforçar dominação

    Em tempos do que se chamou integração racial nas escolas estadounidenses, a permissão de crianças negras nas escolas frequentadas por crianças brancas reforçou uma educação racista e privou alunos negros de uma educação libertária, a começar pelo deslocamento enfrentado para estudar – as crianças negras passam a acordar 1 hora mais cedo para tomarem o ônibus que as leva até a escola.

    Desse processo de “integração racial”, hooks destaca alguns problemas das escolas dessegregadas:

    - Conhecimento se resume a pura informação;

    - Não há vínculo com a luta antirracista;

    - Espera-se que negros aprendam a obediência;

    - As aulas reforçam estereótipos racistas;

    - Os alunos negros acabam tendo que reagir e responder aos brancos o tempo todo;

    - A escola é um ambiente político, mas um ambiente político racista.

     

    Ambiente universitário

    Na faculdade, hooks se decepciona com a falta de entusiasmo dos professores para ensinar, e percebe que o aprendizado da obediência à autoridade é reforçado na universidade. Assim, na pós-graduação, sua vontade de tornar-se uma pensadora crítica era vista como ameaça à autoridade; hooks relata: “Os alunos brancos (homens) considerados ‘excepcionais’ frequentemente tinham permissão para traçar por si mesmos o curso de sua jornada intelectual, mas dos outros (e particularmente dos grupos marginais) só se esperava que se conformassem.” (HOOKS, 2013, p. 14)

     

    Hoje, conhecemos as universidades dessegregadas. Mas se analisarmos as estruturas excludentes de nossa sociedade, podemos identificar inúmeros obstáculos segregantes no que diz respeito a raça, classe e gênero no percurso até a universidade. Em tempos de crise como a do COVID-19, aspectos segregantes como estes podem ser ainda mais acentuados, além de outros fatores que podem nos atravessar negativamente durante esse período. E, se esses obstáculos e os impedimentos se fazem tão presentes no dia a dia numa sala de aula, no contato acadêmico a distância se desdobram em outras dificuldades. Assim, será preciso criatividade para quando retornarmos aos encontros presenciais, seja em nosso curso, ou, vocês, nas instituições em que ministram aulas, elaborarmos os passos seguintes para que todas e todos caminhem juntos nessa recuperação. É importante pensarmos nisso.

     

    Chaves para entender o pensamento de hooks:  

    ·         Paulo Freire:

    “Com os ensinamentos dele [de Paulo Freire] e minha crescente compreensão de como a educação que eu recebera nas escolas exclusivamente negras do Sul havia me fortalecido, comecei a desenvolver um modelo para minha prática pedagógica. Já profundamente engajada no pensamento feminista, não tive dificuldade em aplicar essa crítica à obra de Freire. Significativamente, eu sentia que esse mentor e guia, que eu nunca vira pessoalmente, estimularia e apoiaria minha contestação às suas ideias se fosse realmente comprometido com a educação como prática da liberdade. Ao mesmo tempo, eu usava seus paradigmas pedagógicos para criticar as limitações das salas de aula feministas.” (HOOKS, 2013, p. 15)

    E no primeiro capítulo de Ensinando a transgredir, lemos:

    “Quando conheci a obra de Paulo Freire, fiquei ansiosa para saber se seu estilo de ensino incorporava as práticas pedagógicas que ele descrevia com tanta eloqüência em sua obra. No curto período em que estudei com ele, fui profundamente tocada por sua presença, pelo modo com que sua maneira de ensinar exemplificava sua teoria pedagógica. (Nem todos os estudantes interessados em Freire tiveram a mesma experiência.) Minha experiência com ele me devolveu a fé na educação libertadora. Eu nunca quisera abandonar a convicção de que é possível dar aula sem reforçar os sistemas de dominação existentes. Precisava ter certeza de que os professores não têm de ser tiranos na sala de aula.” (HOOKS, 2013, p. 31)

     

    ·         Entusiasmo:

    A noção de prazer em sala de aula, o entusiasmo, é tomada por hooks como um paradigma para sua pedagogia.

     

    ·         Pedagogia anticolonialista, crítica e feminista:

    “Minhas práticas pedagógicas nasceram da interação entre as pedagogias anticolonialista, crítica e feminista, cada uma das quais ilumina as outras. Essa mistura complexa e única de múltiplas perspectivas tem sido um ponto de vista envolvente e poderoso a partir do qual trabalhar.” (HOOKS, 2013, p. 20)

     

    Capítulo 1 – Pedagogia engajada

     

    Educação como prática da liberdade

    “A educação como prática da liberdade é um jeito de ensinar que qualquer um pode aprender.” (HOOKS, 2013, p. 25)

     

    O trabalho do professor:

    Participar do crescimento intelectual e espiritual dos alunos.

     

    Inspiração de bell hooks

    Professores que tem coragem de transgredir as fronteiras de uma educação tradicional, que se aproximam dos alunos e que contribuem para que o reconhecimento mútuo esteja sempre presente em suas relações.

    A autora destaca:

    Paulo Freire (1921 – 1997), educador e filósofo brasileiro

    educação libertadora: semelhante a uma plantação em que todos temos que trabalhar.

    Conceitos do autor importantes para hooks: a) educação bancária: educação baseada em um processo de consumo, memorização e armazenamento da informação dada por um professor – sistema que tanto Freire como hooks combatem; b) conscientização: esforço de conhecimento crítico dos obstáculos, para Paulo Freire, um dos caminhos para colocar a curiosidade epistemológica em prática; compreendido por hooks como consciência e engajamento crítico, em que professores e alunos participam ativamente.

    Ao ter contato com a obra de Paulo Freire, bell hooks não apenas se apropria de conceitos do autor, mas também estabelece um diálogo profícuo com suas ideias. Em anexo, disponibilizo uma entrevista que a autora faz consigo (ou, que Gloria Watkins faz com bell hooks), na qual ela explica um pouco sobre esse diálogo com Freire, principalmente a respeito da tensão entre a perspectiva do autor e o posicionamento feminista que atravessa a leitura que faz dele. Essa entrevista foi sugerida e compartilhada pela Maria, nossa colega nesta turma.

     

    Thich Nhat Hanh (1926 - ), monge budista, escritor e poeta vietnamita

    noção de educação como trabalho coletivo semelhante à de Freire.

    - filosofia do budismo engajado: - prática associada à contemplação;

                                                        - práxis: agir e refletir sobre o mundo a fim de                                

                                                          modificá-lo.

    - integridade: mente + corpo + espírito.

     

    Essa integridade, enquanto inteireza, presente em Hanh é um elemento importante no pensamento de hooks, que se opõe a uma ideia de cisão. Para ela, é fundamental ver os alunos “como seres humanos integrais, com vidas e experiências complexas”.

    A autora pontua que estratégias pedagógicas que admitem uma ligação entre as ideias aprendidas no ensino universitário e as aprendidas pela prática da vida eram comuns nas aulas de graduação em Estudos da Mulher, contudo, isso não significa que toda sala de aula de uma professora feminista seja um espaço participativo para partilha de conhecimento. Ela observa que nem sempre uma perspectiva feminista abarca a pedagogia engajada:

    “A educação progressiva e holística, ‘a pedagogia engajada’, é mais exigente que a pedagogia crítica ou feminista convencional. Ao contrário destas duas, ela dá ênfase ao bem estar. Isso significa que os professores devem ter o compromisso ativo com um processo de autoatualização que promova seu próprio bem-estar. Só assim poderão ensinar de modo a fortalecer e capacitar os alunos.” (HOOKS, 2013, p. 25)

    A autoatualização aparece em hooks como processo fundamental para que o professor dirija sua prática, em primeiro lugar, a si mesmo, especificamente ao seu lado que ele tende a não mostrar – mas, para a autora, deveria fazê-lo – em sala de aula. Há uma ideia de cisão sustentada pelas estruturas educacionais burguesas que objetifica o professor ao distinguir: mente/corpo; público/privado; papéis professorais/práticas da vida e hábitos de ser; inteligência do acadêmico (mente objetiva)/lado emocional, este, geralmente instável. É a este lado, apartado do papel a ser desempenhado pelo acadêmico em sala de aula, que falta a autoatualização da qual fala hooks. É nesse contexto que a experiência concreta da autora na universidade revela um abismo entre a produção acadêmica de intelectuais e seu trabalho em sala de aula.

    Aproveito para sugerir a vocês que reflitam a respeito desse abismo, da perturbação da imagem do intelectual/acadêmico da qual fala hooks na página 28, não apenas no que concerne à experiência discente, mas também sobre a formação de vocês que está em curso. Outro ponto importante sobre o qual a autora reflete, na página 32, agora já no contexto da passagem a uma educação libertadora e também no de sua prática, é a tensão entre a abertura do professor aos alunos e a participação destes durante a aula. Como dar espaço para que os alunos se expressem sem deixar que a aula se transforme em “sessão de terapia”? Vale notar que para hooks a experiência pode iluminar e ampliar a nossa compreensão do material acadêmico. Daí surge um outro impasse: ao abrirmos espaço para os alunos se expressarem, convidando-os a partilhar narrativas confessionais, nós, professores, também estamos nos abrindo? Estamos todos correndo o mesmo risco em sala de aula? Como assumir esse risco?

     

    Capítulo 3 – Abraçar a mudança: o ensino num mundo multicultural

     

    Temos um ponto de partida neste capítulo:

    “Vamos encarar a realidade: a maioria de nós frequentamos escolas onde o estilo de ensino refletia a noção de uma única norma de pensamento e experiência, a qual éramos encorajados a crer que fosse universal. Isso vale tanto para os professores não brancos quanto para os brancos. A maioria de nós aprendemos a ensinar imitando esse modelo. Como consequência, muitos professores se perturbam com as implicações políticas de uma educação multicultural, pois têm medo de perder o controle da turma caso não haja um modo único de abordar um tema, mas sim modos múltiplos e referências múltiplas.” (HOOKS, 2013, p. 51)

    A perturbação e o medo mencionados pela autora na passagem acima revelam que em alguma medida nossa formação passa não apenas por criação de estratégias de ensino, mas também pelo que sentimos em relação à nossa situação enquanto educadores, principalmente no que diz respeito a uma mudança de paradigma. Neste caso, a educação libertadora, que leva ao reconhecimento do multiculturalismo em sala de aula, seria o novo paradigma. Novamente, a experiência aparece como elemento fundamental para a prática da educação.

    Destaco também alguns pontos relevantes deste capítulo, dentre os quais estão pontos abordados nos seminários sobre pedagogia transformadora abertos a todos os professores promovidos por hooks e Chandra Mohanty no Oberlin College:

    - a mudança na experiência de aprender após a dessegregação racial;

    - nenhuma educação é politicamente neutra;

    - nossas preferências políticas moldam nossa pedagogia;

    - é preciso escutar sobre o desconforto e os medos das pessoas durante o processo de mudança de paradigma;

    - faz-se necessário reconhecer a insuficiência da inclusão dos considerados “marginais” nos programas de aula quando não há o devido respeito e consideração aos seus trabalhos;

    - rever a ambiência de sua aula que você considera segura: quem está em silêncio na sua aula?

    - da necessidade de reconhecimento de diferentes “códigos culturais”: aceitação de diferentes maneiras de conhecer, novas epistemologias.

     

    A transformação da consciência aliada à livre expressão são as bases da pedagogia de bell hooks. Termino citando uma passagem que pode nos remeter à imagem da educadora em sala de aula:

    “Trabalhando com uma pedagogia crítica baseada em minha compreensão dos ensinamentos de Freire, entro na sala partindo do princípio de que temos que construir uma ‘comunidade’ para criar um clima de abertura e rigor intelectual.” (HOOKS, 2013, p. 57)

     

    Conforme combinamos, há um fórum aberto para esta “aula” no ambiente virtual de nosso curso no moodle para que vocês possam conversar sobre os temas dos textos.

    Seguindo o calendário acadêmico da USP, fazemos uma pausa para o feriado da semana que vem. Em breve envio orientações para a semana subsequente, quando faríamos nossa primeira avaliação. Lembrando que não faremos avaliações a distância.

     

    Abraços e força!

    Juliana

     

    Referência bibliográfica

     

    HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade.Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 25-36; 51-63

     


  • AULA 7 - 14.04

    Olá, pessoal,

    Como estão?
    Espero que as coisas estejam caminhando da melhor forma possível.

    Se não estivéssemos em meio à pandemia, hoje nos encontraríamos para uma avaliação. Como fazer uma prova não é viável neste momento, já que o acesso e o desempenho de cada estudante seria gravemente afetado pela crise que nos acomete, minha proposta para esta semana, antes de retomarmos os textos do programa, desvia do universo das avaliações. 

    Deixo a vocês notícias, informes, cartas e outras informações que dizem respeito à Universidade de São Paulo e à COVID-19 sobre diversos aspectos da universidade, veiculados por diferentes canais. Deixo o material para conhecimento e para reflexão sobre o que é a universidade e sobre suas relações com a educação, a ciência, a pesquisa e também com as/os estudantes, dentre outros temas que vocês podem identificar. Fiquem à vontade para escreverem sobre suas reflexões nos diários de bordo e em outros momentos de trabalho com os outros textos.

    Abaixo desta mensagem, os links para o material que selecionei.
    Abraços e força!
    Juliana

    Ensino a distância é nova realidade para professores de graduação da USP

    23/03/2020

    https://jornal.usp.br/universidade/ensino-a-distancia-e-nova-realidade-para-professores-de-graduacao-da-usp%E2%80%8B/

     

    'Estamos completamente abandonados aqui', dizem estudantes que moram na USP

    23/03/2020

    https://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2020-03-23/estamos-completamente-abandonados-aqui-dizem-estudantes-que-moram-na-usp.html

     

    Nota à Imprensa da Congregação da Faculdade de Saúde Pública da USP sobre a evolução da pandemia de Covid-19 no Brasil

    27/03/2020

    https://www.fsp.usp.br/site/noticias/mostra/19357

     

    Coronavírus: ‘fomos abandonadas pela USP durante a pandemia, e não podemos nem morrer porque nossos filhos dependem de nós’

    01/04/2020

    https://theintercept.com/2020/04/01/coronavirus-maes-dormitorio-universitario-usp/

     

    As redes de cientistas que fazem aparelhos médicos em falta

    03/04/2020

    https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/03/As-redes-de-cientistas-que-fazem-aparelhos-m%C3%A9dicos-em-falta

     

    Rede USP para o Diagnóstico da COVID-19 (RUDIC)

    03/04/2020

    http://www.inovacao.usp.br/rede-usp-para-o-diagnostico-da-covid-19-rudic/

     

    Em todo o país, universidades públicas estão na linha de frente na luta contra a pandemia

    03/04/2020

    https://www.adusp.org.br/index.php/defesauniv/3617-em-todo-o-pais-universidades-publicas-estao-na-linha-de-frente-na-luta-contra-a-pandemia

     

    SAS rebate reportagem do Intercept Brasil e diz que moradores do Crusp “não foram abandonados”

    06/04/2020

    https://www.adusp.org.br/index.php/defesauniv/3618-sas-rebate-reportagem-do-intercept-brasil-e-diz-que-moradores-do-crusp-nao-foram-abandonados

     

    “Momento não permite omissão e nem negligência criminosa contra a saúde do povo brasileiro”, diz o Coletivo Butantã na Luta em carta enviada ao governador sobre o HU e a crise da Covid-19

    06/04/2020

    https://www.adusp.org.br/index.php/defesauniv/3619-momento-nao-permite-omissao-e-nem-negligencia-criminosa-contra-a-saude-do-povo-brasileiro-diz-o-coletivo-butanta-na-luta-em-carta-enviada-ao-governador-sobre-o-hu-e-a-crise-da-covid-19

     

    USP lança programa de doações para financiamento das pesquisas sobre covid-19

    06/04/2020

    https://jornal.usp.br/institucional/usp-lanca-programa-de-doacoes-para-financiamento-das-pesquisas-sobre-covid-19/

     

    FFLCH, IAU, FAU e IP rejeitam pressões para conversão açodada de ensino presencial em online

    06/04/2020

    https://www.adusp.org.br/index.php/defesauniv/3620-fflch-iau-fau-e-ip-rejeitam-pressoes-para-conversao-acodada-de-ensino-presencial-em-online

     

    Servidor da EACH morre vitimado pela Covid-19

    07/04/2020

    https://www.adusp.org.br/index.php/defesauniv/3622-servidor-da-each-morre-vitimado-pela-covid-19

     

    EACH lamenta falecimento do funcionário Carlos Sérgio de Castro Silva

    http://www5.each.usp.br/destaques-principais/each-lamenta-falecimento-do-funcionario-carlos-sergio-de-castro-silva/

     

    USP Cultura em Casa

    09/04/2020

    https://prceu.usp.br/noticia/cultura-em-casa/

     

    Plasma de pacientes “curados” da covid-19 pode tratar infectados

    09/04/2020

    https://jornal.usp.br/atualidades/plasma-de-pacientes-curados-da-covid-19-pode-tratar-infectados/

     

    "Só queremos tirar nossos filhos desse inferno", diz mãe do Crusp

    10/04/2020

    https://noticias.r7.com/educacao/so-queremos-tirar-nossos-filhos-desse-inferno-diz-mae-do-crusp-10042020

     

    Da cloroquina ao plasma: as apostas da ciência brasileira contra a covid-19

    11/04/2020

    https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/11/da-cloroquina-ao-plasma-as-apostas-da-ciencia-brasileira-contra-a-covid-19.htm

     

    Carta Aberta à Secretaria Municipal de Educação de São Paulo - resposta à Instrução Normativa n. 15, 9/4/2020

    Por GRUPO TERRITORIALIDADES – DRE CAMPO LIMPO

    REDE DE ESCOLAS PÚBLICAS E PESQUISADORAS DO NAI-FEUSP

    TERRITÓRIO EDUCATIVO DAS TRAVESSIAS

    12/04/2020

    http://pesquisas.culturaeduca.cc/index.php?r=survey/index&sid=285969

     

    Comunicado da Congregação Extraordinária de 9 de abril de 2020 – FEUSP

    14/04/2020

    http://www4.fe.usp.br/wp-content/uploads/congregacao-09-20.pdf

     

    Pesquisadores da Poli-USP desenvolvem ventilador pulmonar para enfrentar crise do COVID-19

    https://www.poli.usp.br/inspire

     

    Como a USP está contribuindo para o combate à covid-19?

    https://prp.usp.br/usp-e-covid-19/

     

    Muito além das tarefas a cumprir: notas da FEUSP sobre a educação em tempos de isolamento

    http://www4.fe.usp.br/wp-content/uploads/documento-fe-em-tempos-de-isolamento.pdf

     

    Lançamento do 2º número da Revista Futuro do Pretérito

    http://www4.fe.usp.br/futurodopreterito


  • AULAS 8 e 9 - 28.04 e 05.05 – A natureza da teoria em Educação: aspectos epistemológicos, éticos e políticos

    Olá, pessoal,

     

    Como estão? Espero que vocês, suas famílias e amigos estejam bem.

    Dando continuidade ao programa de textos, passo a expor alguns pontos sobre autonomia e esclarecimento em Kant e em Adorno.

    Começo hoje com Kant, compartilho com vocês os comentários em formato de fichamento por parágrafo, que é um tipo de registro que vocês também podem fazer (se já não o fazem!) para organizar melhor os estudos e também para localizar mais facilmente algum tema nos textos.

    Abaixo, os comentários sobre Resposta à pergunta: O que é Esclarecimento?

    Vamos seguindo com força, proteção, criatividade e paciência!

     

    Abraços,

    Juliana

     

     

    Immanuel Kant (1724 – 1804, Königsberg, filósofo prussiano)

     

    Sobre Kant, a importância de sua filosofia na tensão ciência x metafísica na passagem da Idade Média para a Idade Moderna e suas contribuições para a Pedagogia, pelo Professor Antonio Joaquim Severino (professor aposentado do EDF da FEUSP):

     

    Resposta à pergunta: O que é Esclarecimento? (1784)

     

    Introdução

     

    A ruptura com uma metafísica de verdades absolutas instituídas pela Igreja durante a Idade Média atravessa a reflexão de Kant ao longo deste texto. Em 1781, no prefácio da Crítica da Razão Pura, o filósofo identificara o momento em que vivia como uma época de crítica, quando a religião e a majestade (a política) estavam submetidas a olhares críticos decorrente do livre pensar natural. Para Kant, esse livre pensar deve ser um direito de todos, e é naquele momento, durante o governo do “déspota esclarecido” Frederico II (1712 –1786), rei da Prússia, que o filósofo reconhece a garantia desse direito. Para além de filosofar sobre o que é o conhecimento, em Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?, Kant contextualiza o significado de Iluminismo e reflete sobre a autonomia dos sujeitos e os usos público e privado da razão. Quando escreve sobre um uso público da razão, o autor se refere à relação do sujeito com o público, para o público, para o mundo, falando em sua própria pessoa. Ao passo que, no uso privado da razão, o sujeito está situado como parte da engrenagem da instituição na qual desempenha seu ofício; ou seja, cidadão privado, fala em nome de outrem e a ele cabe um papel de tutor.

    Conforme lemos na primeira nota do texto, o mote para “Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?” é a própria pergunta que Kant destaca no título. A questão fora colocada por Johann Fridrich Zöllner, que naquela ocasião debatia no Mensário Berlinense (Berlinischer Monatschrift) sobre a necessidade da religião na sanção do vínculo matrimonial e sobre o lugar da Ilustração nesta decisão.

     

    Primeira parte – parágrafos 1 a 4 – definição de Esclarecimento (Aufklärung)

     

    a)      parágrafos 1 a 3 – o ser humano e a possibilidade de passagem à maioridade – plano individual

     

    1.      Definições:

     

    Esclarecimento (Aufklärung) significa a saída do homem de sua minoridade, pela qual ele próprio é responsável.

     

    “A minoridade é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro.”

    Para utilizar o entendimento: resolução e coragem. – (Sapere aude: Ousa saber!)

     

    2.      Quando fala em menoridade, Kant não se refere a um período específico da vida, mas ao estado do indivíduo que abre mão de pensar a respeito da realidade conforme o seu próprio entendimento e toma como direcionamento as verdades alheias. O filósofo não deixa de assinalar que a saída da menoridade seja considerada pelas pessoas um passo penoso e perigoso, mas enfatiza a importância e a possibilidade de alguém acessar a maioridade.

    Neste trecho, também nos chama a atenção o que Kant diz sobre as mulheres, nas palavras do autor, “o belo sexo”: “Que a maior parte da humanidade (e especialmente todo o belo sexo) considere o passo a dar para ter acesso à maioridade como sendo não só penoso, como ainda perigoso, é ao que se aplicam esses tutores que tiveram a extrema bondade de encarregar-se de sua direção.” Em linhas gerais: se, por um lado, para uma mulher afirmar-se enquanto sujeito autônomo, guiar-se pelo próprio entendimento, seria mesmo penoso e perigoso, dado às restrições postas às mulheres naquele momento, por outro lado, nessa passagem Kant reforça a condição de inferioridade das mulheres em relação aos homens imposta por uma sociedade sexista, inclusive quando refere-se a esses indivíduos impelidos à condição de objeto pela expressão “o belo sexo”. Observação que pode ser desdobrada em uma ampla e profícua investigação.

     

    3.      Mas a dificuldade atinge a todos os seres humanos. A menoridade pode até mesmo aparecer como uma espécie de “segunda natureza”, uma vez que a experiência da maioridade é por vezes ignorada, principalmente quando o sujeito se encontra numa situação que o impede de acessar de maneira autônoma o seu próprio entendimento. E quem ousaria ultrapassar o que está dado?

    “Preceitos e fórmulas, esses instrumentos mecânicos destinados ao uso racional, ou antes ao mau uso de seus dons naturais, são os entraves desses estado de minoridade que se perpetua. Quem o rejeitasse, no entanto, não efetuaria mais do que um salto incerto por cima do fosso mais estreito que seja, pois ele não tem o hábito de uma tal liberdade de movimento. Assim, são poucos os que conseguiram, pelo exercitar de seu próprio espírito, libertar-se dessa minoridade tendo ao mesmo tempo um andar seguro.”

     

    b)      Parágrafo 4 – o ser humano enquanto indivíduo público e a possibilidade de passagem à maioridade

     

    4.      Entre vários indivíduos, haverá aqueles que pensam por si mesmos, dentre eles, aqueles cujo entendimento, consciência, são tomados como base pelos que não rejeitaram a menoridade, e que “difundirão o espírito de uma apreciação razoável de seu próprio valor e a vocação de cada homem de pensar por si mesmo.” E o próprio público, antes submetido por esses tutores, os forçará a manter esse espírito. Quanto ao público, este “só pode aceder lentamente ao Esclarecimento. Uma revolução poderá talvez causar a queda do despotismo pessoal ou de uma opressão cúpida e ambiciosa, mas não estará jamais na origem de uma verdadeira reforma da maneira de pensar; novos preconceitos servirão, assim como os antigos, de rédeas ao maior número, incapaz de refletir.”  

     

    Segunda parte – parágrafos 5 a 7 – Usos da razão

     

    5.      Para que haja Esclarecimento, é preciso que haja liberdade.

    Uma forma de liberdade: fazer uso público da própria razão em todos os domínios.

    MAS, Kant assinala que há limitações (“não raciocinai!”) por toda parte, vindas de todos os lados, do oficial, do conselheiro de finanças, do padre, sempre acompanhadas de uma ordem a ser obedecida. O único senhor no mundo que diz aos indivíduos para raciocinarem, ao qual Kant se refere num parênteses neste parágrafo é Frederico II, rei da Prússia naquele momento. Contudo, fica claro que raciocinar não significa desobedecer. Há então uma distinção entre o que Kant denomina uso público da razão e o que compreende ser o uso privado desta:

    “Mas que limitação constitui obstáculo ao Esclarecimento, e qual não constitui ou lhe é mesmo favorável? Respondo: o uso público de nossa razão deve a todo momento ser livre, e somente ele pode difundir o Esclarecimento entre os homens; o uso privado da razão, por sua vez, deve com bastante freqüência ser estreitamente limitado, sem que isso constitua um entrave particular o progresso do Esclarecimento. Mas entendo por uso público de nossa razão o que fazemos enquanto sábios para o conjunto do público que lê. Denomino de uso privado aquele que se é autorizado a fazer de sua razão em um certo posto civil ou em uma função da qual somos encarregados. Ora, muitas tarefas que concorrem ao interesse da coletividade (gemeinem Wesens) necessitam de um certo mecanismo, obrigando certos elementos da comunidade a se comportar passivamente, a fim de que, graças a uma unanimidade artificial, sejam dirigidos pelo governo a fins públicos, ou pelo menos impedidos de destruí-los. Nesse caso, com certeza, não é permitido argumentar (räsonieren). Deve-se somente obedecer. Dado que essa parte da máquina, no entanto, se concebe como elemento do bem público como um todo, e mesmo da sociedade civil universal, assume por conseguinte a qualidade de um erudito que se dirige a um só público, no sentido próprio do termo, por meio de escritos, ele pode então raciocinar sem que as tarefas às quais ele está ligado como elemento passivo sejam afetadas.”

    Kant descreve algumas situações:

    - um oficial: não pode raciocinar em voz alta sobre a conveniência ou utilidade da ordem recebida pelos seus superiores. Ele só pode obedecer. E vale notar que “não se pode com justiça proibir-lhe, enquanto especialista, fazer observações sobre as faltas cometidas durante o período de guerra, e submetê-las ao julgamento de seu público.”

    - um cidadão: não pode recusar-se a pagar os impostos que lhe são exigidos. “Mas não está em contradição com seu dever de cidadão se, enquanto erudito, ele manifesta publicamente sua oposição a tais imposições inoportunas ou mesmo injustas.”

    - um padre: obrigado a fazer seu sermão de acordo com o símbolo da Igreja à qual ele serve. “Mas, enquanto erudito, ele dispõe de liberdade total, e mesma da vocação para tanto, de partilhar com o público todas suas idéias minuciosamente examinadas e bem intencionadas que tratam das falhas desse simbolismo e de projetos visando a uma melhor abordagem da religião e da Igreja.”

    E mais além acrescenta:

    “O uso, portanto, que um pastor em função faz de sua razão diante de sua paróquia é apenas um uso privado; pois esta é uma assembléia de tipo familiar, qualquer que seja sua dimensão; e, levando isso em conta, ele não é livre enquanto padre e não tem o direito de sê-lo, pois ele executa uma missão alheia à sua pessoa. Em contrapartida, enquanto erudito que, por meio de seus escritos, fala ao verdadeiro público, isto é, ao mundo, por conseguinte no uso público de sua razão, o padre desfruta de uma liberdade ilimitada de servir-se de sua própria razão e de falar em seu próprio nome. Pois, querer que os tutores do povo (nas coisas eclesiásticas) voltem a ser menores, é um absurdo que contribui para a perpetuação dos absurdos.”         

     

    6.      Kant nos chama a atenção para os efeitos de manter um comprometimento dos indivíduos com símbolos imutáveis ditados pelos seus superiores. “Uma época não pode se aliar e conspirar para tornar a seguinte incapaz de estender seus conhecimentos (sobretudo tão urgentes), de libertar-se de seus erros e finalmente fazer progredir o Esclarecimento. Seria um crime contra a natureza humana, cuja vocação original reside nesse progresso; e os descendentes terão pleno direito de rejeitar essas decisões tomadas de maneira ilegítima e criminosa. A pedra de toque de tudo o que pode ser decidido sob forma de lei para um povo se encontra na questão: um povo imporia a si mesmo uma tal lei? Ora, esta seria possível, por assim dizer, na espera de uma melhor, e por um breve e determinado período, a fim de introduzir uma certa ordem; sob condição de autorizar ao mesmo tempo cada um dos cidadãos, principalmente o padre, em sua qualidade de erudito, a fazer publicamente, isto é, por escrito, suas observações sobre os defeitos da antiga instituição, sendo enquanto isso mantida a ordem introduzida.”

    Kant estabelece graus para o questionamento e para a mudança das instituições, para chegar ao Esclarecimento, ao mesmo tempo em que é taxativo quanto à impossibilidade de acordo com uma constituição, a saber, religiosa, o foco de sua crítica, que seja tida como imutável.

     

    7.      Para Kant, a autoridade legislativa de um monarca não lhe dá o direito de decidir pelo povo. A conciliação entre melhoria – verdadeira ou pretensa, Kant assinala – e a ordem civil tem como base a vontade do povo. Ao monarca cabe velar para que entre os súditos não haja violência pela qual um impeça o outro de pensar por si. Atitudes despóticas apenas o rebaixam e prejudicam sua própria majestade.

      

    Terceira parte – parágrafos 8 a 11 – Época esclarecida

     

    8.      Não vivemos numa época esclarecida, mas de Esclarecimento (à qual Kant se refere também como “o século de Frederico”). Há então um momento de transição; contudo, ainda falta muito para que haja condições de os indivíduos deixarem seus tutores. E aqui fica evidente o lugar central dado à religião naquele debate. “Muito falta ainda para que os homens, no estado atual das coisas, tomados conjuntamente, estejam já num ponto em que possam estar em condições de se servir, em matéria de religião, com segurança e êxito, de seu próprio entendimento sem a tutela de outrem.”

     

    9.      O que Kant quer dizer com o termo “esclarecido” quando o emprega a Frederico II? O filósofo refere-se a um soberano que assuma, no que concerne à religião, a libertação dos seus súditos da minoridade como um dever. Este governante não é tolerante, é esclarecido. E essa libertação dos súditos está sujeita à permissão, à concessão, e ocorre dentro de limitações: “Sob seu reinado, honoráveis eclesiásticos, a despeito de seu dever de função, têm a permissão, em qualidade de eruditos, de apresentar livre e publicamente ao exame de todos os juízos e pontos de vista que se afastam aqui ou ali dos símbolos adotados; melhor ainda, esse direito é concedido a todos que não se encontram limitados por seu dever de função.”

     

    10.  Naquele momento, as ciências e as artes, ao ver de Kant, estão livres da tutela dos soberanos. Por isso é a religião o foco principal do Esclarecimento, da saída do indivíduo da mais nociva e mais desonrosa minoridade. O uso livre da razão, bem como a crítica e a reelaboração da legislação são claramente possíveis nesse contexto examinado por Kant; mas a contestação, o processo, qualquer ação revolucionária parecem não caber nesse cenário; sobre a autorização do uso público da razão, o próprio texto diz: “não há perigo”.

     

    11.  Há então um paradoxo: o soberano não teme o comando vindo de uma religião, mas comanda indivíduos bem disciplinados (estes também livres de prescrições sobre a religião), situação que se traduz na ordem: “raciocinai o quanto quiserdes, e sobre o que desejardes, mas obedecei!” Assim, nesse contexto, é a obediência dos súditos que garante o uso livre da razão, e também a tranquilidade pública. Kant compara: “Um grau mais elevado de liberdade civil parece ser vantajoso para a liberdade de espírito do povo, e lhe impõe todavia barreiras intransponíveis; um grau menos elevado daquela proporciona a este em contrapartida a possibilidade de estender-se de acordo com suas forças.” Na época do Esclarecimento, o uso livre da razão, essa própria inclinação para pensar livremente torna o povo cada vez mais capaz para ter a liberdade de agir, e o governo, capaz de encontrar o seu interesse em tratar os súditos na medida de sua dignidade.

     

    Vamos pensar nas noções de esclarecimento e autonomia neste texto de Kant. Como vocês as compreendem a partir dessa leitura?

    Na semana que vem envio considerações e a contextualização de Educação após Auschwtiz de Adorno e algumas propostas para repensar esclarecimento e autonomia.

    05/05/2020

    Olá, pessoal,

     

    Como estão? Espero que estejam seguindo com proteção e paciência.

    Dando continuidade à reflexão sobre a relação entre esclarecimento e autonomia, passamos a outro texto, no qual lemos um pouso sobre o balanço que Theodor Adorno faz do esclarecimento kantiano em um recorte bem específico da história. Abaixo, comentários sobre Educação após Auschwitz. O fórum segue aberto. 

    Abraços e muita força!

    Juliana

     

    Theodor W. Adorno (1903 – 1969, Frankfurt, filósofo alemão)

     

    Adorno foi um dos fundadores do Instituto para a Pesquisa Social na Universidade de Frankfurt, em 1924, na Alemanha, instituição que mais tarde, na década de 1950, passa a ser conhecida como “Escola de Frankfurt”. Adorno, Max Horkheimer (1895 – 1973), Herbert Marcuse (1898 – 1979) e Walter Benjamin (1892 – 1940) são quatro nomes daquele contexto que até hoje ganham bastante destaque.

    O Instituto para a Pesquisa Social, fundamentado numa perspectiva marxista, e orientado por uma leitura não ortodoxa do materialis­mo histórico-dialético, propõe estudos interdisciplinares realizados por pesquisadores, dentre eles, filósofos, sociólogos e economistas, que transitam por diversos temas e áreas do conhecimento, como Filosofia, Ciências Sociais e Psicanálise; abordagem que culmina na Teoria Crítica. Em 1934, ao pressentir uma guerra na Europa, Horkheimer retira o Instituto para a Pesquisa Social de Frankfurt. O Instituto permanece então instalado nos Estados Unidos sob a direção de Adorno até a década de 1950, quando retornam à Alemanha.

     

    _________________________________________________________

     

    Pouco antes do final da Segunda Guerra Mundial, em 1944, Adorno e Horkheimer, nas primeiras páginas de Dialética do esclarecimento – livro que resulta de conversas entre os dois autores, datilografado pela química Gretel Adorno e, após o término da guerra, revisado em 1947 –, indagam sobre o motivo da humanidade estar afundando em uma nova espécie de barbárie em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano. A esta problemática os autores vinculam o questionamento acerca da noção de esclarecimento.

    No século XVIII, para Kant, o esclarecimento está relacionado a um processo de emancipação intelectual. Essa emancipação esta ligada tanto à resolução e à coragem do indivíduo para servir-se de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro como à  crítica das prescrições daqueles tidos como hierarquicamente superiores, como padres e governantes, àqueles que encontram-se no estado denominado menoridade.

    No século XX, Adorno e Horkheimer retomam o termo num momento em que a vida e a noção que temos de conhecimento são colocados em xeque, quando o esclarecimento, para os dois filósofos, passa por uma autodestruição. Lemos em “O conceito de esclarecimento”, primeiro capítulo de Dialética do esclarecimento:

     

    No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber. (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 17)

     

    Incorporado do pensamento de Benjamin, o mito na Dialética do esclarecimento tem o sentido do arcaico e do violento. É importante notar que para os autores a barbárie é constitutiva da civilização, ou seja, não é um acidente nem o acaso, mas sim a regra. O esclarecimento, enquanto desencantamento do mundo, livre das definições de caráter mítico difundidas pelos supostamente superiores, agora calcadas no conhecimento, possibilita ao indivíduo o uso da própria razão para compreender e explicar a realidade ao seu redor. Por outro lado, o esclarecimento pode recair na mitologia, e é para esse risco que Adorno e Horkheimer chamam a nossa atenção. Ainda que alcançar a natureza para conhecê-la constitua um processo crítico e emancipador do sujeito, esse alcance pode desdobrar-se em um domínio que se traduz em poder e controle.

     

    Abandonando a seus inimigos a reflexão sobre o elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu caráter superador e, por isso, também sua relação com a verdade. A disposição enigmática das massas educadas tecnologicamente a deixar dominar-se pelo fascínio de um despotismo qualquer, sua afinidade autodestrutiva com a paranóia racista, todo esse absurdo incompreendido manifesta a fraqueza do poder de compreensão do pensamento teórico atual. (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 13)

     

    Com a autodestruição do esclarecimento e a incompreensão das ciências diante do ocorrido no nazismo, como pensar a educação?

     

    Na década seguinte à Dialética do esclarecimento, em 1965, Adorno ministra uma palestra intitulada Educação após Auschwitz. O texto dessa fala é publicado dois anos depois na coletânea Educação e emancipação, livro que compila este e outros textos do autor sobre educação.

    A ênfase de Educação após Auschwitz está na necessidade de refletirmos acerca do que é preciso para que o nazismo e suas violentas consequências não se repitam. Ao longo de sua fala, Adorno apela à ciência para esclarecer o que houve em Auschwitz e à educação para que aquele acontecimento não se repita.

     

    Nesse contexto, podemos esquematizar algumas questões:

     

    O que queremos dizer quando falamos em ciência? Ou melhor, haverá “a ciência” ou ciências? E dentro da expressão “a ciência”, qual é o lugar das ciências humanas?

    Haveria uma hierarquia entre ciências humanas, exatas e as ciências identificadas como naturais?

    Seria o campo de conhecimento da filosofia uma ciência? Em que sentido?

    E ainda, quais são os caminhos para as ciências esclarecerem a barbárie quando o próprio esclarecimento passa por uma autodestruição? Em outras palavras, como fazer a crítica da razão pelos meios da própria razão?

     

    Adorno inicia Educação após Auschwitz com a frase “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação.” (ADORNO, 1995, p. 118) e afirma que há pouca consciência sobre essa condição, o que significa que pode ser que Auschwitz ocorra outra vez. Essa reflexão, proposta como auto-reflexão, e a não repetição são elementos essenciais ao longo de todo o texto.

    Para Adorno, Auschwitz foi a barbárie e foi a regressão, e o que há não é uma ameaça, já que “a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que tem de fundamental as condições que geram esta regressão.” (ADORNO, 1995, p. 119) Há uma pressão social que se repete, na qual se sobressaem as tendências do indivíduo a retornar a um estado de “não vida”, a algo que Adorno considera indescritível e que culmina em Auschwitz. Ainda que própria da civilização, essa pressão tem um aspecto anticivilizatório.

     

    Como falar sobre o ocorrido?

     

    Citar números, falar em quantidades, no que diz respeito às vítimas, é humanamente indigno. Ao mesmo tempo, não se deve reduzir o ocorrido a algo superficial ou identificar esse acontecimento como uma “aberração no curso da história”, ou seja, não se trata de algo inexplicável, houve condições para se chegar a Auschwtiz e Adorno propõe que falemos sobre elas. “O simples fato de ter ocorrido já constitui por si só expressão de uma tendência social imperativa.” (ADORNO, 1995, p. 120) Milhões de pessoas foram assassinadas de forma planejada, ou seja, dentro de uma proposta racionalista, proposta esta que organiza a sociedade.

    O autor nos chama a atenção para “contra-explosões”, como o genocídio armênio e a invenção da bomba atômica, forças que não desviam, mas se integram ao curso da história mundial, que vão de encontro ao que se tem chamado “explosão populacional”.

     

    Contudo, Adorno sabe da dificuldade para mudar os aspectos sociais e políticos da realidade que possibilitam essas contra-explosões. Sua proposta então é voltarmo-nos para o lado subjetivo, ou seja, buscarmos as raízes desses problemas nos indivíduos, não nas vítimas, mas nos perseguidores. E além disso, considera fundamental uma educação que desde a primeira infância se dirija à auto-reflexão crítica, visando evitar a repetição.

     

    Torna-se necessário o que a esse respeito uma vez denominei de inflexão em direção ao sujeito. É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos. Os culpados não são os assassinados, nem mesmo naquele sentido caricato e sofista que ainda hoje seria do agrado de alguns. Culpados são unicamente os que, desprovidos de consciência, voltaram contra aqueles seu ódio e sua fúria agressiva. É necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias. (ADORNO, 1995, p. 121)

     

    Compreendendo que os mecanismos que tornam as pessoas capazes de tais atos violentos são parte das engrenagens do processo civilizatório, Adorno toma como apoio os estudos de Freud em O mal-estar na cultura, livro publicado em 1930, escrito em meio à quebra da bolsa de Nova York e à ascensão do partido hitlerista na Alemanha, no qual o autor examina a relação entre cultura, tão necessária para remediar a causa do sofrimento humano, mas também nova fonte de sofrimento, e a dimensão da agressividade, da hostilidade e da crueldade na presença humana no mundo. Podemos então nos perguntar: em que medida a própria noção de civilização pode lidar com a violência uma vez que esta também produz violência?

    Adorno entende que a mesma sociedade que nos agrega contribui para a desagregação das particularidades, principalmente da subjetividade.

     

    De uma perspectiva sociológica eu ousaria acrescentar que nossa sociedade, ao mesmo tempo em que se integra cada vez mais, gera tendências de desagregação. Essas tendências encontram-se bastante desenvolvidas logo abaixo da superfície da vida civilizada e ordenada. A pressão do geral dominante sobre tudo que é particular, os homens individualmente e as instituições singulares, tem uma tendência a destroçar o particular e individual juntamente com seu potencial de resistência. Junto com sua identidade e seu potencial de resistência, as pessoas também perdem suas qualidades, graças a qual tem a capacidade de se contrapor ao que em qualquer tempo novamente seduz ao crime. Talvez elas mal tenham condições de resistir quando lhes é ordenado pelas forças estabelecidas que repitam tudo de novo, desde que apenas seja em nome de quaisquer ideais de pouca ou nenhuma credibilidade. (ADORNO, 1995, p. 122)

     

    Para além do espírito germânico de confiança na autoridade – não é pela imposição, pela autoridade, que Hitler sobe ao poder, mas por meio de uma eleição –, a falta de preparo psicológico das pessoas para a autodeterminação é um elemento chave na ascensão do nazismo e a Auschwitz. Mas ainda assim o retorno do fascismo constitui uma questão social, e não psicológica.

    Até este momento do texto, será que sabemos do que fala Adorno quando fala em educação após Auschwitz?

     

    Quando falo de educação após Auschwitz, refiro-me a duas questões: primeiro, a educação infantil, sobretudo na primeira infância; e, além disto, ao esclarecimento geral, que produz um clima intelectual, cultural e social que não permite tal repetição; portanto, um clima em que os motivos que conduziram ao horror tornem-se de algum modo conscientes. Evidentemente não tenho a pretensão de sequer esboçar o projeto de uma educação nesses termos. Contudo, quero ao menos indicar alguns pontos nevrálgicos. (ADORNO, 1995, p. 123)

     

    Apesar da urgência em falar sobre Auschwitz quando se fala em educação, um projeto educativo que evite a repetição do nazismo e seus traços autoritários e violentos não aparece como uma tarefa fácil. Mas ao revelar os mecanismos que possibilitam tamanha violência, Educação após Auschwitz nos oferece subsídios para estudarmos a situação da educação não apenas na Alemanha nazista, mas também nas violências cotidianas permeadas de ódio e de exclusão com as quais nos deparamos no Brasil.

    Acompanhando a reflexão de Adorno, ao falarmos sobre Auschwitz, corremos o risco de tomar o problema de maneira simplista e não menos autoritária do que a questão a ser resolvida se apelarmos ao que o autor chama “vínculos de compromisso” de pessoas bem intencionadas – e aqui será que poderíamos arriscar uma analogia entre o discurso destas e daqueles que hoje são por vezes popularmente chamados “cidadãos de bem”[1]? Para as pessoas bem intencionadas com suas propostas de vínculos de compromisso das quais fala Adorno, um enfático “não deves”, como uma força superior a ser obedecida, poderia impedir a repetição da barbárie. Mas o quanto pode haver de autoridade e de desobrigação de pensar por si próprio nesse compromisso?

     

    Facilmente os chamados compromissos convertem-se em passaporte moral são assumidos com o objetivo de identificar-se como cidadão confiável ou então produzem rancores raivosos psicologicamente contrários à sua destinação original. Eles significam uma heteronomia, um tornar-se dependente de mandamentos, de normas que não são assumidas pela razão própria do indivíduo. O que a psicologia denomina superego, a consciência moral, é substituído no contexto dos compromissos por autoridades exteriores, sem compromisso, intercambiáveis, como foi possível observar com muita nitidez também na Alemanha depois da queda do Terceiro Reich. Porém justamente a disponibilidade em ficar do lado do poder, tomando exteriormente como norma curvar-se ao que é mais forte, constitui aquela índole dos algozes que nunca mais deve ressurgir. Por isto a recomendação dos compromissos é tão fatal. As pessoas que os assumem mais ou menos livremente são colocadas numa espécie de permanente estado de exceção de comando. O único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz seria autonomia, para usar a expressão kantiana; o poder para a reflexão, a autodeterminação, a não-participação. (ADORNO, 1995, p. 123-124)

     

    A autonomia kantiana aparece então como possibilidade de não fazer parte de uma objetividade, do sujeito não desaparecer, não desagregar-se em meio à multidão movida por uma autoridade exterior.

    Por outro lado, assim como apelar ao vínculo de compromisso, ao passaporte moral, acusar quem fala sobre a barbárie de cometê-la também é perigoso na visão de Adorno, como no caso da reação do crítico à peça Mortos sem sepultura de Jean-Paul Sartre que ele menciona.

     

    O perigo de que tudo aconteça de novo está em que não se admite o contato com a questão, rejeitando até mesmo quem apenas a menciona, como se, ao fazê-lo sem rodeios, este se tornasse o responsável, e não os verdadeiros culpados. (ADORNO, 1995, p. 124)

     

    Nesse sentido, ao acusarmos quem fala sobre a barbárie, evitamos falar sobre ela.

    Quanto ao exemplo seguinte, sobre o livro O Estado da SS de Eugen Kogon e a situação da população do campo, há dois pontos que considero espinhosos na reflexão de Adorno. Embora ele afirme repudiar qualquer sentimento de superioridade em relação à população rural, em seguida, ao declarar que ninguém tem culpa por nascer em uma ou outra área, a diferença cultural entre campo e cidade parece marcada por uma hierarquia, na qual a educação do ambiente urbano parece ser a saída para uma suposta desbarbarização da zona rural. E ainda, a televisão é a grande aposta de Adorno como um dos recursos que pode facilitar essa salvação. Por outro lado, em seguida o autor reconhece a presença da violência também nas cidades grandes.

    Prosseguindo com a leitura de Educação após Auschwitz, compreendemos então que o coletivo, liderado por indivíduos que manipulam as massas, aparece como ponto de identificação cega do sujeito manipulado, este, atravessado pela violência e pela incorporação da autoridade em sua consciência, em seu corpo e na relação com o outro. Assim, é preciso fortalecer a autonomia do sujeito frente a certo tipo de coletivização:

     

    Considero que o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da coletivização. Isto não é tão abstrato quanto possa parecer ao entusiasmo participativo, especialmente das pessoas jovens, de consciência progressista. O ponto de partida poderia estar no sofrimento que os coletivos infligem no começo a todos os indivíduos que se filiam a eles. (ADORNO, 1995, p. 127)

     

    Sobre a relação do indivíduo com o coletivo, Adorno se refere a experiências que envolvem uma espécie de provação pela qual o sujeito deve passar para ser incorporado, como as primeiras experiências na escola, os ritos de passagem e os trotes – e aqui poderíamos retomar a noção de iniciação no texto de Olivier Reboul que lemos há algumas semanas –, nos quais a dor física é o preço para sentir-se parte de um grupo. Esses atos de violência chegam a ser reduzidos a meros “costumes” no contexto nazista.    

    Essa severidade dos ritos de iniciação, que implica numa capacidade de suportar a dor num grau máximo que se desdobra na indiferença à dor em geral, seja a sua própria ou a dor do outro, compete também ao campo da educação:

     

    Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir. Tanto é necessário tornar consciente esse mecanismo quanto se impõe a promoção de uma educação que não premia a dor e a capacidade de suportá-la, como acontecia antigamente. Dito de outro modo: a educação precisa levar a sério o que já de há muito é do conhecimento da filosofia: que o medo não deve ser reprimido. Quando o medo não é reprimido, quando nos permitimos ter realmente tanto medo quanto esta realidade exige, então justamente por essa via desaparecerá provavelmente grande parte dos efeitos deletérios do medo inconsciente e reprimido. (ADORNO, 1995, p. 128-129)

     

    É importante notar que essa diferença em relação ao outro é construída no âmbito do coletivo. Adorno nos chama a atenção para o tipo de indivíduo que na experiência de identificação com um coletivo deixa de considerar o outro e também a si próprio enquanto subjetividade. A identificação com o coletivo dá a ele uma ideia de um sujeito autodeterminado; ou seja, a consciência é coisificada (ou, nos termos de Marx, reificada, tão objetificada quanto uma mercadoria, que parece ter vida própria no contexto capitalista), como parte de uma massa amorfa. Essa problemática é desdobrada por Adorno em seus estudos sobre as relações entre a massa que se deixa manipular e a pessoa que tem caráter manipulador, a qual ele denomina “personalidade autoritária”.

    E eis então o momento em que o filósofo faz em Educação após Auschwitz uma proposta concreta às ciências para que a barbárie não se repita:

     

    Quero fazer uma proposta concreta: utilizar todos os métodos científicos disponíveis, em especial psicanálise durante muitos anos, para estudar os culpados por Auschwitz, visando se possível descobrir como uma pessoa se torna assim. O que aqueles ainda podem fazer de bom e contribuir, em contradição com a própria estrutura de sua personalidade, no sentido de que as coisas não se repitam. E essa contribuição só ocorreria na medida em que colaborassem na investigação de sua gênese. (ADORNO, 1995, p. 131)

     

    Adorno elenca três dificuldades que serão encontradas no desenvolvimento dessa proposta:

    - Será difícil levar as pessoas que atuaram como perseguidores a falarem;

    - Não poderíamos aplicar àqueles que gostaríamos que falassem os seus próprios métodos;

    - Aqueles que gostaríamos que falassem não demonstram remorso.

    Por outro lado, há pontos de apoio psicológico, como o narcisismo, ou o orgulho, daquelas pessoas, que podem motivá-las a falar. De todo modo, é crucial tentar essa inflexão ao sujeito.

     

    Finalmente, é de supor que também nessas pessoas, aprofundando-se suficientemente a busca, existam restos da velha instância da consciência moral que se encontra atualmente em grande parte em processo de dissolução. Na medida em que se conhecem as condições internas e externas que os tornaram assim pressupondo por hipótese que esse conhecimento é possível , seria possível tirar conclusões práticas que impeçam a repetição de Auschwitz. A utilidade ou não de semelhante tentativa só se mostrará após sua concretização; não pretendo superestimá-la. É preciso lembrar que as pessoas não podem ser explicadas automaticamente a partir de condições como estas. Em condições iguais alguns se tornaram assim, e outros de um jeito bem diferente. Mesmo assim valeria a pena. O mero questionamento de como se ficou assim já encerraria um potencial esclarecedor. Pois um dos momentos do estado de consciência e de inconsciência daninhos está em que seu ser-assim que se é de um determinado modo e não de outro e apreendido equivocadamente como natureza, como um dado imutável e não como resultado de uma formação. (ADORNO, 1995, p. 131-132)

     

    Faz-se importante então investigar o que possibilita a dissolução do sujeito na compreensão que este tem de si mesmo a partir de uma autodeterminação, como se se encerrasse numa determinação natural. A proposta de Adorno não visa categorizar as pessoas ou identificar fórmulas que expliquem o comportamento humano, mas, recusando uma explicação para Auschwitz baseada numa suposta natureza humana maléfica, o filósofo busca investigar os mecanismos sociais e psicológicos que operam na formação desse tipo de indivíduo e a possibilidade de romper a resistência da consciência coisificada a tornar-se diferente desse ser que para ela a caracteriza em absoluto. A fala das pessoas, tomada por um viés psicanalítico, é fundamental para que tomem consciência sobre o ocorrido para resolverem aquilo que o possibilitou.

    A relação com a técnica – ou seja, com os instrumentos e meios que os indivíduos encontram para modificar o mundo – é outro elemento importante para o estudo da consciência coisificada. Assim como há uma dissolução da própria subjetividade entre aqueles que se entregam cegamente ao coletivo, a técnica também é tida por alguns como “algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria” (ADORNO, 1995, p. 132). Adorno não encontra o ponto de transição entre essa supervalorização da técnica, a qual ele identifica, por exemplo, no indivíduo que projeta um sistema ferroviário mais rápido para conduzir vítimas a Auschwitz e chega a se esquecer do que lhes acontece, e a mera relação com a técnica, que o filósofo denomina relacional, na qual pessoas capacitadas para executar certos conjuntos de procedimentos são menos influenciáveis. Há uma ambiguidade na relação entre o ser humano e a técnica, ao mesmo tempo em que esta o liberta do trabalho árduo para a realização de certas atividades, também pode tornar-se o único objeto para o qual o indivíduo liga a sua libido.     

    Para Adorno, o indivíduo que venera a técnica não é mais capaz de amar; e aqui o amor não tem um sentido moral ou moralizante. O autor compreende que há uma carente relação libidinal com outras pessoas, tendência que, ele assinala, está vinculada ao próprio processo civilizatório. Sobre a carência libidinal, em linhas gerais, é importante notar que o uso da palavra libido remete ao conceito de Freud, a partir dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, escritos em 1905 e reeditados posteriormente, até a década de 1920. No século XIX, enquanto sexólogos europeus utilizavam a palavra libido para descrever variações da atividade sexual humana, que correspondia à atividade genital, Freud aproxima a noção da libido à noção de pulsão sexual generalizada, considerando-a, num primeiro momento, energia, manifestação da pulsão na vida, produzida por órgãos do corpo todo, e a considera o principal determinante da psique humana. Manifestação esta que fixa-se em objetos; ou seja, há um deslocamento enquanto investimento do próprio sujeito a si mesmo (libido do eu ou libido narcisista), ao seu próprio corpo, e então a um outro (libido do objeto). Ao deixar o fim sexual, a libido sofre uma sublimação, e é voltada a objetos socialmente valorizados, como a literatura e a arte, por exemplo. É nessa sublimação que o processo civilizatório está calcado.

    Para garantir o deslocamento da libido, algumas pulsões são recalcadas no processo de criação de identidade dos indivíduos, que aprendem a dominar tanto a natureza externa quanto a interna. Contudo, as pulsões reprimidas podem despontar na violência. O risco de uma sublimação em que a libido é deslocada para uma supervalorização da técnica, está na coisificação do humano que se desdobra na incapacidade de identificação com o outro. Assim, desenha-se então um caminho para que ocorram situações como a de Auschwitz.

     

    Hoje em dia qualquer pessoa, sem exceção, se sente mal-amada, porque cada um é deficiente na capacidade de amar. A incapacidade para a identificação foi sem dúvida a condição psicológica mais importante para tornar possível algo como Auschwitz em meio a pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas. O que se chama de “participação oportunista” era antes de mais nada interesse prático: perceber antes de tudo a sua própria vantagem e não dar com a língua nos dentes para não se prejudicar. Esta é uma lei geral do existente. O silêncio sob o terror era apenas a consequência disto: A frieza da mônada social, do concorrente isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao destino do outro, o pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. Os algozes sabem disto; e repetidamente precisam se assegurar disto. (ADORNO, 1995, p. 134)

     

    Contudo, Adorno não quer pregar o amor nesse cenário em que nos sentimos pessoas mal amadas, já que, para ele, a deficiência de amor afeta todas as pessoas. E mesmo que tentemos ao menos impedir que as crianças vivenciem a dureza da vida, em algum momento estas podem, desprotegidas, conhecer a barbárie. Seus próprios pais também revelarão marcas da sociedade. Por isso para ele a saída não é clamar pelo amor, mas lidar primeiro com a frieza.

     

    O apelo a dar mais calor humano às crianças é artificial e por isto acaba negando o próprio calor. Além disto o amor não pode ser exigido em relações profissionalmente intermediadas, como entre professor e aluno, médico e paciente, advogado e cliente. Ele é algo direto e contraditório com relações que em sua essência são intermediadas. O incentivo ao amor provavelmente na forma mais imperativa, de um dever constitui ele próprio parte de uma ideologia que perpetua a frieza. Ele combina com o que é impositivo, opressor, que atua contrariamente à capacidade de amar. Por isto o primeiro passo seria ajudar a frieza a adquirir consciência de si própria, das razões pelas quais foi gerada. (ADORNO, 1995, p. 135-136)

     

    E mais uma vez Adorno reforça a importância do estudo dos mecanismos subjetivos para analisar Auschwitz. Não apenas de quem participou, mas até mesmo de quem não considera o ocorrido tão grave. Além disso, vale lembrar que a ameaça da repetição não atinge necessariamente aqueles que foram atingidos em Auschwitz. Os próximos perseguidos podem ser quaisquer daqueles que não pertencerem ao grupo perseguidor.

    Nesse contexto, a educação que se faz necessária é uma educação política:

     

    Finalmente, o centro de toda educação política deveria ser que Auschwitz não se repita. Isto só será possível na medida em que ela se ocupe da mais importante das questões sem receio de contrariar quaisquer potências. Para isto teria de se transformar em sociologia, informando acerca do jogo de forças localizado por trás da superfície das formas políticas. Seria preciso tratar criticamente um conceito tão respeitável como o da razão de Estado, para citar apenas um modelo: na medida em que colocamos o direito do Estado acima do de seus integrantes, o terror já passa a estar potencialmente presente. (ADORNO, 1995, p. 137)

     

    Os algozes nazistas não agiam pelo próprio interesse, aliás, contrariamente ao próprio interesse, coisificavam a si próprios ao coisificarem o outro. São a educação e o esclarecimento, para Adorno, as possibilidades para evitarmos que as pessoas enquanto serviçais perpetuem a própria servidão.

    _________________________________________________________

     

    Sempre que leio Educação após Auschwitz sinto um impacto, algo como um soco no estômago. Retomar esse texto e preparar este e-mail no isolamento social, em meio não apenas às consequências da pandemia, mas também aos ecos autoritários e violentos de medidas tomadas num âmbito político que coisificam as pessoas, foi bastante esquisito e talvez ainda mais impactante.

    Meu intuito em trabalhar o texto de Adorno com vocês sempre foi o de colocar perguntas para ampliar horizontes de projetos educacionais. E este é o espírito do programa do curso. Desta vez as perguntas se embaraçaram. Há alguns meses eu poderia perguntar a vocês sobre o alcance da educação e da filosofia, frequentemente rebaixadas em nossa sociedade, seja por discursos ideológicos ou por cortes de verbas públicas, para reverter essa situação cuja tônica é marcada pelo ódio e pelo autoritarismo e na qual os sujeitos se diluem na supervalorização de figuras tidas como míticas. Hoje a minha indagação abarca também uma supervalorização da técnica, que impõe a extensão dos encontros nas escolas e nas universidades, pelo virtual, para as casas e para a vida de cada estudante, entre todas as suas dificuldades sanitárias, materiais e emocionais; o cumprimento de metas e a divinização de uma ciência econômica na qual pretendem fundamentar a desautorização violenta e autoritária das ciências que neste momento se voltam à preservação da vida. Hoje, então, com o rebaixamento da educação e da filosofia, podem o esclarecimento, a ciência – qual ciência? – se desvincular de uma supervalorização da técnica e agir em conjunto com a educação?

     

     

    Referências bibliográficas

     

    ADORNO, Theodor W. “Educação após Auschwitz”. In: Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

    ______; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Tradução: Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

    KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento? Tradução de Luiz Paulo Rouanet. Brasília: Casa das Musas, 2008.


  • AULA 10 - 12.05 - Fins e valores na prática educacional como problemas filosóficos – Educar para quê?

    Pessoal,

    Como estão? Espero que estejam nas melhores condições possíveis para continuarem atravessando este momento.

    Lá no início do ano, quando não imaginávamos como estaríamos hoje, meu plano para a décima aula era darmos início a uma reflexão sobre fins da educação e sobre como estes fins, delimitados por nós ou por documentos institucionais, e nossos valores influem em nossas práticas educacionais, e, a partir dessa reflexão, propor a vocês a leitura em grupo de alguns trechos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o exercício de um olhar crítico para os objetivos colocados por esse documento.

    Hoje, dentro do contexto possível, destaco alguns pontos importantes do primeiro capítulo de O mestre ignorante de Jacques Rancière e alguns detalhes elementares da BNCC. Para quem tiver condições e disponibilidade, sugiro a leitura, individual ou trabalhando com colegas, se estiverem em contato, da seção do documento que trata de sua área de estudos. A partir dessa leitura, arrisque iniciar uma reflexão e o questionamento dos objetivos postos pela BNCC em relação à realidade que você conhece pela sua experiência como estudante e/ou como professor(a).  

    Se quiser compartilhar seu exercício, temos um fórum, os diários de bordo em construção e nosso contato por e-mail.

    Abraços e força,

    Juliana

     

    Jacques Rancière, filósofo francês (1940 – )

     

    Para saber mais sobre o autor: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596961-ha-muito-pouca-democracia-entrevista-com-jacques-ranciere

     

    Sobre O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual (1987)

     

    A figura principal de O mestre ignorante é Joseph Jacotot em uma experiência docente no século XIX entremeada pelo acaso. O cerne da análise feita por Rancière é o deslocamento do foco da relação ensino-aprendizagem do saber para o emancipar. Em outras palavras, o mestre ignorante apresenta uma possibilidade de ensinar na qual o objeto de ensino não é o saber – aliás, o mestre nem precisa ter o saber –, mas a consciência que deve ter o sujeito do alcance de sua própria inteligência. Pela experiência de Jacotot, Rancière aponta a importância de o professor explicitar para o estudante que este pode aprender o que quiser. Nesse cenário vislumbrado pelo autor o sujeito tomaria consciência de que sua inteligência, além de não ser superior, não é inferior à inteligência de outro indivíduo. É essa igualdade entre inteligências que Rancière chama emancipação. Por outro lado, para o autor, o embrutecimento é caracterizado pela crença que tem os sujeitos na inferioridade da própria inteligência.

    O mestre ignorante propõe a inversão da lógica do sistema explicador ao questionar a inteligência que se afirma como superior. Afirmar-se como inteligência superior é impedir, pela desqualificação, pela inferiorização do outro, que recusem o seu conhecimento.

    Além disso, Rancière, para além de confrontar o filósofo ou o intelectual se opondo ao seu pensamento, propõe interrogar a sua postura. Nesse sentido, nossas noções de ensino e de método são colocadas em xeque.

     

    Joseph Jacotot (1770 – 1840), figura central em O mestre ignorante

     

    Quem é Jacotot?

    Segundo passagem do próprio texto de Rancière, um pouco sobre a carreira docente, militar e política de Jospeh Jacotot:

     

    Seu pai havia sido açougueiro, antes de cuidar das contas de seu avô, o carpinteiro que havia enviado seu neto ao colégio. Ele próprio era professor de retórica, quando escutou ecoar o apelo às armas, em 1792. O voto de seus companheiros o havia feito capitão de artilharia e ele se distinguira como um notável artilheiro. Em 1793, na Seção das Pólvoras, esse latinista havia se tornado instrutor de química para a formação acelerada dos operários que seriam enviados para aplicarem todos os cantos do território as descobertas de Fourcroy. Na casa desse mesmo Fourcroy ele havia conhecido Vauquelin, filho de camponês que se dera uma formação em química às escondidas de seu patrão. Na Escola Politécnica, ele tinha visto chegar jovens que comissões improvisadas haviam selecionado, com base no duplo critério de vivacidade de espírito e de patriotismo. E ele os havia visto tornarem-se muito bons matemáticos, menos pela matemática que Monge ou Lagrange lhes explicava, do que por aquela que praticavam diante deles. Ele próprio havia, aparentemente, aproveitado suas funções administrativas para construir uma competência de matemático que, mais tarde, exerceria na Universidade de Dijon. Assim como havia acrescentado o hebraico às línguas antigas que ensinava e composto um Ensaio sobre a gramática hebraica. Ele pensava — só Deus sabe a razão — que essa língua tinha futuro. Enfim, ele havia construído para si, a contragosto, mas com o maior rigor, uma competência de representante do povo. Em suma, ele sabia que a vontade dos indivíduos e o perigo da Pátria poderiam fazer nascer capacidades inéditas em circunstâncias em que a urgência obrigava a queimar as etapas da progressão explicativa. Ele pensava que este estado de exceção, comandado pelas necessidades da Nação, em nada diferia, em seu princípio, da urgência que rege a exploração do mundo pela criança, ou dessa outra exigência que rege a via singular dos sábios e dos inventores. Por meio da experiência da criança, do sábio e do revolucionário, o método do acaso praticado com sucesso pelos estudantes flamengos revelava seu segundo segredo. Esse método da igualdade era, antes de mais nada, um método da vontade. Podia-se aprender sozinho, e sem mestre explicador, quando se queria, pela tensão de seu próprio desejo ou pelas contingências da situação. (RANCIÈRE, 2002, p. 24-25)

     

     

    Capítulo 1 - Uma aventura intelectual

     

    Lemos sobre uma experiência do Professor Joseph Jacotot, da Universidade de Louvain (Bélgica), em 1818 na Holanda.

    Jacotot, exilado na Holanda, tem alunos que não entendem a sua língua nativa, o francês. A primeira atividade que ele propõe à turma não é o aprendizado de sua língua, mas a leitura do texto do francês François Fénelon, Telêmaco, sobre o filho de Ulisses na Odisseia de Homero, numa edição bilíngüe. Além da leitura, ele pede aos alunos que escrevam, em francês, o que pensaram enquanto haviam lido o livro.

    Jacotot é surpreendido pelo resultado.

    A partir dessa história, Rancière expõe suas perspectivas sobre ensino, aprendizagem, embrutecimento e emancipação. Ele também questiona a necessidade de explicarmos os textos para alguém que aprende algo.

    Para o autor, a experiência de Jacotot revela que ensinar é mais do que transmitir: “Ensinar era, em um mesmo movimento, transmitir conhecimentos e formar os espíritos, levando-os, segundo uma progressão ordenada, do simples ao complexo.” (RANCIÈRE, 2002, p. 17)

    Os alunos holandeses, a partir da leitura do texto bilíngue francês-holandês, aprendem o idioma de Jacotot. Para que serviria então a explicação do professor?

     

    A ordem explicadora

     

    Eis o problema colocado por Rancière: se alguém não entende um texto, por que essa pessoa entenderia melhor a explicação do próprio texto que ela não entendeu? O autor questiona ainda a maneira de se transmitir a forma que tem a compreensão.

     

    Eis, por exemplo, um livro entre as mãos do aluno. Esse livro é composto de um conjunto de raciocínios destinados a fazer o aluno compreender uma matéria. Mas, eis que, agora, o mestre toma a palavra para explicar o livro. Ele faz um conjunto de raciocínios para explicar o conjunto de raciocínios em que o livro se constitui. Mas, por que teria o livro necessidade de tal assistência? Ao invés de pagar um explicador, o pai de família não poderia, simplesmente, dar o livro a seu filho, não poderia este compreender, diretamente, os raciocínios do livro? E, caso não o fizesse, por que, então, compreenderia melhor os raciocínios que lhe explicarão aquilo que não compreendeu? Teriam esses últimos uma natureza diferente? E não seria necessário, nesse caso, explicar, ainda, a forma de compreendê-los? (RANCIÈRE, 2002, p. 18)

     

    Jacotot observa a distância entre aprender e compreender marcada pelo privilégio da palavra sobre a escrita e do ouvido sobre a vista, uma vez que temos que a explicação oral é necessária para explicar a explicação escrita. Nesse contexto, perde-se a autonomia na relação entre aprendizagem e verificação, já que a verificação da compreensão do aluno é feita por um mestre.

     

    Trata-se de compreendere essa simples palavra recobre tudo com um véu: compreender é o que a criança não pode fazer sem as explicações fornecidas, em certa ordem progressiva, por um mestre. Mais tarde, por tantos mestres quanto forem as matérias a compreender. A isso se soma a estranha circunstância, de que as explicações, depois que se iniciou a era do progresso, não cessam de se aperfeiçoar para melhor explicar, melhor fazer compreender, melhor ensinar a aprender, sem que jamais se possa verificar um aperfeiçoamento correspondente na dita compreensão. Antes pelo contrário, começa a erguer-se um triste rumor, que não mais deixará de se amplificar, de um contínuo declínio na eficácia do sistema explicativo, a carecer, evidentemente, de novo aperfeiçoamento para tornar as explicações mais fáceis de serem compreendidas por aqueles que não as compreendem... (RANCIÈRE, 2002, p. 19)

     

    A experiência de Jacotot inverte a lógica do sistema explicador, que demonstra que não se pode compreender algo por si só. Eis então, em vez de uma imagem na qual o incapaz necessita daquele que explique, o contrário: o explicador revelado como quem precisa constituir alguém como incapaz, no que concerne à habilidade de compreender algo por si só, para demonstrar-lhe a necessidade de sua explicação. Essa incapacidade, nas palavras de Rancière é “a ficção estruturante da concepção explicadora de mundo.” (RANCIÈRE, 2002, p. 20)

    Para o autor, no contexto da lógica do sistema explicador, há uma cisão entre dois mundos, duas inteligências, sustentada por um mito pedagógico. Ele descreve essa cisão.

    A inteligência superior:

     

    conhece as coisas por suas razões, procede por método, do simples ao complexo, da parte ao todo. É ela que permite ao mestre transmitir seus conhecimentos, adaptando-os às capacidades intelectuais do aluno, e verificar se o aluno entendeu o que acabou de aprender. (RANCIÈRE, 2002, p. 20)

     

    Enquanto a inteligência inferior, a inteligência “da criancinha” e “do homem do povo”, corresponde a “percepções ao acaso, retém, interpreta e repete empiricamente, no estreito círculo dos hábitos e das necessidades” (RANCIÈRE, 2002, p. 20)

    Rancière considera embrutecedora a subordinação de uma inteligência a outra:

     

    O embrutecedor não é o velho mestre obtuso que entope a cabeça de seus alunos de conhecimentos indigestos, nem o ser maléfico que pratica a dupla verdade, para assegurar seu poder e a ordem social. Ao contrário, é exatamente por ser culto, esclarecido e de boa-fé que ele é mais eficaz. Mais ele é culto, mais se mostra evidente a ele a distância que vai de seu saber à ignorância dos ignorantes. Mais ele é esclarecido, e lhe parece óbvia a diferença que há entre tatear às escuras e buscar com método, mais ele se aplicará em substituir pelo espírito a letra, pela clareza das explicações a autoridade do livro. Antes de qualquer coisa, dir-se-á, é preciso que o aluno compreenda e, para isso, que a ele se forneçam explicações cada vez melhores. Tal é a preocupação do pedagogo esclarecido: a criança está compreendendo? Ela não compreende? Encontrarei maneiras novas de explicar-lhe, mais rigorosas em seu princípio, mais atrativas em sua forma; e verificarei que ele compreendeu. (RANCIÈRE, 2002, p. 20-21)

     

    O esclarecimento é tido como superioridade e revela uma distância entre mestre e educando. A palavra compreender é, para Rancière, causadora de todo mal, ou seja, da insegurança em relação à própria razão. A cada vez que o professor verifica se o aluno compreendeu, afirma a superioridade de sua razão em relação à do aprendiz.

    Assim, a nova inteligência que a criança adquire é a das explicações do mestre, que lhe possibilitam vir a tornar-se um explicador – um “homem do progresso”.

     

    O acaso e a vontade

     

    Rancière equipara dois métodos: método da igualdade = método da vontade.

    A distância imaginária, o princípio do embrutecimento pedagógico, entre Jacotot e seus alunos é suprimida pela impossibilidade da turma compreender as palavras e explicações do mestre. Daí a possibilidade que se abre pela edição bilíngue do livro, de os alunos realizarem não apenas uma leitura, mas o aprendizado da língua do mestre, sem as explicações deste.

    Esse aprendizado ocorre a partir da vontade:

     

    Tudo se deu, a rigor, entre a inteligência de Fénelon, que havia querido fazer um certo uso da língua francesa, a do tradutor, que havia querido fornecer o equivalente em holandês, e a inteligência dos aprendizes, que queriam aprender a língua francesa. E ficou evidente que nenhuma outra inteligência era necessária. (RANCIÈRE, 2002, p. 22)

     

    E também a partir da tradução:

     

    [o ato de] Fénelon escritor era, ele próprio, um ato de tradutor: para traduzir uma lição de política em um relato legendário, Fénelon havia transposto, em francês do seu século, o grego de Homero, o latim de Virgílio e a língua, culta ou primitiva, de cem outros textos, do conto infantil à história erudita. Ele havia aplicado a essa dupla tradução a mesma inteligência que eles empregavam, por sua vez, para relatar com frases de seu livro o que pensavam desse livro. (RANCIÈRE, 2002, p. 23)

     

    A compreensão, assim, está ligada à tradução: “Compreender não é mais do que traduzir, isto é, fornecer o equivalente de um texto, mas não sua razão.” (RANCIÈRE, 2002, p. 22)

    Os estudantes não tinham nada além das palavras que precisavam compreender. A tradução aparece como uma vontade, uma expressão pelo aprender e pelo compreender. Traduzir se faz pela capacidade de dizer o que se pensa nas palavras de outrem. E poderíamos estender essa expressão da tradução à compreensão de textos em nossa própria língua, como os que estudamos ao longo do curso.

    O aprendizado da turma de Jacotot é possível também pela inteligência, a própria inteligência dos alunos, e não uma nova, transmitida por um mestre. O que os move é a adivinhação, a vontade de reconhecer e de responder, que realizam enquanto seres humanos, ou seja, enquanto seres iguais:

     

    a inteligência que os fizera aprender o francês em Telêmaco era a mesma que os havia feito aprender a língua materna: observando e retendo, repetindo e verificando, associando o que buscavam aprender àquilo que já conheciam, fazendo e refletindo sobre o que haviam feito. (RANCIÈRE, 2002, p. 23)

     

    O mestre emancipador

     

    A experiência de Jacotot nos revela a dissociação tanto do sábio e do mestre como da inteligência e da vontade. Seus alunos não aprenderam sem mestre, mas sem sua explicação.

     

    Entre o mestre e o aluno se estabelecera uma relação de vontade a vontade: relação de dominação do mestre, que tivera por consequência uma relação inteiramente livre da inteligência do aluno com aquela do livro — inteligência do livro que era, também, a coisa comum, o laço intelectual igualitário entre o mestre e o aluno. (RANCIÈRE, 2002, p. 25)

     

    A emancipação se dá então pela ligação que o aluno faz entre vontade de Jacotot e a inteligência do livro. “Chamar-se-á emancipação à diferença conhecida e mantida entre as duas relações, o ato de uma inteligência que não obedece senão a ela mesma, ainda que a vontade obedeça a uma outra vontade.” (RANCIÈRE, 2002, p. 26)

    Há para o autor quatro elementos em jogo: “O ato de aprender podia ser reproduzido segundo quatro determinações diversamente combinadas: por um mestre emancipador ou por um mestre embrutecedor; por um mestre sábio ou por um mestre ignorante.” (RANCIÈRE, 2002, p. 26)

    Após o resultado de sua primeira experiência, Jacotot decide então repetir o que acontecera por acaso, e experimenta ensinar o que não sabe: pintura e piano.

    Quais seriam os fins do ensino emancipador de Jacotot? E mesmo quando nos pretendemos emancipadores, o que pode haver de embrutecedor em nossa forma de ensinar? Rancière diz que não se pode comparar os métodos tradicionais e o de Jacotot porque seu fim não era a transmissão do conhecimento aos alunos, e ainda, o método era do aluno.

     

    O círculo da potência

     

    Para ensinar aquilo que ignora, é preciso emancipar o aluno, o que quer dizer que este precisa usar sua própria inteligência, e é preciso que nós também sejamos emancipados.

    Para realizar o que Rancière chama círculo da potência, fundamentado na experiência do mestre ignorante Jacotot, há alguns problemas já de início:

     

    Como poderá o mestre sábio aceitar que é capaz de ensinar tão bem aquilo que ignora quanto o que sabe? Ele só poderá tomar essa argumentação da potência intelectual como uma desvalorização de sua ciência. E o ignorante, por sua vez, não se acredita capaz de aprender por si mesmo – menos, ainda, de instruir um outro ignorante. Os excluídos do mundo da inteligência subscrevem, eles próprios, o veredicto de sua exclusão. Em suma, o círculo da emancipação deve ser começado. (RANCIÈRE, 2002, p. 28)

     

    Além disso, o ensino que conhecemos é o “Ensino Universal”, o velho método, ou, o Velho, que liga o aluno ao explicador no círculo de impotência. Mas, vale notar, como faz Rancière, que o método próprio, sem explicação, é praticado por todos quando necessário, mas não o difundimos nem o reconhecemos. “Repete metodicamente o método do acaso que te deu a medida de teu poder. A mesma inteligência está em ação em todos os atos do espírito humano.” (RANCIÈRE, 2002, p. 28)

    E então podemos nos perguntar: quem de nós dá esse salto do Velho ao método próprio? Será que eu chego a dar esse salto, se tento explicar, ainda que por escrito, os textos para vocês nesse período de isolamento?

    Podemos também retomar para esta reflexão alguns termos que vimos em outros textos, como a noção de instrução em Olivier Reboul, a educação como prática da liberdade em hooks e a autonomia kantiana – bem como a retomada desta feita por Adorno, e pensarmos acerca da relação não apenas entre educação e emancipação, mas também entre educação e controle.

    Finalizo com Rancière:

     

    As coisas estavam, portanto, muito claras: não se tratava aí de um método para instruir o povo, mas da graça a ser anunciada aos pobres: eles podiam tudo o que pode um homem. Bastava anunciar. Jacotot decidiu consagrar-se a isso. Ele proclamou que se pode ensinar o que se ignora e que um pai de família pobre e ignorante é capaz, se emancipado, de fazer a educação de seus filhos sem recorrer a qualquer explicador. E indicou o meio de se realizar esse Ensino Universal: aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto, segundo o princípio de que todos os homens têm igual inteligência. (RANCIÈRE, 2002, p. 30)

     

     

    ***

     

    Exercício com a BNCC

     

    À luz da crítica feita por Rancière à lógica do sistema explicador e da sua proposta de emancipação, proponho que vocês façam a leitura das diretrizes dadas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o ensino no nível e na área em que vocês exercem ou exercerão a atividade de ensino.

    A BNCC está disponível em:

    http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf

    Vocês verão que o documento possui seiscentas páginas. Estudos da Base na íntegra resultam em grandes contribuições para a educação, mas não é essa a proposta para o nosso caso. Sugiro que neste momento vocês se familiarizem com o documento fazendo uma leitura das primeiras páginas e o utilizem para consulta.

    Como texto complementar, recomendo A BNCC da Reforma do Ensino Médio: o resgate de um empoeirado discurso de Mônica Ribeiro da Silva, disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982018000100301

     

    Destaco alguns pontos da BNCC e compartilho algumas das minhas impressões sobre determinadas passagens:

     

    Apresentação (página 5)

     

    A expressão “aprendizagem de qualidade” aparece, logo no início da BNCC, como meta do Brasil. Sobre a redação da Base:

     

    Elaborada por especialistas de todas as áreas do conhecimento, a Base é um documento completo e contemporâneo, que corresponde às demandas do estudante desta época, preparando-o para o futuro.

     

    Temos então especialistas – seriam a inteligência superior mencionada por Rancière? Poderiam ser estes espcialistas influenciados pelos tutores dos quais fala Kant? – que elaboram os caminhos a serem percorridos pela educação conforme o que eles compreendem como demanda dos estudantes, de modo a preparar estes últimos para o futuro, ou seja, preparando-os para tornarem-se os adultos que nós, enquanto sociedade, desejamos que se tornem (lembram do texto de Kohan?). E atentem a este trecho: “Concluída após amplos debates com a sociedade e os educadores do Brasil” – aqui aparecem os educadores, os intermediários entre o conhecimento e os estudantes. E podemos nos perguntar: o quão amplo é esse debate?

     

    Mas o que é a BNCC? (página 7)

     

    A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE). Este documento normativo aplica-se exclusivamente à educação escolar, tal como a define o § 1º do Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996), e está orientado pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva, como fundamentado nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCN).

     

    Referências mencionadas no trecho acima:

     

    Plano Nacional de Educação (PNE): http://pne.mec.gov.br/

     

    § 1º do Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996): http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm

     

    Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCN): http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=13448-diretrizes-curiculares-nacionais-2013-pdf&Itemid=30192

     

    A BNCC visa assegurar aos estudantes dez competências gerais e as habilidades que são mobilizadas por essas competências. O que se compreende por “competência” e por “habilidade”?

     

    Na BNCC, competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho. (BRASIL, 2017, p. 8)

     

    E lemos na página 12:

     

    Em 2017, com a alteração da LDB por força da Lei nº 13.415/2017, a legislação brasileira passa a utilizar, concomitantemente, duas nomenclaturas para se referir às finalidades da educação: Art. 35-A. A Base Nacional Comum Curricular definirá direitos e objetivos de aprendizagem do ensino médio, conforme diretrizes do Conselho Nacional de Educação, nas seguintes áreas do conhecimento [...] Art. 36. § 1º A organização das áreas de que trata o caput e das respectivas competências e habilidades será feita de acordo com critérios estabelecidos em cada sistema de ensino (BRASIL, 20178; ênfases adicionadas). Trata-se, portanto, de maneiras diferentes e intercambiáveis para designar algo comum, ou seja, aquilo que os estudantes devem aprender na Educação Básica, o que inclui tanto os saberes quanto a capacidade de mobilizá-los e aplicá-los.

    Entre as páginas 23 e 34, a estrutura da BNCC é apresentada, seguida de orientações para nos guiarmos pelo documento, conforme códigos que se referem às diferentes etapas escolares e a cada área de ensino.

    Sugiro que vocês leiam sobre as competências e habilidades das etapas e áreas em que vocês lecionam/lecionarão e reflitam, à luz dos estudos do texto de Rancière e também da bagagem de leituras que vocês já possuem, acerca dessas diretrizes dadas pela BNCC.

     

     

    Referências bibliográficas

     

    BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Base Nacional Comum Curricular, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf . Acesso em: 21 mar. 2020

     

    RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante: Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2002, p. 15-30.

     

    DA SILVA, Mônica Ribeiro. “A BNCC da Reforma do Ensino Médio: o resgate de um empoeirado discurso”. In: Educação em Revista. Vol. 34, Belo Horizonte: UFMG, 2018.

     


     


  • AULA 11 - 02.06 - A dimensão ético-política da Educação

    Olá, pessoal.

    Espero que vocês e seus entes queridos estejam bem.

     

    Hoje retomo o programa, por e-mail e pelo moodle.

    Suprimo a segunda parte da seção Fins e valores na prática educacional como problemas filosóficos – Educar para quê? da bibliografia de nosso programa, que ficou  bastante extensa, aliás, e com isso, em vez de trabalharmos com o texto Fundamentos da Educação de Roque Spencer Maciel de Barros, passo para A crise na educação da Hannah Arendt.

    Continuo aguardando as respostas de vocês nos formulários ou um contato por e-mail, caso ainda não tenhamos conversado, para combinarmos a atividade a ser entregue para a conclusão do semestre.

     

    Compartilho também o cronograma para nossas terças-feiras de Junho:

     

    ·         09.06 (semana que vem) das 19h às 20h: Google Meet (atividade síncrona que poderá ser acessada posteriormente) – conversa para quebrar o gelo / teste / dúvidas sobre os próximos passos.

     

    ·         16.06: e-mail e moodle – Filosofia, Educação e prática docente (SIBILIA, Paula. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão, p. 27-33; 45-61.)

     

    ·         23.06: e-mail e moodle – orientações para leitura / fichamento / produção de texto.

     

    ·         30.06 das 19h às 20:30: Google Meet (atividade síncrona que poderá ser acessada posteriormente) – orientações para leitura / fichamento / produção de texto.

     

    E ainda teremos as datas 07, 14, 21 e 28.07. Em breve compartilho o cronograma de Julho com vocês.

    Aproveito para comentar que enviei um texto para o repositório Educação em tempos de isolamento da FEUSP: http://www4.fe.usp.br/wp-content/uploads/juliana-oliva.pdf?fbclid=IwAR0Zgnnw7tiqWwgCayscHxM0GRFRXjyOujfcVAVgf5zOliyZ8UlLDNsu0Q0

     

    Abraços, força, paciência e criatividade para seguirmos!

    Juliana

     

     

    Hannah Arendt (teórica política – ou filósofa, apesar da recusa da autora por essa identificação – Alemanha, 1906 – EUA, 1975)

     

    Identificamos Hannah Arendt como filósofa. Contudo, apesar de ter estudado e ensinado Filosofia, ela não se identificava como uma filósofa, mas como teórica política. Arendt era judia e passou pelo campo de internação de Gurs na França, mas antes de ser levada ao campo de concentração, conseguiu partir para os Estados Unidos.

    Dentre suas obras, As origens do totalitarismo e Eichmann em Jerusalém, cujo tema central é o conceito de Arendt de banalidade do mal, tiveram e ainda tem bastante destaque.

     

    Sobre a relação entre Hannah Arendt e educação pelo Professor José Sérgio Fonseca de Carvalho da FEUSP, que é estudioso de Arendt:

     

    Mais sobre a vida e a obra da autora, nos primeiros 60 minutos de https://sesc.digital/conteudo/educacao/19524/contextos-hannah-arendt-e-a-educacao-dia-1

     

    E o filme Hannah Arendt:

     

     

     

    Minhas considerações sobre o texto que acompanhamos hoje: Destaco alguns pontos da relação entre os conceitos de educação, crise, temporalidade e autonomia em A crise na educação (palestra proferida em 1958), parte do livro Entre o passado e o presente (publicado em 1961)

     

    Comecemos pelo final do texto:

     

    O que nos diz respeito, e que não podemos portanto delegar à ciência específica da pedagogia, é a relação entre adultos e crianças em geral, ou, para colocá-lo em termos ainda mais gerais e exatos, nossa atitude face ao fato da natalidade: o fato de todos nós virmos ao mundo ao nascermos e de ser o mundo constantemente renovado mediante o nascimento. (ARENDT, 1972, p. 247 / p. 18 do arquivo)

     

    Hannah Arendt, que não é uma teórica da educação, no texto A crise na educação, desloca, da pedagogia para a filosofia, a análise da natalidade enquanto fato – seres nascem para o mundo – que diz respeito a todos os indivíduos e enquanto transformação constante do mundo, aspectos que influem na maneira como adultos e crianças se relacionam.

    Mas se estamos falando sobre uma crise da educação, há uma primeira questão que se coloca: o que é educação? Tomemos o final do texto:

     

    A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum. (ARENDT, 1972, p. 247 / p. 18 do arquivo)

     

    A educação é tomada por Arendt de modo amplo, como responsabilidade de todos os adultos, estes, designados como responsáveis não apenas pela criança, mas também pelo mundo. Eis a importância da compreensão que temos da relação entre a nossa geração e as novas gerações na definição que podemos elaborar para a palavra “educação”. Ao longo do texto de Arendt fica claro também o quanto precisamos repensar a distinção que fazemos entre o mundo de nossa geração e um certo mundo do “amanhã”, a ser construído pelas crianças de hoje, por vezes identificadas como “o futuro”. Como os indivíduos aos quais Arendt se refere como recém chegados, recebidos em nosso mundo, poderiam dar origem a uma realidade completamente nova? E ainda, quando almejamos um mundo diferente daquele que conhecemos, mas orientamos esses recém chegados quanto ao tipo de mundo que queremos, não estamos então falando de um mundo de aspectos muito parecidos com aquele em que já vivemos?

    Seriam então também estas questões pulsando no texto de Arendt, que nos dariam pistas sobre a crise que há na educação naquele momento?

    Mas o que é uma crise?

     

    I

     

    A palavra “crise”, que pode ser usada para referirmo-nos a um grave desequilíbrio entre a produção e o consumo, estende-se a outras esferas da sociedade. O desequilíbrio identificado por Arendt na educação não é decadente, mas decorre da ausência de uma resposta básica para uma pergunta, resposta esta que nem era identificada como tal por estar assentada em ideias aceitas sem exame crítico. A crise é oportunidade de rompimento:

     

    É a oportunidade, proporcionada pelo próprio fato da crise - que dilacera fachadas e oblitera preconceitos -, de explorar e investigar a essência da questão em tudo aquilo que foi posto a nu, e a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo. O desaparecimento de preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos apoiávamos de ordinário sem querer perceber que originariamente elas constituíam respostas a questões. Uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas novas ou velhas, mas de qualquer modo julgamentos diretos. Uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com preconceitos. Uma atitude dessas não apenas aguça a crise como nos priva da experiência da realidade e da oportunidade por ela proporcionada à reflexão.  (ARENDT, 1972, p. 223 / 1-2)

     

    Uma crise na educação nos Estados Unidos na década de 1960 não é o mesmo tipo de acontecimento que houve nas grandes guerras e nos campos de concentração, mas Arendt nos chama a atenção para a seriedade e para o aspecto político dessa crise, bem como para sua amplitude, a crise na educação reflete a crise do mundo moderno. E no contexto político:

     

    Sempre que, em questões políticas, o são juízo humano fracassa ou renuncia à tentativa de fornecer respostas, nos deparamos com uma crise; pois essa espécie de juízo é, na realidade, aquele senso comum em virtude do qual nós e nossos cinco sentidos individuais estão adaptados a um único mundo comum a todos nós, e com a ajuda do qual nele nos movemos. O desaparecimento do senso comum nos dias atuais é o sinal mais seguro da crise atual. Em toda crise, é destruída uma parte do mundo, alguma coisa comum a todos nós. A falência do bom senso aponta, como uma vara mágica, o lugar em que ocorreu esse desmoronamento. (ARENDT, 1972, p. 226 / p. 4-5)

     

    Da relação entre política e educação nos Estados Unidos

     

    Há um entusiasmo histórico estadunidense pelo novo, desde o lema impresso nas notas de dólar: Novus Ordo Seclorum (Uma Nova Ordem dos Séculos, ou, conforme a tradução da nossa edição, Uma Nova Ordem do Mundo), referindo-se à imigração, constituinte daquele país, esta, segundo Arendt, relacionada à consciência política e à estrutura psíquica estadunidenses, até a crença no início de um mundo novo a ser construído por quem acaba de nascer. A autora entende que é a educação dos filhos de imigrantes, aliás, que possibilita a fusão de diversos grupos étnicos, pela “americanização” dos filhos dos imigrantes.

    A ideia de um mundo novo que seja fruto da educação pode ser para o adulto um escape dos riscos de fracasso de suas próprias ações junto aos seus iguais, ou seja, de sua própria geração. Mas uma nova ordem política, ressalta Arendt, ideia que pertence ao velho mundo, só seria possível mediante o banimento de todas as pessoas mais velhas do Estado, uma vez que quaisquer que sejam nossas propostas para uma nova ordem política, estas sempre serão mais velhas do que os próprios recém nascidos a quem atribuímos a tarefa de fundar um mundo novo, e deles tomaríamos essa empreitada:  “preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo.” (ARENDT, 1972, p. 226/3-4). E ainda, é importante separar educação de política.

     

    A educação não pode desempenhar papel nenhum na política, pois na política lidamos com aqueles que já estão educados. Quem quer que queira educar adultos na realidade pretende agir como guardião e impedi-los de atividade, política. Como não se pode educar adultos a palavra "educação" soa mal em política; o que há é um simulacro de educação, enquanto o objetivo real e a coerção sem o uso da força. (ARENDT, 1972, p. 225/3)

     

    A educação americanizada, à qual todos tem o direito, que sustenta a ideia de que um mundo novo é construído pelas crianças que chegam em casa com um idioma diferente que afeta seus pais imigrantes, desfazendo um mundo antigo, está imbuída de um papel político. Essa mesma educação, em prática num país avançado e moderno, para ficarmos nos termos da autora, naquele momento encontra-se em atraso em relação aos países da Europa. A crise está relacionada à aceitação de pressupostos de teorias modernas da educação.

     

    [E]m parte alguma os problemas educacionais de uma sociedade de massas se tornaram tão agudos, e em nenhum outro lugar as teorias mais modernas no campo da Pedagogia foram aceitas tão servil e indiscriminadamente. Desse modo, a crise na educação americana de um lado, anuncia a bancarrota da educação progressiva e, de outro, apresenta um problema, imensamente difícil por ter surgido sob as condições de uma sociedade de massas e em resposta às suas exigências. (ARENDT, 1972, p. 226-228/5)

     

    A autora ressalta também que aquelas práticas educacionais igualitárias, ainda que tivessem resultados positivos, estão apoiadas no sacrifício da autoridade do indivíduo que ensina. Mas, “em todo caso, esses fatores gerais não podem explicar a crise em que nos encontramos presentemente, e tampouco justificam as medidas que a precipitaram.” (ARENDT, 1972, p. 229/6)

     

     

    II

     

    Esta segunda parte do texto apresenta uma crítica aos pressupostos das teorias da progressive education (cujo grande nome é John Dewey), conhecida aqui no Brasil como Escola Nova (para nós, Anísio Teixeira é o grande nome desse campo). Ainda que Arendt não as discuta, refere-se às práticas educacionais presentes nas escolas calcadas nos pressupostos dessas teorias. Eis então uma reflexão filosófica sobre a criança e a educação na contramão de teorias modernas que aparecem em alguns textos que estudamos em nosso programa.

     

    1. A ideia de um mundo e uma sociedade infantil autônoma na qual a autoridade vem do próprio grupo, e não do adulto, que apenas interfere para que o pior não aconteça. Nesse cenário, do indivíduo confrontado pela maioria do grupo, daqueles que se impõem, a criança encontra-se sob uma autoridade mais forte e mais tirânica. Nessa espécie de “mini democracia”, as crianças se organizam sem a orientação dos adultos, o que não significa que elas não reproduzam aspectos do mundo dos adultos, inclusive aspectos tirânicos. Nessa suposta emancipação do mundo dos adultos, a criança não está livre, não pode se rebelar e nem mesmo escapar para o próprio mundo dos adultos.

     

    2. Pedagogia como ciência do ensino em geral, sob influência da psicologia moderna e dos princípios do pragmatismo. Considerar professor aquele que pode ensinar qualquer coisa, que não se especializou nas disciplinas que ensina negligencia a formação dos professores e abala a efetividade da autoridade daquele que sabe.

     

    3. Substituição do aprendizado pelo fazer, que decorre de uma ideia de que “só é possível conhecer e compreender aquilo que nós mesmos fizemos.” Espera-se que o professor ensine como o saber é produzido, a habilidade se sobrepõe ao conhecimento. O trabalho é substituído pelo brincar, ou seja, toda atividade a ser desenvolvida pela criança deve ser divertida ou lúdica, e mais uma vez o mundo da criança é tido como absoluto, como se a infância não fosse temporária e a criança não estivesse em desenvolvimento para tornar-se um adulto. Assim, extingue-se o relacionamento natural entre crianças e adultos. Arendt critica a pedagogia que afirma que as crianças aprendem somente a partir da própria experiência. Tal pressuposto desqualifica certa transmissão de conhecimento que pode se dar, por exemplo, em uma aula expositiva na qual o docente narra fatos históricos importantes para a compreensão do presente, conhecimento que a criança não alcançará por meio de sua experiência em seu grupo.

     

    Eis então a crise:

     

    A atual crise, na América, resulta do reconhecimento do caráter destrutivo desses pressupostos básicos e de uma desesperada tentativa de reformar todo o sistema educacional, ou seja, de transformá-lo inteiramente. Ao fazê-lo, o que se está procurando de fato - exceto quanto aos planos de uma imensa ampliação das facilidades de educação nas Ciências Físicas e em tecnologia - não é mais que uma restauração: o ensino será conduzido de novo com autoridade; o brinquedo deverá ser interrompido durante as horas de aula, e o trabalho sério retomado; a ênfase será deslocada das habilidades extracurriculares para os conhecimentos prescritos no currículo; fala-se mesmo, por fim, de transformar os atuais currículos dos professores de modo que eles mesmos tenham de aprender algo antes de se converterem em negligentes para com as crianças. (ARENDT, 1972, 233-234 / p. 9)

     

    O questionamento desses três pressupostos, uma vez aceitos, e agora insuficientes como resposta, deflagra uma crise. A crise da educação ocorre quando já não sabemos muito bem o que é o mundo público, o nosso mundo comum. Mas Arendt deixa de lado as discussões sobre as reformas propostas e suas questões técnicas e foca em duas questões: 1. “Quais foram os aspectos do mundo moderno e de sua crise que efetivamente se revelaram na crise educacional, isto é, quais são os motivos reais para que, durante décadas, se pudessem dizer e fazer coisas em contradição tão flagrante com o bom senso?” 2. “o que podemos aprender dessa crise acerca da essência da educação - não no sentido de que sempre se pode aprender, dos erros, o que não se deve fazer, mas sim refletindo sobre o papel que a educação desempenha em toda civilização, ou seja, sobre a obrigação que a existência de crianças impõe a toda sociedade humana?”

     

    III

     

    Arendt começa pela segunda questão, que trata do papel da educação na civilização e da obrigação imposta à sociedade pela existência de crianças, e do que podemos aprender, levando esses dois aspectos em consideração, acerca dessa crise da essência da educação.

    Vimos na segunda seção que um dos graves problemas apontados pela autora está na cisão entre o mundo dos adultos e a infância. Elementar e necessária, a educação, que é mais do que um mero treinamento para a sobrevivência, acolhe o recém chegado no mundo. Há uma história acontecendo, o mundo tem uma memória e objetos duradouros, e os recém chegados estão em estado de vir a ser, mais do que um novo ser humano, é um ser humano em processo de crescimento vital.

    Aos pais, cabem não apenas os cuidados com a criança e a sua proteção, mas também não deixar de lado as conquistas que o mundo acumulou em sua história. No mundo público, no âmbito político, nós, adultos, somos responsáveis pelo mundo, o qual nem sempre corresponde ao que desejamos, e por transformá-lo.

     

    Os pais humanos, contudo, não apenas trouxeram seus filhos à vida mediante a concepção e o nascimento, mas simultaneamente os introduziram em um mundo. Eles assumem na educação a responsabilidade, ao mesmo tempo, pela vida e desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo. Essas duas responsabilidades de modo algum coincidem; com efeito podem entrar em mútuo conflito. A responsabilidade pelo desenvolvimento da criança volta-se em certo sentido contra o mundo: a criança requer cuidado e proteção especiais para que nada de destrutivo lhe aconteça de parte do mundo. Porém também o mundo necessita de proteção, para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração. (ARENDT, 1972, 235 / p. 10)

     

    Eis então a esfera privada da família, segura, na qual a criança é protegida dos olhares do mundo público e para a qual os adultos retornam diariamente. Do outro lado, a vida pública, que reúne todos os indivíduos e os impedem de colidir, revela um espaço comum, construído pelo trabalho, pelas mãos de todos nós. Ao mesmo tempo em que a criança precisa estar protegida do mundo público, a ambiência em que, entre iguais, se dá o seu desenvolvimento, não pode ser considerada um tipo de vida pública. A suposta vida pública das crianças em um grupo de indivíduos da sua idade, concebida pela educação moderna, é artificial e prejudica o desenvolvimento e o crescimento vitais em curso que resultará na vida adulta. Sobre esse contexto, Arendt questiona:

     

    Como pôde então acontecer que as mais elementares condições de vida necessárias ao crescimento e desenvolvimento da criança fossem desprezadas ou simplesmente ignoradas? Como pôde acontecer que se expusesse a criança àquilo que, mais que qualquer outra coisa, caracterizava o mundo adulto, o seu aspecto público, logo após se ter chegado à conclusão de que o erro em toda a educação passada fora ver a criança como não sendo mais que um adulto em tamanho reduzido? (ARENDT, 1972, 237 / p. 11)

     

    As respostas para tais perguntas não serão encontradas exatamente no campo da educação, mas nas bases constituídas pelas concepções modernas de vida privada e mundo público sobre as quais a educação moderna se edifica. A emancipação da vida e sua preservação, socialmente compreendidas como bem supremo, para além do âmbito privado, com ares de liberação para trabalhadores e mulheres, que passam a preencher funções necessárias no processo vital da sociedade, confunde o público e o privado. Cada ser humano é distinto de todos os outros e não existe para apenas ser uma peça para produção e consumo na sociedade. No caso das crianças, elas ainda não participam do mundo:

     

    Os últimos a serem afetados por esse processo de emancipação foram as crianças, e aquilo mesmo que significara uma verdadeira liberação para os trabalhadores e mulheres - pois eles não eram somente trabalhadores e mulheres, mas também pessoas, tendo portanto direito ao mundo público, isto é, a verem e serem vistos, a falar e serem ouvidos - constituiu abandono e traição no caso das crianças, que ainda estão no estágio em que o simples fato da vida e do crescimento prepondera sobre o fator personalidade. (ARENDT, 1972, p. 237-238 / p. 11)

     

    Arendt não ignora que o objetivo dos sistemas educacionais modernos seja o bem estar da criança. Mas se opõe a uma educação centrada na criança, naquele que aprende. O recém-chegado é novo em relação ao mundo, que já existia e continua a existir, para além da passagem dos seres humanos por ele. Assim, para a autora, a educação deve ser centrada no mundo.

    Cabe à escola então, que não é o mundo e que não deve fingir sê-lo, mediar a transição da vida privada da casa, da família, para o mundo público pela qual passa a criança.

     

    Na medida em que a criança não tem familiaridade com o mundo, deve-se introduzi-la aos poucos a ele; na medida em que ela é nova, deve-se cuidar para que essa coisa nova chegue à fruição em relação ao mundo como ele é. Em todo caso, todavia, o educador está aqui em relação ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade, embora não o tenha feito e ainda que secreta ou abertamente possa querer que ele fosse diferente do que é. Essa responsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores; ela está implícita no fato de que os jovens são introduzidos por adultos em um mundo em contínua mudança. Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação. (ARENDT, 1972, p. 239 / p. 12)

     

    Não é incomum que o indivíduo moderno não assuma a responsabilidade para dar continuidade a um mundo que não o satisfaz e que lhe dá desgosto e assim deixe para as crianças a tentativa de entendê-lo. Além disso, na educação moderna, a autoridade docente perde força. A autoridade se assenta na responsabilidade pelo mundo e, no caso do professor, é importante sublinhar a diferença, bem como a relação, entre qualificação e autoridade. “A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo.” (ARENDT, 1972, p. 239 / p. 13) Alguns adultos lavam suas mãos, recusando assumir esse lugar semelhante a de um “representante de todos os habitantes adultos” aos olhos da criança. Ou seja, eles se recusam a assumir-se como parte do mundo e a explicar a realidade, a transmitir suas experiências aos mais jovens, o que os separa não apenas das novas gerações, mas também das anteriores, de toda tradição e de um legado cultural, que eles terminam por recusar aos recém chegados.

    Para compreendermos essa noção de autoridade, novamente, faz-se necessário separar educação e política:

     

    Ao removermos a autoridade da vida política e pública, pode ser que isso signifique que, de agora em diante, se exija de todos uma igual responsabilidade pelo rumo do mundo. Mas isso pode também significar que as exigências do mundo e seus reclamos de ordem estejam sendo consciente ou inconscientemente repudiados; toda e qualquer responsabilidade pelo mundo está sendo rejeitada, seja a responsabilidade de dar ordens, seja a de obedecê-las. Não resta dúvida de que, na perda moderna da autoridade, ambas as intenções desempenham um papel e têm muitas vezes, simultânea e inextricavelmente, trabalhado juntas. (ARENDT, 1972, p. 240 / p. 13)

     

    No caso da educação, as crianças não derrubam a autoridade dos adultos, mas os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo. Assim, voltando a alguns pressupostos da educação moderna, educar a criança num universo especificamente infantil sem a autoridade do professor é privá-la do processo que caracteriza a introdução ao mundo adulto. É importante esclarecer que a autoridade em Arendt não pressupõe força nem violência, e ainda que se assente em uma hierarquia, na qual alguém aconselha e há um aconselhado, não consiste em opressão.

    Junto à recusa pela autoridade política, se esvai a autoridade da tradição. Em outras palavras, a crise da autoridade é também a crise da tradição. É preciso que nos perguntemos então a respeito de nossa atitude face ao passado e sobre o valor que damos a exemplos e experiências oriundas dele. Porém, a autoridade dos pais sobre os filhos e de professores sobre alunos difere da autoridade política. A superioridade que marca a criação dos filhos é temporária, até que as crianças se tornem cidadãos, não apenas enquanto portadores de direito, mas que participam da sociedade, enquanto as relações entre governantes e governados não são temporárias. Ao separar educação de política, Arendt não defende um caráter apolítico para o sistema educacional, mas situa a educação como intermediária, numa esfera pré-política, na qual a educação não deixa de contribuir para o mundo político.

    Retomando a motivação de Arendt para este texto, mesmo movida pela ideia de uma Nova Ordem Mundial, a educação na Estados Unidos ainda tem um caráter conservador, no sentido protetor. Protege-se tanto o mundo da criança como a criança do mundo, o novo do velho, e o velho do novo. Por outro lado:

     

    Tal atitude conservadora, em política - aceitando o mundo como ele é, procurando somente preservar o status quo -, não pode senão levar à destruição, visto que o mundo, tanto no todo como em parte, é irrevogavelmente fadado à ruína pelo tempo, a menos que existam seres humanos determinados a intervir, a alterar, a criar aquilo que é novo. (ARENDT, 1972, p. 240 / p. 13)

     

    A educação identificada como conservadora vem então proteger um legado ao qual a criança tem direito de conhecer, ao mesmo tempo em que preserva nela o novo, o aspecto revolucionário, próprios da criança, para que ela possa introduzi-lo como novo no mundo.

     

    IV

     

    Sobre os motivos reais para que acontecimentos que contradizem o bom senso durem décadas. Retomemos a relação entre a crise da autoridade na educação e a crise da tradição:

     

    A verdadeira dificuldade na educação moderna está no fato de que, a despeito de toda a conversa da moda acerca de um novo conservadorismo, até mesmo aquele mínimo de conservação e de atitude conservadora sem o qual a educação simplesmente não é possível se torna, em nossos dias, extraordinariamente difícil de atingir. Há sólidas razões para isso. A crise da autoridade na educação guarda a mais estreita conexão com a crise da tradição, ou seja, com a crise de nossa atitude face ao âmbito do passado. É sobremodo difícil para o educador arcar com esse aspecto da crise moderna, pois é de seu ofício servir como mediador entre o velho e o novo, de tal modo que sua própria profissão lhe exige um respeito extraordinário pelo passado. (ARENDT, 1972, p. 243-244 / p. 15)

     

    No campo da filosofia, assim como no da arte, o passado não se torna obsoleto. A criação de um novo conceito não desconsidera um conceito criado anteriormente. Assim, para Arendt, é importante para as escolhas do presente que sejam adotados critérios já aprendidos no passado. É preciso cuidar de algo para que este não desapareça. A tradição aqui não revive o passado no presente, não busca repeti-lo, mas o toma como inspiração para lidar com dilemas do presente. Nesse sentido, a autora retoma a educação tradicional que nasce em Roma no século IV, não como modelo, mas para que um olhar para o passado diferente daquele que temos hoje nos ajude a aguçar o nosso olhar na direção do presente.

    O início de algo completamente novo, da ruptura, do milagre, daquilo que não se espera, aliás, está ligado à liberdade, que é a possibilidade de romper edificações do passado, e ter o futuro como abertura. Assim, há sentido na escola quando seu espaço permite em vez de escolher, começar algo novo, e quando não conseguimos prever quem o aluno será.

     

    O problema da educação no mundo moderno está no fato de, por sua natureza, não poder esta abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição. Isso significa, entretanto, que não apenas professores e educadores, porém todos nós, na medida em que vivemos em um mundo junto à nossas crianças e aos jovens, devemos ter em relação a eles uma atitude radicalmente diversa da que guardamos um para com o outro. Cumpre divorciarmos decisivamente o âmbito da educação dos demais, e acima de tudo do âmbito da vida pública e política, para aplicar exclusivamente a ele um conceito de autoridade e uma atitude face ao passado que lhe são apropriados mas não possuem validade geral, não devendo reclamar uma aplicação generalizada no mundo dos adultos. (ARENDT, 1972, p. 245-246 / p. 17)

     

    Na prática, há algumas consequências destacadas pela autora:

    1. “a função da escola é ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver.”

    2. “não se pode educar adultos nem tratar crianças como se elas fossem maduras.” Não há um mundo comum compartilhado por todas as crianças que poderíamos denominar em absoluto como “infância”, nem a infância é um estado humano autônomo.

    Quanto à educação, esta precisa ter um final previsível, no caso de nossa sociedade, um diploma referente a um segmento limitado e particular do mundo no qual o indivíduo se especializa, e não a introdução do jovem no mundo como um todo. Este e outros detalhes, Arendt entrega aos especialistas e pedagogos. Vale notar que nesses fins estabelecidos para a educação é importante o cuidado para não dizer como e qual direção a criança deve seguir, mas revelar-lhe a possibilidade de começar algo novo. Em princípio, somos seres capazes de pensar e de agir, e a interrupção de processos está ao nosso alcance, de modo que não é preciso submetermo-nos ao curso da história ou ao da natureza ou ao do mercado, como se essas esferas fossem supra-humanas.

    É importante também notar que, ao criticarmos práticas coercitivas e violentas de cunho autoritário no contexto escolar, corremos o risco de recusar a autoridade. Mas é preciso criticar e recusar, sim tais práticas, mas, para Arendt, sem recusar a presença, do mediador entre o saber e o sujeito que aprende, assim como o intercâmbio de experiências de diferentes gerações, o caráter temporal do mundo humano. É a efetivação e o reconhecimento da autoridade que nos protegem do uso dos meios externos de coerção. A autoridade não é a ausência de diálogo na sala de aula nem é instituída à força.

    Por fim, no que concerne à decisão sobre o quanto amamos o mundo, o que está em jogo na educação não tem relação com o amor enquanto sentimento, mas como aposta no mundo.

     


  • AULA 12 - 16.06 - Filosofia, Educação e prática docente

    Olá, pessoal.

    Espero que vocês e seus entes queridos estejam bem.

    Dando continuidade ao programa, passamos aos nossos últimos textos, que são trechos do livro Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão de Paula Sibilia. Minha proposta de hoje é complementar os textos dessa autora com um roteiro que destaque alguns pontos importantes das passagens com as quais estamos trabalhando, e também com algumas perguntas para reflexão.

    Para Julho, estou reservando um dos encontros no Google Meet para falarmos sobre os textos de hoje.

    Na semana que vem (23/06), envio um e-mail com orientações para a realização de leituras, fichamentos e textos e nos encontramos no dia 30/06 às 19h no Google Meet para falar a respeito .

    Abraços e força,

    Juliana

     

    Paula Sibilia (ensaísta e pesquisadora argentina)

    Professora do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Mais sobre a autora em http://www.paulasibilia.com/about Como curiosidade, aproveito para comentar que ela não tem perfis em redes sociais: http://www.paulasibilia.com/redes-sociais

    Deixo também, como conteúdo complementar, o vídeo da participação de Sibilia no Congresso Pedagogia Waldorf - Ser criança hoje: mídias digitais e educação realizado em 2019 no Sesc Santo Amaro

     

    Complemento para a seção “O molde escolar e a maquinaria industrial”

     

    Sobre os tipos de corpos infantis como matéria prima para o sistema escolar e suas ramificações na sociedade em Foucault

     

    Essa imagem dos corpos infantis à qual Sibilia se refere logo no início do primeiro trecho que estamos estudando (na página 27) nos remete à noção foucaultiana de corpo disciplinado. Para pensarmos o corpo na filosofia de Michel Foucault (1926 – 1984), é importante termos em mente uma relação entre corpo e poder. Na entrevista intitulada “Poder – Corpo”, presente no livro Microfísica do poder (1978), Foucault afirma que nada é mais físico e corporal do que o exercício do poder.

     

    Qual é o tipo de investimento do corpo que é necessário e suficiente ao funcionamento de uma sociedade capitalista como a nossa? Eu penso que, do século XVII ao início do século XX, acreditou-se que o investimento do corpo pelo poder devia ser denso, rígido, constante, meticuloso. Daí esses terríveis regimes disciplinares que se encontram nas escolas, nos hospitais, nas casernas, nas oficinas, nas cidades, nos edifícios, nas famílias... E depois, a partir dos anos sessenta, percebeu-se que este poder tão rígido não era assim tão indispensável quanto se acreditava, que as sociedades industriais podiam se contentar com um poder muito mais tênue sobre o corpo. Descobriu-se, desde então, que os controles da sexualidade podiam se atenuar e tomar outras formas... Resta estudar de que corpo necessita a sociedade atual... (FOUCAULT, 2012, p. 147-148)

     

    Para o filósofo, poder não corresponde a repressão; no caso do conhecimento, por exemplo, este não é impedido, mas produzido pelo poder. Nesse sentido, o saber sobre o corpo é constituído por disciplinas militares e escolares. Sibilia toma o corpo disciplinado foucaultiano como ponto de partida para problematizar a crise que afeta a escola, esta atravessada pelas transformações na relação entre subjetividade e o plano espaçotemporal em nosso tempo.

     

    Sobre o conceito de poder em Foucault

     

    Um dos conceitos chave na filosofia de Foucault é o conceito de poder. O filósofo busca mostrar aquilo que não vemos na relação entre poder e as estruturas sociais. Nesse sentido, ao invés de focar em uma ideia de poder centralizado ou superior, o filósofo se volta a uma rede que se estende por todo âmbito social à qual nossas vidas estão entremeadas. Assim, temos que não há alguém acima de nós nos vigiando, mas nós terminamos vigiando-nos a nós mesmos. Na sociedade ocidental, a prisão emerge como modelo arquitetônico de controle dos corpos dos indivíduos para a concepção de asilos, hospícios, fábricas e também da escola pelas sociedades industriais. É preciso notar que para Foucault, o poder sobre a vida, e de controle sobre o corpo-espécie, das populações, a saber, o biopoder, no qual os indivíduos estão tanto submetidos como são também instrumento e efeito, é um fato de nossa época; sua análise não vislumbra então fundar um mundo livre desse poder ou recusar atos permeados pela biopolítica (ainda que sua intenção também não seja louvá-la), como a vacinação, por exemplo, mas mostrar aquilo que não vemos. Mais do que posicionar-se de maneira simplista, como contra ou a favor, é importante que possamos ver aquilo que não se mostra.

     

    Sobre a noção de sujeito em Foucault

     

    Para compreendermos a noção foucaultiana de sujeito, é importante falarmos também sobre a noção de moral. Tomemos a relação entre moral e sujeito no segundo volume da História da sexualidade do referido autor. E por moral entendemos uma regra de conduta, um conjunto de valores, ou a própria conduta, o comportamento do indivíduo em relação às regras. Cito o próprio Foucault:

     

    Por “moral” entende-se um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as Igrejas etc. Acontece dessas regras e valores serem bem explicitamente formulados em uma doutrina coerente e em um ensinamento explícito. Mas acontece também delas serem transmitidas de maneira difusa e, longe de formarem um conjunto sistemático, constituírem um jogo complexo de elementos que se compensam, se corrigem, se anulam em certos pontos, permitindo, assim, compromissos ou escapatórias. Com essas reservas pode-se chamar “código moral” esse conjunto prescritivo. Porém, por “moral” entende-se igualmente o comportamento real dos indivíduos em relação às regras e valores que lhes são propostos: designa-se, assim, a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos completamente a um princípio de conduta; pela qual eles obedecem ou resistem a uma interdição ou a uma prescrição; pela qual eles respeitam ou negligenciam um conjunto de valores. (FOUCAULT, 2012, p. 33-34)

     

    No agir em relação à conduta moral, ao seu modo de sujeição, em conformidade ou em discordância, o indivíduo constitui-se a si mesmo, constitui-se então como sujeito moral. Esse agir implica também na transformação de si em um sujeito moral de si mesmo, conforme a maneira como ele se posiciona em relação aos preceitos, de modo que “age sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe-se à prova, aperfeiçoa-se, transforma-se.” (FOUCAULT, 2012, p. 37) Atividades sobre si, formas de subjetivação, para o autor, indissociáveis da ação moral.

     

    Sobre a função primordial da escola em Kant

     

    Sibilia cita o texto Sobre a pedagogia de Kant (1724 – 1804), no qual o filósofo afirma que mandamos as crianças para a escola cedo para habituar-las “a permanecer tranquilos e a observar pontualmente o que lhes é ordenado” (KANT APUD SIBILIA, 2012, p. 28); ou, na tradução de uma edição brasileira do mesmo texto: “para que aí [na escola] se acostumem [as crianças] a ficar sentadas tranquilamente e a obedecer pontualmente aquilo que lhes é mandado” (KANT, 1999, p. 13) O fim dessa aplicação antecipada da disciplina é possibilitar que o indivíduo aprenda a não agir de maneira imediata e a resistir à inclinação propriamente humana à liberdade, em nome da qual ele pode sacrificar tudo.

    A primeira afirmação de Kant em Sobre a pedagogia indica o ser humano como a única criatura que precisa ser educada. E para o autor, educação é o cuidado (no sentido de conservação, trato) da infância do ser humano. Mais especificamente, neste caso os cuidados vão além da nutrição, dizem respeito à precaução para impedir que a criança faça um uso nocivo de suas forças.

    Kant afirma também que a disciplina transforma a animalidade em humanidade. Enquanto os animais tem instinto, o ser humano forma-se por sua própria razão, mas não de imediato. O autor fala em um “estado bruto” para referir-se à condição do indivíduo quando este vem ao mundo. Assim, a capacidade de alguém realizar o projeto de sua conduta por meio de sua própria razão depende da educação, a ser transmitida, entende Kant, por uma outra geração.

     

    A disciplina é o que impede ao homem de desviar-se do seu destino, de desviar-se da humanidade, através das suas inclinações animais. Ela deve, por exemplo, contê-lo, de modo que não se lance ao perigo como um animal feroz ou como um estúpido. A disciplina, porém, é puramente negativa, porque é o tratamento através do qual se tira do homem a sua selvageria; a instrução, pelo contrário, é a parte positiva da educação. (KANT, 1999, p. 12-13)

     

    O filósofo associa a selvageria à independência de qualquer lei, e a disciplina, à submissão às leis da humanidade, ao costume, aos preceitos da razão. Para ele, este último seria então o sentido de educar por meio da disciplina.

     

    Breve panorama sobre a escolarização ao longo da história

     

    Como complemento ao trecho em que Siblia fala sobre a necessidade das escola (p. 30), recomendo Um breve panorama da educação em diferentes momentos da história, artigo da Professora Carlota Boto da FEUSP: https://jornal.usp.br/artigos/a-educacao-e-a-escola-em-tempos-de-coronavirus/

     

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    Complemento para a seção

    “Os incompatíveis: outros tipos de corpos e subjetividades”

     

    Sobre “novo monstro” designado como “sociedades de controle” por Deleuze

     

    Na primeira parte deste trecho sobre corpos e subjetividades incompatíveis, Sibilia faz menção ao filósofo Gilles Deleuze (1925 – 1955) e à expressão “novo monstro”, que ele utiliza para referir-se ao quadro que começa a ser erigido após a Segunda Guerra Mundial, formado pelo que ele denomina “sociedades de controle”. Em Post-scriptum sobre as sociedades de controle (1990), Deleuze afirma que essas sociedades estão substituindo as sociedades disciplinares e compartilha suas impressões sobre esse novo cenário apoiando-se também na percepção de outros autores:

     

    Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. A família é um "interior", em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional, etc. Os ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. "Controle" é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virillo também analisa sem parar as formas ultra rápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado. Não cabe invocar produções farmacêuticas extraordinárias, formações nucleares, manipulações genéticas, ainda que elas sejam destinadas a intervir no novo processo. Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. (DELEUZE, 1992, p. 219)

     

    Deleuze nos chama a atenção para a diferença entre os moldes do confinamento da fábrica da sociedade disciplinadora e a modulação constituída pelos controles, cuja moldagem é compreendida pelo filosofo como “auto-deformante”; ou seja, se há um molde nesse “novo monstro”, este não é estável – sua modulação écomo a que sofrem os salários, por exemplo, a cada desafio imposto pelo sistema meritocrático, de prêmios, da empresa. O filósofo acrescenta:

     

    O princípio modulador do "salário por mérito" tenta a própria Educação nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame. Este é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa. (DELEUZE, 1992)

     

    Pelo mesmo viés dispersivo das sociedades de controle, em que nunca se termina nada, inclusive o trabalho, a formação escolar e a profissional também se encontram deformáveis e transformáveis, em um tipo de circuito aberto.

     

    O espírito empresarial e o culto da performance

     

    Ainda na primeira página, lemos sobre o peso que o modelo de uma empresa, enquanto instituição, ganha em diversas esferas da sociedade, inclusive na educação. Desse modo, um “culto da performance” passa a permear as atividades escolares. Da/do estudante é esperado então um certo gerenciamento de si e um desempenho individual mais destacado e eficaz, conforme descreve Sibilia. Com a pandemia da COVID-19 e a necessidade de isolamento social, essa exigência pelo gerenciamento de si parece significativamente acentuada, seja no teletrabalho ou na educação remota. Estamos ainda mais dispersas/os do grupo no qual trabalhávamos e/ou estudávamos. Você tem refletido sobre como essa situação afeta a sua vida? E pela sua experiência vivida, você supõe algum tipo de impacto (positivo ou negativo) nas nossas práticas educacionais num momento pós-pandemia? Como seriam esses impactos?

     

    O tempo, o corpo e os dispositivos eletrônicos agora

     

    Lemos na página 51:

     

    Fica claro que os dispositivos eletrônicos com que convivemos e que usamos para realizar as mais diversas tarefas, com crescente familiaridade e proveito, desempenham um papel vital nessa metamorfose. Esses artefatos de uso cotidiano não só provocam velozes adaptações corporais e subjetivas aos novos ritmos e experiências, permitindo responder com a maior agilidade possível à necessidade de reciclagem constante e de alto desempenho, como também eles acabam por se multiplicar e se popularizar em virtude de tais mudanças nos estilos de vida. De fato, muitos usos da parafernália informática e das telecomunicações, assim como ocorre com os frutos da mais recente investigação biomédica e farmacológica, constituem estratégias que os sujeitos contemporâneos põem em jogo para se manter à altura das novas coações socioculturais, gerando maneiras inéditas de ser e de estar no mundo. (SIBILIA, 2012, p. 51)

     

    Ainda no cenário da pandemia e do isolamento: em geral, as tecnologias tem nos ajudado a prosseguirmos com nossos estudos e trabalhos. Mas, além das consequências que advêm do isolamento social e do medo e outros sentimentos que temos em relação à pandemia – e no que concerne ao cenário político atual também –, há muitas pessoas se queixando de dores no corpo, por passarem muito tempo sentadas, e também de dificuldades de concentração, apenas para citar duas situações comuns a este momento. Os dispositivos eletrônicos nos ajudam a manter as coisas funcionando e os compromissos em dia, mas, por outro lado, num contexto de exigências de que o mercado não pare, de que você esteja sempre conectada/o e de que obtenhamos a melhor avaliação para nosso desempenho individual, os limites da relação entre o indivíduo, enquanto sujeito-corpo, e os artefatos tecnológicos são ainda mais forçados.

    Vocês já começam a pensar sobre as consequências deste momento que atravessamos? Penso que, por um lado, nos afastamos da concentração das sociedades disciplinadoras e o contexto da dispersão é agudamente vivido, por exemplo, quando de repente estamos em casa trabalhando, orientando crianças em suas atividades escolares e fazendo compras online ao mesmo tempo. Mas, fazemos tudo isso num esquema de disciplina, de nossas cadeiras e nos limites do espaço que habitamos; ou, no caso de quem não está em isolamento, o trajeto até o trabalho passa por regras estritas que também modificam substancialmente as nossas maneiras de estar no mundo, principalmente no que concerne à relação entre corpo e espaço.

     

     

    Referências bibliográficas

     

    DELEUZE, Gilles. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. In: ______.  Conversações: 1972-1990. Trad. Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226.

     FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998.

     _____. História da sexualidade 2: O uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2012.

     KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. Trad. Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Editora Unimep, 1999.

     SIBILIA, Paula. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

  • 23/06 - orientações para leitura, fichamento e produção de textos

    Olá, pessoal.

    Espero que vocês e seus entes queridos estejam bem.

     

    Hoje deixo algumas dicas para os estudos de vocês, que valem também como orientações para as atividades que estão preparando para enviarem até o dia 02/08. Em anexo, um PDF com slides, para quem preferir este outro formato, com o mesmo texto que está no corpo deste e-mail. Conversaremos sobre essas dicas em nosso encontro no Google Meet, no dia 30/06 (semana que vem), das 19h às 20:30.

     

    E para Julho, seguiremos o cronograma abaixo, com aulas semanais sobre temas que atravessam alguns dos textos do programa:

     

    ·         07.07 das 19h às 20:30: Educação, criança e a responsabilidade pelo mundo Vygotsky / Dewey / Arendt

    ·         14.07 das 19h às 20:30: Responsabilidade pelo mundo e dessubjetivação bell hooks

    ·         21.07 das 19h às 20:30: Esclarecimento, técnica e dessubjetivação Kant/Adorno

    ·         28.07 das 19h às 20:30: Técnica e os incompatíveis Sibilia

     

    Todos os encontros no Google Meet serão gravados e disponibilizados para quem não puder participar do encontro assistir depois.

    Abraços,

    Juliana


    Dicas para ler um texto de filosofia, fazer um fichamento e escrever um texto

     

    Ao longo do semestre, vocês leram os textos do programa conforme o próprio costume que já tem na hora de fazer uma leitura, com a própria bagagem que trazem de outros estudos e também do modo de ver a vida.

    Em geral, no início do curso falamos sobre as origens da filosofia e de suas supostas definições, mas nem sempre paramos nossos programas para conversarmos sobre maneiras de olhar e de lidar com um texto filosófico.

    Assim, aproveitando os desvios de percurso que ocorrem neste momento, gostaria de compartilhar algumas dicas de manuais importantes, Como ler um texto de filosofia, do Professor Antônio Joaquim Severino, e Como se faz uma tese de Umberto Eco, e outras que aprendi ao longo do meu percurso acadêmico.

     

    Leitura

     

     Vejamos alguns detalhes da definição de texto por Severino em Como ler um texto de filosofia: Temos que dois sujeitos – autor(a) e leitor(a) – podem se comunicar por meio de um texto. Ao ler um texto, não tenho acesso ao pensamento e não experiencio o mundo como a consciência de quem o escreveu, mas tenho a codificação desse pensamento transmitido por meio do texto e que apreendo enquanto subjetividade. Ou seja, alguém pensa em algo e para transmitir esse pensamento, utiliza signos cujos significados todos os indivíduos leitores conhecem, e esses leitores, pelo conhecimento que adquiriram sobre esses signos, recebem a mensagem.

    Mas em que medida a objetividade dos signos e a transmissão exata do pensamento estão garantidas?


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    Somos não apenas consciências diferentes, mas nossa subjetividade conhece e é afetada pelo mundo das mais diversas maneiras. É só pensarmos numa simples troca de mensagens em aplicativos de mensagem, como o whatsapp, por exemplo, para termos uma ideia da complexidade da distância entre emissor(a) e receptor(a).

    Assim, há algumas recomendações importantes para o contato com a mensagem transmitida por um texto, no nosso caso, um texto filosófico. Deixo algumas dicas:

    ·         Concentração é fundamental! Sabe quando você está lendo, mas tem alguma preocupação, ou até mesmo uma pessoa, que não sai da sua cabeça? Às vezes, durante uma leitura, em vários momentos a gente sai e retorna ao texto, e no fim, até consegue entender o essencial. Mas durante a leitura de um texto filosófico, deixar o pensamento perder-se nos problemas ou em crushes, por exemplo, pode nos causar prejuízos e nos fazer recomeçar a leituras algumas vezes. Assim, deixe tudo de lado e mergulhe na leitura.

    ·         Neste momento em que vivemos, parece que o que não sai da nossa cabeça são mesmo as tristes notícias sobre a COVID-19 e sobre os riscos do cenário político, o que dificulta a concentração em nossas atividades por muito tempo. O que pode ajudar é a divisão do texto em pequenas partes, para você ler em momentos diferentes ao longo do dia ou da semana. Assim você aproveita os momentos de concentração, às vezes tão curtos, do seu dia, sem se desesperar quando perde o foco diante de tantas páginas que você ainda tem pela frente. Só tome cuidado para que os intervalos entre uma etapa de leitura e outra não sejam muito longos.

    ·         Outra dica para uma melhor compreensão do texto é buscar as palavras desconhecidas e anotar seus significados. Por isso, tenha por perto um dicionário da Língua Portuguesa e, para os conceitos simbolizados pelas palavras, um bom dicionário de Filosofia.

    ·         Mas às vezes é preciso ir além dos dicionários. Consultar comentadores do texto estudado pode ser esclarecedor, tanto no que concerne aos conceitos da reflexão filosófica apresentada no texto como a respeito da vida, obra e pensamento da autora ou do autor estudada/o. Professores, boas revistas científicas e, hoje em dia, também canais de vídeo e outras páginas da web podem ser boas fontes para a recomendação de comentadores. Vale também conhecer o contexto histórico em que o texto foi escrito. Um dos elementos fundamentais que essas consultas, assim como as explanações e debates em sala de aula, podem te auxiliar a levantar são as problematizações presentes no texto.

    ·         E por fim, tomar notas e fazer um fichamento do texto podem te ajudar a pensar melhor e a compreender o que você está lendo.

    Antes de passarmos às dicas sobre fichamentos, um pouco mais sobre leitura segundo Severino:    


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    Fichamento

     

    O fichamento é uma forma de organizar informações sobre o texto lido de modo que estas possam ser consultadas posteriormente sem a necessidade de ler o texto todo outra vez. Como fazer esse registro? O formato dos fichamentos variam de estudante para estudante e também de texto para texto. Pode ser que você consiga refazer todo o percurso de determinado trecho do texto na sua cabeça com poucas palavras sobre uma passagem. Mas há quem precise de mais detalhes e até mesmo de um trecho reescrito com suas próprias palavras para a retomada daquilo que está em questão em certa passagem.

    Além disso, se, para além de registrar as principais ideias de cada parágrafo, você tiver a intenção de investigar um conceito ou uma problemática específica nesse texto, você precisa assumir esse foco em seu fichamento e destacar aquilo que lhe interessa.

     

    Principais elementos de um fichamento

     

    A referência bibliográfica completa do livro ou da revista ao qual o texto fichado pertence e o número da página à qual pertencem cada parágrafo fichado e cada citação transcrita no seu registro são fundamentais, pois são dados dos quais você precisará para elaborar as referências do que você escreve no seu trabalho acadêmico.

    O fichamento deve ser feito à mão ou digitado? A escolha é sua. Se você fizer à mão, pode escrever, sublinhar, riscar, rabiscar, trocar de cor, desenhar esquemas, circular palavras...o que você pode fazer também no computador, eu sei, mas sem a necessidade de comandos ou limites de um programa e do ambiente digital. E aí vocês já percebem que eu prefiro escrever meus fichamentos à mão. Mas, se você lida bem com a escrita no computador, vá em frente. Nesse caso, a vantagem é que você já terá meio caminho andado para escrever o seu texto. É o momento em que você já digita citações e suas próprias reflexões que poderão ser utilizadas em seus trabalhos.

    E sim, para além do texto, você pode registrar também as suas impressões num fichamento. No mestrado, meu orientador me falou sobre um modo de fichar que utilizava as duas páginas que ficavam lado a lado num caderno aberto. A ideia era fazer um fichamento com informações do texto de um lado e no outro lado, escrever suas impressões.

    Sobre a divisão do fichamento, siga a divisão do próprio texto, identifique parágrafos (numere os parágrafos no texto também) e seções.

    Compartilho abaixo alguma das orientações e exemplos de Umberto Eco para fichamentos em Como se faz uma tese:

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    Escrita

     

    Primeira dica: a pessoa que lerá o seu texto não está na sua cabeça. Parece óbvio, mas enquanto escrevemos, parece que esquecemos disso. É importante dar todos os detalhes que possam aproximar a leitora e o leitor do tema e do problema com os quais você está trabalhando. Não pense na professora ou no professor, ou seja, em quem conhece o tema sobre o qual você escreve, como a pessoa que lerá seu texto, mas considere o público geral. Como você explicaria um problema, um argumento ou os passos para sua reflexão para uma pessoa que não conhece a bibliografia que você está utilizando?

    Estabelecer o caminho que você quer seguir pode ser um bom guia para sua escrita. No caso de um trabalho maior, esse caminho seria o sumário. Você pode imaginar, por exemplo, quais partes você gostaria que seu texto tivesse, mesmo que ele seja pequeno, e quais nomes você daria a elas, como se esses nomes fizessem parte de um sumário. Tenho quase certeza de que no momento da escrita essa lista será alterada, o que não é um problema, mas tendo-a como ponto de partida já é um modo de iniciar seu texto tendo alguma direção. No caso das nossas atividades para conclusão do semestre, é importante que você saiba que esta lista não precisa ser compartilhada com o resultado final do texto, você não precisa enviar sua atividade com um sumário.

    A esta parte sobre escrita, acrescento um outro techo de Como se faz uma tese, sobre escrever uma tese. Esse ainda não é o caso de vocês, mas penso que estas primeiras dicas de Eco valem a pena: 

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    Por fim, deixo outra dica valiosa: fazer mais de uma revisão melhora o seu texto. Revisar pela leitura em voz alta faz toda a diferença, e se você tiver alguém por perto que tope te escutar, pode ser ainda melhor.

    E não esqueça de consultar o Manual de Normas ABNT para trabalhos acadêmicos, disponível em http://www4.fe.usp.br/biblioteca/capacitacao-usuarios/manualabnt-trabalhosacademicos para a elaboração da capa (p. 25-28), organização das referências (p. 49-50) e citações (53-58) etc. Não vou diminuir sua nota caso não siga as normas, mas é interessante aprender e exercitar o uso dessas regras, para você se acostumar com os formatos dos trabalhos acadêmicos.

    Essas são algumas dicas para este momento. Este conteúdo será trabalhado também em nosso encontro no Google Meet.

    Bom trabalho a vocês!

     

    Referências bibliográficas

     

    ECO, Umberto. Como se faz uma tese. Trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1998.

     

    SEVERINO, Antônio Joaquim. Como ler um texto de filosofia. São Paulo: Paulus, 2009


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