Programação

  • AULA 1 - 04.03 – Apresentação do curso

    ORTEGA Y GASSET, José. O que é filosofia? Trad. Felipe Denardi. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 29-33.

  • AULA 2 - 11.03 - Apresentação – O que é filosofia?

  • Aulas 3 e 4 - 18 e 25.03 – As origens da filosofia

    25/03/2020

    Pessoal,

    Espero que estejam bem.

    Abaixo, deixo alguns comentários, esboço esquemas destacando pontos importantes e coloco questões sobre o texto “Sobre a Legitimidade e o Estudo da Filosofia Africana” de Mogobe Ramose, enviado na semana passada e disponível no moodle USP.

     

    O artigo do filósofo Mogobe Ramose “Sobre a Legitimidade e o Estudo da Filosofia Africana” discorre sobre o questionamento acerca da existência de filosofias africanas e seus desdobramentos.

    Ponto de partida

    Pilares da colonização: 1. fé: cristianização de todo ser humano (mesmo contra sua vontade). 2. ideia filosófica: racionalidade em todo ser humano (apenas no Ocidente).

    Impasse: Se o cristianismo é direcionado aos seres humanos e humanos são considerados apenas os ocidentais, por que cristianizar o outro, o não ocidental?

    E surgem então algumas questões para nós: O que quero dizer com o termo ser? E o que significa afirmar que eu sou e que o outro não é? E se afirmo a minha subjetividade como absoluta, quais são as consequências para o outro?

    Quando Ramose levanta a dúvida sobre a existência da Filosofia Africana, não escapa da discussão sobre o estatuto ontológico de seres humanos dos africanos. Ou seja, o apagamento do pensamento filosófico africano está relacionado com a desumanização dos indivíduos africanos por ocidentais desde as colonizações. E é importante enfatizar que esses indivíduos reagem, resistem e lutam para “afirmar seu estatuto ontológico de seres humanos”. Nas palavras de Ramose:

    “O problema com a dúvida referida nos parágrafos anteriores e suas implicações é que os povos africanos não se consideravam subumanos. Com base nisto, eles resistiram à filosofia colonial de degradação. Eles lutaram, e continuam lutando, para afirmar seu estatuto ontológico de seres humanos, assim como qualquer outro ser que reivindique o título de ser humano. O presente ensaio é a continuação deste esforço.” (RAMOSE, 2011, p. 8)

     

     

    É importante retomar: O que é filosofia?

     

    Demos início a essa discussão com o texto de Ortega y Gasset e as várias respostas que vocês elaboraram em nosso primeiro dia de aula. Na última vez em que nos encontramos, a partir do texto de Omoregbe, debatemos sobre o espanto e a tensão entre reflexão e argumentação em nossas definições de filosofia, dentre outros elementos que idenficamos nesse campo do conhecimento. Em Ramose, o confronto entre duas possibilidades de definir “filosofia” explicita as estruturas de poder:

     

    Primeiro, o filósofo toma a experiência como ponto de partida e a filosofia nos parece presente em todos os seres humanos, como vimos em Omoregbe:

     

    “Sabe-se bem que, etimologicamente, filosofia significa amor à sabedoria. A experiência humana é o chão inescapável para o começo da marcha rumo à sabedoria. Onde quer que haja um ser humano, há também a experiência humana. Todos os seres humanos adquiriram, e continuam a adquirir sabedoria ao longo de diferentes rotas nutridas pela experiência e nela fundadas. Neste sentido, a filosofia existe em todo lugar. Ela seria onipresente e pluriversal, apresentando diferentes faces e fases decorrentes de experiências humanas particulares (Obenga, 2006; 49)” (RAMOSE, 2011, p. 8)

     

    Na página seguinte, a definição de filosofia é atravessada por uma noção de autoridade:

     

    “Aqui a filosofia é entendida como uma disciplina acadêmica com seus próprios princípios e métodos especiais. Aqueles que, em busca de poder, endossam esta autoridade baseada na definição convencionada de filosofia é que são considerados filósofos profissionais.” (RAMOSE, 2011, p. 9)

     

    Na passagem de uma definição para a outra há dois fundamentos, os quais colocam em questão a legitimidade da Filosofia Africana:

     

    1.      autoridade a partir do epistemicídio: a colonização implica assassinato das maneiras de conhecer e agir do povo colonizado.

    2.      Perspectiva / quem define a filosofia: compreensão e significado refletem a perspectiva daqueles que exercem poder sobre os outros.

     

    Da universalidade

     

    Quem são todos? Quem é o mesmo? A quem o universal se refere?

    A totalização e a “mesmização” (sameness) não resolvem a desigualdade ontológica. Porque há quem seja excluído do universal; há um outro que não é o mesmo.

     

    Proposta de Ramose para resolver esta contradição: conceito de pluriversalidade.

     

    Pluriversalidade e a importância da particularidade

     

    “Ontologicamente, o Ser é a manifestação da multiplicidade e da diversidade dos entes. Essa é a pluriversalidade do ser, sempre presente. Para que essa condição existencial dos entes faça sentido, eles são identificados e determinados a partir de particularidades específicas. Assim, a particularidade assume uma posição primária a partir da qual o ser é concebido. Essa assunção da primazia da particularidade como modo de entender o ser é frequentemente mal colocada como a condição ontológica originária do ser. O mal-entendido se torna a substituição da pluriversalidade original ineliminável do Ser. (Bohm, 1980, 30-31).” (RAMOSE, 2011, p. 10)

     

    Concebe-se o ser a partir de particularidades específicas. Mas afirmar esse ser como absoluto, tomar a particularidade a partir da qual ele é concebido como condição ontológica, ou seja, como essência de todo ser, é eliminar sua pluriversalidade e excluir todos os outros particulares de um suposto Ser. Essa lógica da exclusão no plano ontológico é histórica e se desdobra numa exclusão que atinge a experiência vivida dos indivíduos.

     

    Implicações da exclusão filosófica:

     

    1.      Afirmar a particularidade de uma filosofia para excluir outras filosofias anula a validade da particularidade como ponto de partida para a filosofia. De outro lado, reafirmar esse ponto de partida é reivindicar o direito à filosofia.

    2.      O fim da exclusão pela definição da filosofia não é a própria filosofia, mas o poder sobre as vidas e os destinos dos outros.

    3.      Obrigação moral (e não cortesia) de reconhecer a legitimidade da necessidade ontológica de continuar sendo (de não ter a sua subjetividade apagada, desconsiderada).

    4.      Diálogo como obrigação moral e científica de estudar filosofias que não sejam a nossa própria.

    5.      Reconhecer que não há “a” história da filosofia, mas uma história, histórias da filosofia, e a necessidade de uma reconstrução da história da África.

     

     

    A Filosofia e o Filósofo africano

     

    É aquele indivíduo africano que estuda filosofias ocidentais um filósofo? Ou seria ele um filósofo africano apenas no sentido profissional? Em que medida as filosofias ocidentais podem fortalecer as sociedades às quais pertencem os indivíduos não ocidentais? Que tipo de cientificidade e quais instrumentos desse método são emprestados ou são próprios às filosofias africanas?

     

    Para além do esclarecimento de conceitos: Ramose propõe o estudo da filosofia como projeto de libertação humana.

     

    Elementos de dependência econômica e intelectual que perduram na transição de África colonial para pós-colonial:

    - controle econômico pelos antigos colonizadores

    - subserviência epistemológica

     

    Condição que atravessa a filosofia africana:

     

    “Em suas reflexões sobre o duplo legado de dependência na África pós-colonial, Eze ressalta a liberdade humana como o sentido e a função da filosofia africana. ‘A filosofia africana trabalha com esta exploração e difamação ainda-por-terminar da humanidade africana. Isto desafia a exclusão de longa data da África ou, mais precisamente, sua inclusão como o ‘outro’ negativo da razão e do mundo ocidental nas principais tradições da filosofia ocidental moderna. E, porque esta é uma tarefa em andamento, bem como, à luz de muitos outros fatores, não sem conexão com a natureza da relação colonial e neo-colonial da África com o Ocidente, o ‘pós’ de filosofia africana ‘pós-colonial’, deve ser escrito sob rasura ou – mais convenientemente - parêntesis. Marcar o ‘pós’ de pós-colonial sob rasura ou parêntesis serve como sinal e indicador da não realização dos sonhos dos anos 60 de conquista da independência’ (Eze, 1997, 14). Nossa consideração sobre a filosofia do ubuntu, em particular no que se refere à África do Sul, é parte desse desafio coletivo para filosofia Africana.” (RAMOSE, 2011, p. 15-16)

     

    O que é e o que não é ubuntu

     

    Ubuntu é um gerundivo (gerundive) abstrato que exprime a filosofia praticada pelos povos da África falantes do Bantu. Ele compartilha o caráter de gerundivo (gerundive) – isto é, a ideia de tornar-se, Ser (be-ing) e ser como manifestações do movimento como princípio do Ser- (be-ing)- com os verbos egípcios antigos, wnn (unen) “existir”, d d (djed) “ser estável”, “durável” e hpr (kheper) “tornar-se” (Obenga, 2004, 37-39). Como os antigos verbos egípcios referidos, a concepção filosófica ubuntu do mundo é que ‘Coisas não tem a fixidez e inflexibilidade que acreditamos que elas tenham. As coisas são mutáveis e em movimento na Terra, no céu, em baixo d’água, etc. A Terra e o céu, eles mesmos se movem’ (Obenga, 2004, 39; Ramose, 1999, 50-53).” (RAMOSE, 2011, p. 16)

     

    Ubuntu não é uma filosofia da paz nem da submissão ou infinita capacidade de perdoar.

     

    Dos usos do ubuntu: Ramose analisa situações na África do Sul em que a utilização ou a supressão do termo ubuntu é decidida conforme estratégias políticas das quais despontam argumentos contra ou a favor desse uso que nem sempre beneficiam o povo.

     

    “No nível intelectual, o contínuo, e frequentemente bem sucedido, uso do ubuntu para atingir objetivos contrários ao imperativo de sobrevivência dos povos indígenas conquistados nas injustas guerras de colonização, põe em questão a acuidade filosófica e deixa os filósofos Africanos em estado de alerta. Moralmente, levanta também questões difíceis sobre a vontade, assim como o momento de ‘compreender’ que insiste na separação entre justiça e paz. Para ilustrar este duplo desafio para a filosofia Africana como um projeto de libertação humana voltamo-nos a consideração do clamor contemporâneo para a ‘liberdade econômica em nossa vida’ protagonizada sobretudo pela juventude na África do Sul.” (RAMOSE, 2011, p. 18)

     

    Ramose enfatiza a importância da liberdade econômica para a realização do projeto de libertação humana pela Filosofia Africana, e é importante atentarmos às dificuldades para se atingir essa libertação, uma vez que no caminho a ser percorrido há muitas situações históricas na África do Sul imbricadas à violenta presença ocidental.

     

    Referência bibliográfica

     

    o   RAMOSE, Magobe. “Sobre a legitimidade e o estudo da Filosofia Africana”. In: Ensaios filosóficos, v. 4, p. 6-23, 2011.

     

    Há um fórum aberto para esta “aula” no ambiente virtual de nosso curso no moodle USP para que vocês possam conversar sobre os temas dos textos.

    Na semana que vem trabalharemos com o texto “O ensino da filosofia frente à educação como educação” de Walter Omar Kohan, enviado por e-mail e que pode ser encontrado aqui no moodle.

    Sigo em contato com vocês por este e-mail.

    Abraços e força!

    Juliana


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    16/03/2020
    Boa tarde, pessoal.

    Espero que estejam bem.
    Encaminho a mensagem da direção da FEUSP a respeito da suspensão das aulas. Compartilho também o link em que vocês podem acompanhar todas as informações sobre os procedimentos da USP no que concerne à situação da epidemia do Covid-19: https://coronavirus.usp.br/ .

    Neste momento, façam a leitura do texto do Mogobe Ramose e assistam este outro vídeo em que o Prof. Renato Noguera fala sobre filosofias africanas: https://www.youtube.com/watch?v=nQFqbxyMd_w . Tomem nota sobre as possíveis relações com as discussões suscitadas pelo texto do Omoregbe que vimos na última aula. Em breve escrevo novas orientações para outras atividades que possamos realizar nas condições em que nos encontramos.

    Outra coisa: fiquei de comentar novamente a respeito dos diários de bordo e algumas pessoas tem me procurado para saber mais sobre esse trabalho. O diário de bordo é composto por reflexões que vocês registram à mão a cada aula. Cada registro deve ter entre meia e uma página. Escrevam livremente, sem o rigor acadêmico que por vezes o ambiente da universidade nos exige, e fiquem à vontade para desenhar, fazer colagens, escrever palavras soltas etc. O importante é que o conteúdo esteja relacionado à aula. E agora que estamos prosseguindo com o curso à distância, mantenham os registros semanais, a partir das leituras propostas e da nossa comunicação pela internet e até mesmo, se quiserem, a partir dos efeitos dos impactos que nos levam a suspender as aulas presenciais que atingirem suas reflexões.

    As avaliações dissertativas a serem realizadas em sala serão reconsideradas quando nossos encontros retornarem.

    Força, cuidado e bom trabalho!
    Juliana


    ---------- Forwarded message ---------
    De: fe USP <fe@usp.br>
    Date: seg., 16 de mar. de 2020 às 10:01
    Subject: [Comunica-docentesfe] Fwd: Orientações para esta semana
    To: comunicado-docentesfe <comunicado-docentesfe@listas.usp.br>


    Prezados/as docentes

    Conforme mensagem encaminhada pela reitoria ontem à noite, as atividades de ensino e extensão estão suspensas a partir de amanhã. As presidências das comissões estatutárias, as coordenações de cursos e as chefias dos departamentos reunir-se-ão com a direção para avaliar o quadro e planejar procedimentos comuns. Pedimos a cada docente que transmita essa informação às suas turmas com o intuito de tranquilizar os/as estudantes e aguarde o envio de novas orientações. As sugestões são bem-vindas.

    Atenciosamente,
    A Direção

  • AULA 5 - 01.04 - Podemos filosofar sobre educação?

    Olá, pessoal,

    Espero que estejam bem, em casa e que as leituras e reflexões estejam sendo, dentro do possível, proveitosas. Para quem não tem conseguido acompanhar os textos e os meus e-mails, sem problemas, cuide primeiro da sua saúde, das necessidades e urgências que podem atravessar a vida e das pessoas que estão precisando de você.

    Neste momento passamos a trabalhar com a relação entre filosofia e educação. Como pontapé inicial, destaco pontos importantes de O ensino da filosofia frente à educação como formação do Professor Walter Omar Kohan (UERJ) e deixo perguntas que se desdobram do texto.

     

    Kohan abre o texto com a pergunta “Para que a filosofia?”, questão a ser debatida não apenas pelos filósofos, ainda que sejam eles aqueles que gostam de fazer essa pergunta. Nesse sentido, podemos tomar as considerações do autor acerca do ensino de Filosofia para o campo da Educação, para refletirmos sobre o ensino de outras disciplinas, mas calcados no movimento próprio do filosofar.

    O que nos leva à pergunta “Para que a filosofia?”?

    - questão de gosto;

    - busca pela legitimação teórica – discussão a ser feita “para fora”, com não filósofos. Afinal, entre filósofos, quem tem dúvidas sobre a importância da filosofia?

    E se perguntarmos “Para que ensinar filosofia?”?

     

    Para que a filosofia? ≠ Para que ensinar filosofia?

     

    Na segunda pergunta, temos então o foco no ensino. Não se questiona apenas a qual fim serve a filosofia, mas qual é a finalidade de se ensinar filosofia a alguém, pergunta que interessa também aos educadores.

     

    Breve histórico

    Filosofia – ligada ao ensino de si mesma;

                   – uma Paidéia;

                   – ensinar a quem aprende para ensinar o outro (A República); 

                   – sentidos políticos e pedagógicos sobrepostos;

                   – séc. XVI, Montaigne: formação humanista para a autonomia                

                      (oposição aos valores da formação jesuítica da época);

                   – séc. XVIII, Kant: ensinar a filosofar – exercício da razão na

                       observação e investigação de seus princípios universais;

                   – hoje: respostas se multiplicam / ênfase na formação de uma

                      consciência ou capacidade crítica. – MAS o que é próprio da crítica?

     

    Vimos em nossas primeiras aulas como nossas respostas para identificar o que é filosofia e como nossas definições desse campo do conhecimento são historicamente atravessadas por nossas experiências, estas, vividas em diversos contextos de dominação. Para além de uma análise dos sentidos atribuídos ao ensino de filosofia, Kohan se volta à problematização da ideia de ensino de filosofia a serviço da formação ou fabricação de um certo ideal de pessoa. Destaco os principais pontos dos quatro momentos dessa análise.

     

    1° momento: A educação a serviço da formação

     

    Educação formativa como tarefa política.

     

    A República, Livro II, de Platão – sobre a educação dos guardiões da pólis:

    ·         causa / gênese / ponto de partida, da justiça e da injustiça em Atenas: a educação pelos textos de Homero e Hesíodo x valores que devem reger a pólis;

    ·         Platão: mudança dos textos com os quais se educa para cidade mais justa;

    ·         Sócrates: afastar dos primeiros momentos da vida os relatos com mentiras ou opiniões contrárias à formação que se espera;

    ·         Foco no futuro: papéis a serem desempenhados pelos educandos;

    ·         O que significa formar, dar uma forma a um outro?

    ·         Em Platão: formas associadas a ideias, a priori, modelo, paradigma, os em si transcendentes – formação de cidadãos ideais;

    ·         O que é o melhor que desejamos nessa formação? Melhor para as crianças ou para os futuros adultos que estas se tornarão? Melhor para nós, adultos que as educamos? De onde vem esse “melhor”, os ideais, as formas?

    ·         Da ideia de passagem de um mundo velho (que não queremos) para um mundo novo (para nós).

     

    “Encontramos aqui os elementos clássicos que definem uma pedagogia formativa (Larrosa, 1996: 21). Por um lado, educa-se para desenvolver certas disposições que, se considera, existem em bruto, em potência; por outro lado, educa-se para com-formar, para dar forma a, a um modelo prescritivo, que tenha sido estabelecido previamente. A educação é assim entendida como uma tarefa moral (Larrosa, 1996: 423), normativa, como um ajustar a cada um a aquilo que deve ser. Segundo essa orientação, são os ideais os que processam o desenvolvimento de uma prática educacional. No caso de Platão, esses ideais são, a priori, independentes de nossa vontade, e permitirão o império, neste mundo, da razão, do bem, da justiça, da harmonia, da beleza. As crianças, ao final, são nossa oportunidade de realizar estes ideais e sua educação nossa melhor ferramenta para tal fim.” (KOHAN, 2003, p. 38)

     

    2° momento: A filosofia a serviço da formação e da política

     

    Exemplos do comprometimento da filosofia com uma educação formativa.

     

    A República:

    ·         educação e filosofia a serviço da formação e da política;

    ·         a filosofia forma a quem nela transita;

    ·         transeuntes da filosofia governam a pólis em função de seus conhecimentos filosóficos;

    ·         governantes devem filosofar / filósofos devem governar;

    ·         filosofia: tarefa política / política: uma forma de filosofia;

    ·         Matthew Lipman e a educação para a democracia, que marca a direção da prática da filosofia, MAS, o que é democracia?

     

    3° momento: A infância formada

     

    Da ideia de infância que sustenta as pedagogias e filosofias formativas.

     

    Hannah Arendt:

    ·         a essência da educação radica na natalidade;

    ·         entre recém-chegado (novo) e mundo (velho): estranhamento, ruptura;

    ·         educação: tentativa de matizar novo x velho / revolucionário x conservador / privado x público;

    ·         os sem voz (in-fans) trazem a novidade a um mundo hostil;

    ·         educação para que os sem voz comuniquem a novidade – na língua que os velhos pensam que eles devem falar? Qual é a língua dos sem voz e o que eles tem a dizer sobre ela?

    ·         MAS o que é a infância? Qual é a relação dela com o tempo? É “adultez” em potência? Qual é a relação entre infância e mundo? Qual é a relação entre infância e a idade adulta? A infância é algo a ser desenvolvido, orientado, processado?

     

    Não sabemos o que é a infância: “A infância como enigma sugere que temos fracassado, que não conseguimos construir, através das crianças, um mundo melhor. Imagem da alteridade, a infância resiste às nossas estratégias pedagógicas mais sofisticadas. Ela enfrenta nossas pretensões por mitigar sua alteridade, repudia nossa desatenção para a novidade que cada criança traz consigo, se incomoda com nossas sãs intenções de construir um mundo melhor. A infância não é apenas o objeto educacional de nossos ideais. Como imagem da e afirmação, de novidade, de indeterminação, de liberdade, a infância é uma figura do porvir que nenhuma educação que seja sensível a essa novidade pode antecipar. É uma possibilidade para pensar uma nova educação do novo.” (KOHAN, 2003, p. 42)

    O que a infância não é: uma etapa; os primeiros anos.

    O que a infância pode ser: “uma reserva que nos permite dinamizar a vida, uma água que sai da sombra, um estado anímico que permite reviver a liberdade, que se dinamiza em um devaneio benfeitor, quando os homens nos deixam em paz.” (BACHELARD APUD KOHAN, 2003, p. 43)

    Neste momento de crise avassaladora do COVID-19, quantas vezes nos perguntamos sobre os erros de nossa geração ou sobre como será o futuro! Será que estamos esperando pelas gerações futuras – e já idealizando a sua forma – para que uma crise como essa não se repita ou ainda podemos resgatar o novo em nós e agir agora, e deixar a infância em paz?

     

    4° momento – Uma lógica não formativa para o ensino de filosofia

     

    Retomada dos momentos anteriores e algumas propostas do autor.

    Kohan sugere um ensino de filosofia como experiência de pensamento filosófico enquanto “uma prática teórica intersubjetiva, irrepetível, intransferível” (KOHAN, 2003, p. 45) a partir da inspiração em Sócrates e no espaço para problematizar as relações – estas , muito mais de tensão do que de complementaridade – entre filosofia e política. Nesse cenário, a filosofia se desprende da finalidade política. Kohan entende que Sócrates não mostra uma pedagogia formativa baseada na política ao mesmo tempo em que é o único que se dedica à verdadeira política – a saber, uma política filosófica – e, por essa razão, é condenado pela política instituída.

    Se a filosofia se encontra alienada na política, os sentidos filosóficos, aqueles da própria problematização filosófica, se perdem. A proposta de Kohan é um retorno do ensino de filosofia à filosofia, livre de compromissos formativos: “Quando se ensina filosofia para afirmar uma política – ou uma moral, uma pedagogia, uma religião, que para este caso é o mesmo, são todas ordens determinantes –, se impossibilita a filosofia porque a moral, a pedagogia, a política e a religião são para a filosfia um problema e não um ponto de chegada. Quando se buscam finalidades morais, políticas, pedagógicas, religiosas, a filosofia se torna impossível. Por outro lado, quando a filosofia é possível, a moral, a política, a pedagogia e a religião são um espaço vazio, uma interrogação, um intervalo.” (KOHAN, 2003, p. 47)  

     

    Essa proposta de Kohan nos remete ao exercício constante de se perguntar o que é filosofia e também à compreensão das estruturas de poder que estão por trás das definições de filosofia que conhecemos. Além disso, os sentidos da educação e da infância também precisam ser questionados e reelaborados. Para começarmos a refletir sobre educação a partir de problematizações cruciais para a filosofia, nosso próximo passo é estudar a relação entre infância e existência em Simone de Beauvoir tendo em vista as possibilidades de construção de uma realidade diferente daquela que conhecemos a partir da ausência de ser coincidente com a nossa presença no mundo.  

     

     

    Conforme combinamos, há um fórum aberto para esta “aula” no ambiente virtual de nosso curso no moodle para que vocês possam conversar sobre os temas dos textos.

    Seguindo o calendário acadêmico da USP, fazemos uma pausa para o feriado da semana que vem. Em breve envio orientações para a semana subsequente, quando faríamos nossa primeira avaliação. Lembrando que não faremos avaliações a distância.

     

    Abraços e força!

    Juliana

     

    Referência bibliográfica

     

    KOHAN, Walter Omar. “O ensino da filosofia frente à educação como educação”. In: GALLO, Sílvio; CORNELLI, Gabriele; DANELON, Márcio. Filosofia do ensino de filosofia. Petrópolis, RJ: Vozes, v. 7, 2003.

     


  • AULA 6 - 15.04

    Olá, pessoal,

    Como estão?
    Espero que as coisas estejam caminhando da melhor forma possível.

    Se não estivéssemos em meio à pandemia, hoje nos encontraríamos para uma avaliação. Como fazer uma prova não é viável neste momento, já que o acesso e o desempenho de cada estudante seria gravemente afetado pela crise que nos acomete, minha proposta para esta semana, antes de retomarmos os textos do programa, desvia do universo das avaliações. 

    Deixo a vocês notícias, informes, cartas e outras informações que dizem respeito à Universidade de São Paulo e à COVID-19 sobre diversos aspectos da universidade, veiculados por diferentes canais. Deixo o material para conhecimento e para reflexão sobre o que é a universidade e sobre suas relações com a educação, a ciência, a pesquisa e também com as/os estudantes, dentre outros temas que vocês podem identificar. Fiquem à vontade para escreverem sobre suas reflexões nos diários de bordo e em outros momentos de trabalho com os outros textos.

    Abaixo desta mensagem, os links para o material que selecionei.
    Abraços e força!
    Juliana

    Ensino a distância é nova realidade para professores de graduação da USP

    23/03/2020

    https://jornal.usp.br/universidade/ensino-a-distancia-e-nova-realidade-para-professores-de-graduacao-da-usp%E2%80%8B/

     

    'Estamos completamente abandonados aqui', dizem estudantes que moram na USP

    23/03/2020

    https://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2020-03-23/estamos-completamente-abandonados-aqui-dizem-estudantes-que-moram-na-usp.html

     

    Nota à Imprensa da Congregação da Faculdade de Saúde Pública da USP sobre a evolução da pandemia de Covid-19 no Brasil

    27/03/2020

    https://www.fsp.usp.br/site/noticias/mostra/19357

     

    Coronavírus: ‘fomos abandonadas pela USP durante a pandemia, e não podemos nem morrer porque nossos filhos dependem de nós’

    01/04/2020

    https://theintercept.com/2020/04/01/coronavirus-maes-dormitorio-universitario-usp/

     

    As redes de cientistas que fazem aparelhos médicos em falta

    03/04/2020

    https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/03/As-redes-de-cientistas-que-fazem-aparelhos-m%C3%A9dicos-em-falta

     

    Rede USP para o Diagnóstico da COVID-19 (RUDIC)

    03/04/2020

    http://www.inovacao.usp.br/rede-usp-para-o-diagnostico-da-covid-19-rudic/

     

    Em todo o país, universidades públicas estão na linha de frente na luta contra a pandemia

    03/04/2020

    https://www.adusp.org.br/index.php/defesauniv/3617-em-todo-o-pais-universidades-publicas-estao-na-linha-de-frente-na-luta-contra-a-pandemia

     

    SAS rebate reportagem do Intercept Brasil e diz que moradores do Crusp “não foram abandonados”

    06/04/2020

    https://www.adusp.org.br/index.php/defesauniv/3618-sas-rebate-reportagem-do-intercept-brasil-e-diz-que-moradores-do-crusp-nao-foram-abandonados

     

    “Momento não permite omissão e nem negligência criminosa contra a saúde do povo brasileiro”, diz o Coletivo Butantã na Luta em carta enviada ao governador sobre o HU e a crise da Covid-19

    06/04/2020

    https://www.adusp.org.br/index.php/defesauniv/3619-momento-nao-permite-omissao-e-nem-negligencia-criminosa-contra-a-saude-do-povo-brasileiro-diz-o-coletivo-butanta-na-luta-em-carta-enviada-ao-governador-sobre-o-hu-e-a-crise-da-covid-19

     

    USP lança programa de doações para financiamento das pesquisas sobre covid-19

    06/04/2020

    https://jornal.usp.br/institucional/usp-lanca-programa-de-doacoes-para-financiamento-das-pesquisas-sobre-covid-19/

     

    FFLCH, IAU, FAU e IP rejeitam pressões para conversão açodada de ensino presencial em online

    06/04/2020

    https://www.adusp.org.br/index.php/defesauniv/3620-fflch-iau-fau-e-ip-rejeitam-pressoes-para-conversao-acodada-de-ensino-presencial-em-online

     

    Servidor da EACH morre vitimado pela Covid-19

    07/04/2020

    https://www.adusp.org.br/index.php/defesauniv/3622-servidor-da-each-morre-vitimado-pela-covid-19

     

    EACH lamenta falecimento do funcionário Carlos Sérgio de Castro Silva

    http://www5.each.usp.br/destaques-principais/each-lamenta-falecimento-do-funcionario-carlos-sergio-de-castro-silva/

     

    USP Cultura em Casa

    09/04/2020

    https://prceu.usp.br/noticia/cultura-em-casa/

     

    Plasma de pacientes “curados” da covid-19 pode tratar infectados

    09/04/2020

    https://jornal.usp.br/atualidades/plasma-de-pacientes-curados-da-covid-19-pode-tratar-infectados/

     

    "Só queremos tirar nossos filhos desse inferno", diz mãe do Crusp

    10/04/2020

    https://noticias.r7.com/educacao/so-queremos-tirar-nossos-filhos-desse-inferno-diz-mae-do-crusp-10042020

     

    Da cloroquina ao plasma: as apostas da ciência brasileira contra a covid-19

    11/04/2020

    https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/11/da-cloroquina-ao-plasma-as-apostas-da-ciencia-brasileira-contra-a-covid-19.htm

     

    Carta Aberta à Secretaria Municipal de Educação de São Paulo - resposta à Instrução Normativa n. 15, 9/4/2020

    Por GRUPO TERRITORIALIDADES – DRE CAMPO LIMPO

    REDE DE ESCOLAS PÚBLICAS E PESQUISADORAS DO NAI-FEUSP

    TERRITÓRIO EDUCATIVO DAS TRAVESSIAS

    12/04/2020

    http://pesquisas.culturaeduca.cc/index.php?r=survey/index&sid=285969

     

    Comunicado da Congregação Extraordinária de 9 de abril de 2020 – FEUSP

    14/04/2020

    http://www4.fe.usp.br/wp-content/uploads/congregacao-09-20.pdf

     

    Pesquisadores da Poli-USP desenvolvem ventilador pulmonar para enfrentar crise do COVID-19

    https://www.poli.usp.br/inspire

     

    Como a USP está contribuindo para o combate à covid-19?

    https://prp.usp.br/usp-e-covid-19/

     

    Muito além das tarefas a cumprir: notas da FEUSP sobre a educação em tempos de isolamento

    http://www4.fe.usp.br/wp-content/uploads/documento-fe-em-tempos-de-isolamento.pdf

     

    Lançamento do 2º número da Revista Futuro do Pretérito

    http://www4.fe.usp.br/futurodopreterito


  • Aula 7 – 22.04 - Existência

    AULA 7 – Existência

    Olá, pessoal!

    Como estão? Espero que vocês, suas famílias e amigos estejam bem dentro do possível.

     

    Seguindo a proposta de refletir sobre educação a partir de alguns temas caros à filosofia, o tema de hoje é existência. Mas, mais do que apresentar o que caracteriza a presença humana no mundo conforme sua perspectiva filosófica, Simone de Beauvoir descreve os aspectos existenciais da passagem comum a todo ser humano da infância para a adolescência.

    Sugiro então este trecho de Por uma moral da ambiguidade como uma leitura possível da adolescência no plano existencial que pode se desdobrar como base para estudos de situações concretas desse período no campo da educação.

     

    Abaixo, os comentários sobre o texto, que segue em anexo por e-mail, que postarei também no moodle. E sigo respondendo às dúvidas por e-mail.

     

    Vamos seguindo com força, proteção, criatividade e paciência!

    Abraços,

    Juliana

     

     

    Simone de Beauvoir (1908 – 1986, filósofa francesa existencialista)

     

    Uma entrevista com Beauvoir na qual ela fala sobre vários pontos importantes de sua filosofia:

     

     

    Alguns comentários sobre trecho da segunda parte de Por uma moral da ambiguidade (1947)

     

    Infância

     

    Ponto de partida da perspectiva existencialista de Beauvoir: não há nada exterior à nossa consciência que determine nossa experiência no mundo e nem mesmo o que somos. A essência do humano é caracterizada pela ausência de ser: o ser humano não é. Essa ausência de ser é preenchida a cada escolha, a cada ato, em nossa presença no mundo, que realizamos pelo o que a autora chama projeto. O ser humano se lança no mundo, projetando-se a um futuro aberto, para justificar a sua existência e assim tornar-se o que almeja ser. Contudo, é importante destacar que este é um movimento contínuo; nossas escolhas, as ações que elas suscitam e o que nos tornamos não se fixam e por conseguinte não nos determinam de uma vez e para sempre. E esse movimento é possível porque nos compreendemos como consciências criadoras de uma realidade.

    Contudo, quando criança, ainda que o indivíduo perceba-se enquanto consciência e compreenda a singularidade de sua experiência, os efeitos de seus atos ainda esbarram nos limites da realidade construída pelos adultos.

     

    O que caracteriza a situação da criança é que ela se encontra lançada num universo que ela não contribuiu para constituir, que foi moldado sem ela e que lhe aparece como um absoluto ao qual só pode submeter-se; aos seus olhos, as invenções humanas: as palavras, os costumes, os valores são fatos dados, inelutáveis como o céu e as árvores; isso quer dizer que o mundo em que ela vive é o mundo da seriedade, uma vez que o próprio do espírito da seriedade é considerar os valores como coisas prontas. (BEAUVOIR, 2005, p. 35)

     

    Desse modo, o indivíduo já nasce situado em uma realidade em que há instituições, valores, consensos, estruturas fundadas pelas ações dos outros, dos adultos que já estão aqui presentes. Tanto as instituições de nossa sociedade como os valores da família em que crescemos compõem essa situação. São esses projetos alheios que aparecem então ao recém nascido como verdades absolutas, como única realidade possível. Assim, se uma criança brinca, finge ser um animal ou um monstro, por exemplo, é dentro do espaço e do tempo e sob o olhar dos adultos. O mesmo olhar que ora recompensa ora pune seus comportamentos e que no reforço ou na exclusão desses comportamentos parece determinar à criança aquilo que ela é em absoluto.

     

    O mundo verdadeiro é o dos adultos, e nele só lhe é permitido respeitar e obedecer; singelamente vítima da miragem do para outrem, ela acredita no ser de seus pais, de seus professores: ela os toma pelas divindades que eles em vão tentam ser e cuja aparência eles se comprazem a imitar diante de olhos ingênuos; as recompensas, as punições, os prêmios, as palavras de elogio ou de acusação insuflam nela a convicção de que existem um bem, um mal, fins em si, como existem um sol e uma lua; nesse universo de coisas definidas e plenas, ela acredita ser também de maneira definida e plena: ela é um bom menino ou um mau sujeito, compraz-se nisso; se algo secreto nela desmente essa convicção, ela dissimula essa tara; consola-se com uma inconsistência que atribui à sua tenra idade e aposta no futuro: enquanto espera, representa ser; ser um santo, um herói, um ladrão; sente-se semelhante a estes modelos de que seus livros desenham imagens inequívocas em grandes  traços: explorador, salteador, irmã de caridade. (BEAUVOIR, 2005, p. 36)

     

    Sabemos que nem todas as crianças possuem a mesma experiência na relação com os pais e com os professores e que nem sempre terão a oportunidade de brincar de imaginar-se um santo, um herói ou um ladrão ou de conhecer os traços de um explorador em um livro, como descrito no trecho citado acima, mas o que é comum a toda criança, a todo ser humano que vivencia a infância é o privilégio metafísico.

    Primeiramente, o que é metafísica para Beauvoir? Conforme uma perspectiva existencialista, a filósofa compreende o sujeito a partir de sua existência, da presença humana no mundo, e a realidade, a partir dos projetos que se desdobram do desvelamento da consciência daquilo que há ao seu redor – e por desvelamento a autora se refere ao significado humano atribuído ao mundo, não apenas ao mundo físico, mas aos valores e às noções de moral que são construídas, bem como ao outro, nas relações intersubjetivas. Nesse sentido, pode-se compreender que tudo o que conhecemos, da forma como conhecemos, primeiramente surge como desvelamento do sujeito e então, a partir dos projetos desse sujeito, que transcendem a condição da espécie humana, por um movimento criador interfere no mundo e se torna realidade. Vale notar que esse sujeito não está sozinho, ou seja, as construções sociais resultam do entrecruzamento de projetos, do desvelamento de diversas consciências. Nesse contexto, uma moral, assim como regras e leis, por exemplo, não advêm de um destino ou de qualquer plano sobrenatural que determine a realidade em que vivemos. Não há também para Beauvoir verdades absolutas, conceitos filosóficos rígidos ou realidades que estejam além daquela que os indivíduos experienciam num plano concreto; nesse sentido, não há metafísica para a autora. Para ela, a metafísica é da ordem do ser, ela afirma no texto Literatura e metafísica (1945) que não se faz metafísica como se faz matemática ou física; “‘fazer’ metafísica é ‘ser’ metafísico, é realizar em si a atitude metafísica que consiste em pôr-se na sua totalidade em face da totalidade do mundo.” (BEAUVOIR, 1965, p. 87) Em outras palavras, ser metafísico é descobrir a sua própria existência em seu corpo e ao mesmo tempo perceber a sua relação livre e contingente com o mundo, bem como a sua presença nele.

     

    Todos os acontecimentos humanos possuem, para além dos seus contornos psicológicos e sociais, uma significação metafísica pois que, através de cada um deles, o homem empenhou-se sempre inteiramente num mundo completo: e, sem dúvida, não há ninguém que se não tenha descoberto em qualquer momento da sua vida. (BEAUVOIR, 1965, p. 87)

      

     Daí a situação de privilégio da criança, que não percebe essa liberdade na sua própria existência enquanto está sob o teto de regras e valores criado pelos adultos.

     

    Adultos infantilizados em situações de opressão

     

    A situação da criança, à qual Beauvoir se refere como “privilégio metafísico”, não deve perpetuar-se, ela tende a se desfazer na medida em que o indivíduo cresce e observa comportamentos diferentes, e também as contradições, entre os adultos, ao mesmo tempo em que determinados papéis já lhe são atribuídos. Mas em algumas situações, a saber, nas situações de opressão, indivíduos adultos não compreendem a si próprios como sujeitos autônomos ou, ainda, qualquer ação ou intenção daquele indivíduo de afirmar sua subjetividade é tolhida por um outro, que se considera Um, que se afirma como sujeito absoluto, seja pelo reconhecimento de sua suposta superioridade no âmbito social, por suas condições materiais ou até mesmo por imposição pelo uso da força física. Beauvoir destaca a situação de opressão de pessoas negras em uma sociedade escravagista e de mulheres do Oriente e do Ocidente em ambientes sexistas.

    Beauvoir refere-se a “escravos que ainda não se elevaram à consciência de sua escravidão” e escreve sobre “os negros que se submetiam docilmente a seu [dos plantadores do Sul] paternalismo”. Podemos então nos perguntar: a situação de escravidão decorre da falta de consciência do escravo a respeito dessa situação e também de sua submissão? Houve escravos que “respeitavam o mundo dos brancos”? (Cf. BEAUVOIR, 2005, p. 37) Se um escravo não transcendia a sua situação de escravidão, não quer dizer que ele não reagia àquela situação, nem que se submetia a ela ou a respeitava. Vale neste momento um breve excurso em Mulheres, raça e classe (1981) da filósofa estadounidense Angela Davis (1944 – ), que destaca a resistência de homens negros e mulheres negras escravizados nos Estados Unidos. Entre 1642 e 1864, ela assinala, dentre as formas de resistência estavam confrontos, revoltas, fugas, sabotagens e o aprendizado da leitura e da escrita em escolas noturnas. No que diz respeito especificamente à resistência de mulheres em situação de escravidão, Davis escreve:

     

    Se as mulheres negras sustentavam o terrível fardo da igualdade em meio à opressão, se gozavam de igualdade com seus companheiros no ambiente doméstico, por outro lado elas também afirmavam sua igualdade de modo combativo, desafiando a desumana instituição da escravidão. Resistiam ao assédio sexual dos homens brancos, defendiam sua família e participavam de paralisações e rebeliões. [...] elas envenenavam os senhores, realizavam ações de sabotagem e, como os homens, se juntavam às comunidades de escravos fugitivos, seguindo com frequência rumo ao Norte em busca de liberdade. Dos numerosos registros sobre a repressão violenta que os feitores infligiam às mulheres, deve-se inferir que aquela que aceitava passivamente sua sina de escrava era a exceção, não a regra. (DAVIS, 2016, p. 31)

     

    Beauvoir comenta também sobre a situação de mulheres que tomam por verdades as perspectivas e compreensão do mundo de seus maridos ou amantes, dos homens em geral; esta situação descrita pela autora reflete imagens que aparecerão em O segundo sexo (1949), livro que começa a ser escrito no mesmo ano da publicação dete texto com o qual estamos trabalhando. São frequentes em O segundo sexo imagens da realidade de donas de casa burguesas que, na descrição e na análise de Beauvoir, parecem sentir-se privilegiadas na posição de “rainha do lar”, financeiramente sustentadas por maridos que não apenas garantem a sua condição material, mas lhes dão a sua própria visão de mundo, as suas verdades, como fazem os adultos com as crianças. Entretanto há uma diferença entre a situação da criança e a dessas mulheres: no que concerne ao momento da vida, a mulher não é uma criança, é uma adulta que percebe sua presença no mundo e sua relação com ele. Aliás, na aspereza, na fúria que demonstram ao contestarem os papéis infantis aos quais a sociedade as impele, como lemos no trecho estudado de Por uma moral da ambiguidade, fica claro que a mulher também afirma a sua subjetividade no mundo.

    Nesse sentido, para Beauvoir, a mulher também é uma consciência autônoma e desvela o mundo; daí dizer que essa mulher escolhe ou consente sua situação. E aqui é importante conhecermos o significado da noção de escolha em Beauvoir. A filósofa não quer dizer, ao sugerir que um indivíduo oprimido escolhe, que uma vítima seja responsável pela opressão que sofre, mas que está presente no mundo, e dar-se conta dessa presença implica escolher. Ao ser humano não é possível escapar de sua subjetividade, da apreensão do mundo e do outro por meio de sua consciência. Num plano ontológico, a liberdade é intrínseca a toda existência humana. Todo ser humano é livre, caracterizado por uma ausência de ser a ser preenchida a cada instante pelo desvelamento do ser, mas sem a possibilidade de fixar o ser, ou seja, de ser num sentido absoluto. Ser na perspectiva existencialista beauvoiriana é tornar-se. Porém, num plano concreto, da realidade socialmente construída, a liberdade humana, intrínseca à existência, ao menos em potencial, nunca aniquilada enquanto o indivíduo estiver vivo, é limitada por uma situação, que é o conjunto das condições materiais, sociais e históricas. A forma como este indivíduo é visto por outrem e os papéis que lhe são destinados pesam significativamente em sua situação. Assim, nós, seres humanos, escolhemos o tempo todo, mas cada escolha é uma escolha em situação.

    Em uma sociedade sexista, situada enquanto um ser humano inferior em relação ao homem, por vezes não há saída segura para a mulher proteger-se, garantir o seu sustento ou mesmo ser reconhecida dignamente pela sociedade a não ser no papel de esposa. Sua situação a impele a escolher algo diferente do que ela deseja. Essa escolha, para Beauvoir, é uma escolha inautêntica, uma atitude de má-fé. Quanto ao termo má-fé, este não tem o mesmo sentido da expressão que utilizamos comumente em nosso dia a dia, mas remete a um auto engano. A autora não pretende julgar moralmente as escolhas inautênticas, mas, ao considerar toda ação humana uma escolha, reforça que há sempre um sujeito, que pensa, define e julga o que há ao seu redor, mesmo que sua situação limite as suas ações no mundo.

     

    Adolescência

     

    Excetuada as situações de opressão, em que a subjetividade de um indivíduo é desconsiderada, como vimos acima, não é comum o mundo infantil se manter além da adolescência.

     

     

    Desde a infância, falhas já se revelam; no espanto, na revolta, no irrespeito, a criança pouco a pouco se interroga: por que é preciso agir assim? para que isso é útil? E se eu agisse de outra maneira, o que aconteceria? Ela descobre sua subjetividade, descobre a subjetividade dos outros. E quando chega à idade da adolescência, todo o seu universo começa a vacilar porque ela percebe as contradições que opõem os adultos uns aos outros e também as hesitações e fraquezas deles. Os homens deixam de lhe aparecer como deuses, e ao mesmo tempo o adolescente descobre o caráter humano das realidades que o cercam: a linguagem, os costumes, a moral, os valores, têm sua fonte nessas criaturas incertas; chegou o momento em que será chamado a participar também dessa operação; seus atos pesam sobre a terra tanto quanto os dos outros homens, ele precisará escolher decidir. (BEAUVOIR, 2005, p. 38)

     

    Se a adolescência é um período de crise, primeiramente, há nela uma dificuldade conhecida pelo adolescente que é de ordem existencial, uma vez que o jovem tem de assumir sua subjetividade. Nessa passagem a criança se livra do caráter absoluto atribuído ao mundo dos adultos ao mesmo tempo em que conhece o desamparo e o vazio da liberdade para criar o mundo.

     

    [É] a adolescência que aparece como o momento da escolha moral: então sua liberdade se revela e é preciso decidir sobre sua atitude em relação a ela. Sem dúvida, essa decisão sempre pode ser recolocada em questão, mas de fato as conversões são difíceis, pois o mundo nos manda de volta o reflexo de uma escolha que se confirma através deste mundo que ela moldou; assim se fecha um círculo cada vez mais rigoroso, do qual fica cada vez mais improvável que se possa escapar. A infelicidade que vem ao homem por ele ter sido uma criança reside, pois, no fato de que sua liberdade lhe foi primeiramente mascarada e de que por toda a sua vida ele conservará a nostalgia do tempo em que ignorava as exigências dela. (BEAUVOIR, 2005, p. 39)

     

    Passamos por essa virada da qual fala Beauvoir. Ainda que naquele momento não a compreendêssemos sob o ângulo filosófico deste texto que estudamos, hoje podemos fazer o exercício de olhar para nossas lembranças a partir dessa perspectiva baseada na existência proposta por Beauvoir. Considerar esse vazio do ser e a brusca ruptura que marca o adolescente durante a descoberta desse desamparo existencial – descoberta que ocorre diante da presença de outrem que, apesar de encontrar-se nas mesmas condições existenciais do jovem, exige dele decisões, comportamentos, o cumprimento de normas e regras – pode abrir nossos horizontes para compreendermos a adolescência para além de caricaturas.

    Tomemos, por exemplo, as discussões sobre maioridade penal: é comum nos depararmos com quem defenda a diminuição da idade que corresponda à maioridade penal por compreender que se o indivíduo comete uma falta, um crime, é por ter idade suficiente para assumir a responsabilidade por seus atos como um adulto. Mas em que medida conhecemos os nossos atos, principalmente assim que deixamos a infância, e como o mundo dos adultos nos recebe para que passemos a criar nossa moral e nossos valores sem experiências passadas, sem ponto de partida, apenas a partir do teto edificado por gerações anteriores que acaba de ruir? E poderíamos também considerar a situação na qual o indivíduo se encontra.

     

    A escolha moral é livre e, portanto, imprevisível; a criança não contém este homem que ela se tornará; entretanto, é sempre a partir do que foi que um homem decide sobre o que quer ser: no caráter que confirmou para si, no universo que lhe é correlativo, ele colhe as motivações de sua atitude moral; ora, esse caráter, esse universo, a criança os constituiu pouco a pouco, sem prever seu desenvolvimento; ela ignorava o rosto inquietante desta liberdade que ela exercia irrefletidamente, abandonava-se com tranqüilidade a caprichos, risos, lágrimas, cóleras que lhe pareciam ser amanhã e sem perigo e que no entanto deixavam nela impressões indeléveis. (BEAUVOIR, 2005, p. 39)

     

    Por fim, não deixo de destacar também que, para Beauvoir, uma escolha, um ato, não define o indivíduo para sempre. Assim, fracassos não são definitivos. No plano ontológico, da ordem do ser, a liberdade não se separa da existência humana; no plano moral, o indivíduo, a partir de sua liberdade justifica a sua existência por suas atitudes, a cada instante, e por toda vida.

     

     

    Referência bibliográfica

     

    BEAUVOIR, Simone de. “Literatura e metafísica”. In: ______. O existencialismo e a sabedoria das nações. Tradução: Manuel de Lima e Bruno da Ponte. Lisboa: Minotauro, 1965, p.79-95.

     

    ______. Por uma moral da ambigüidade. Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

     

    DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução: Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.

     

     

     

  • Aula 8 – 29.04 - Autonomia

    AULA 8 – Autonomia

    Olá, pessoal!

    Espero que estejam bem.

     

    Na semana passada apresentei a vocês a reflexão filosófica de Simone de Beauvoir sobre a experiência da passagem da infância para adolescência no plano existencial, quando o indivíduo percebe a si mesmo como parte do mundo e como consciência autônoma que pode interferir na realidade. Hoje minha proposta é refletirmos, com o texto “Resposta à pergunta: O que é Esclarecimento?” do Kant, acerca dessa autonomia e sobre a disposição do sujeito servir-se dela para fazer um uso livre da razão.

     

    Em anexo, o texto, e abaixo, os comentários, desta vez como fichamento por parágrafos, que é um tipo de registro que vocês também podem fazer (se já não o fazem) para organizar melhor os estudos e também para localizar mais facilmente algum tema no texto.

     

    Abraços e força,

    Juliana

     

    Immanuel Kant (1724 – 1804, Königsberg, filósofo prussiano)

     

    Sobre Kant, a importância de sua filosofia na tensão ciência x metafísica na passagem da Idade Média para a Idade Moderna e suas contribuições para a Pedagogia, pelo Professor Antonio Joaquim Severino (professor aposentado do EDF da FEUSP):

     

    Resposta à pergunta: O que é Esclarecimento? (1784)

     

    Introdução

     

    A ruptura com uma metafísica de verdades absolutas instituídas pela Igreja durante a Idade Média atravessa a reflexão de Kant ao longo deste texto. Em 1781, no prefácio da Crítica da Razão Pura, o filósofo identificara o momento em que vivia como uma época de crítica, quando a religião e a majestade (a política) estavam submetidas a olhares críticos decorrente do livre pensar natural. Para Kant, esse livre pensar deve ser um direito de todos, e é naquele momento, durante o governo do “déspota esclarecido” Frederico II (1712 –1786), rei da Prússia, que o filósofo reconhece a garantia desse direito. Para além de filosofar sobre o que é o conhecimento, em “Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?”, Kant contextualiza o significado de Iluminismo e reflete sobre a autonomia dos sujeitos e os usos público e privado da razão. Quando escreve sobre um uso público da razão, o autor se refere à relação do sujeito com o público, para o público, para o mundo, falando em sua própria pessoa. Ao passo que, no uso privado da razão, o sujeito está situado como parte da engrenagem da instituição na qual desempenha seu ofício; ou seja, cidadão privado, fala em nome de outrem e a ele cabe um papel de tutor.

    Conforme lemos na primeira nota do texto, o mote para “Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?” é a própria pergunta que Kant destaca no título. A questão fora colocada por Johann Fridrich Zöllner, que debate no Mensário Berlinense (Berlinischer Monatschrift) sobre a necessidade da religião na sanção do vínculo matrimonial e sobre o lugar da Ilustração nesta decisão.

     

    Primeira parte – parágrafos 1 a 4 – definição de Esclarecimento (Aufklärung)

     

    a)      parágrafos 1 a 3 – o ser humano e a possibilidade de passagem à maioridade – plano individual

     

    1.      Definições:

     

    Esclarecimento (Aufklärung) significa a saída do homem de sua minoridade, pela qual ele próprio é responsável.

     

    “A minoridade é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro.”

    Para utilizar o entendimento: resolução e coragem. – (Sapere aude: Ousa saber!)

     

    2.      Quando fala em menoridade, Kant não se refere a um período específico da vida, mas ao estado do indivíduo que abre mão de pensar a respeito da realidade conforme o seu próprio entendimento e toma como direcionamento as verdades alheias. O filósofo não deixa de assinalar que a saída da menoridade seja considerada pelas pessoas um passo penoso e perigoso, mas enfatiza a importância e a possibilidade de alguém acessar a maioridade.

    Neste trecho, também nos chama a atenção o que Kant diz sobre as mulheres, nas palavras do autor, “o belo sexo”: “Que a maior parte da humanidade (e especialmente todo o belo sexo) considere o passo a dar para ter acesso à maioridade como sendo não só penoso, como ainda perigoso, é ao que se aplicam esses tutores que tiveram a extrema bondade de encarregar-se de sua direção.” Em linhas gerais: se, por um lado, para uma mulher afirmar-se enquanto sujeito autônomo, guiar-se pelo próprio entendimento, seria mesmo penoso e perigoso, dado às restrições postas às mulheres naquele momento, por outro lado, nessa passagem Kant reforça a condição de inferioridade das mulheres em relação aos homens imposta por uma sociedade sexista, inclusive quando refere-se a esses indivíduos impelidos à condição de objeto com a expressão “o belo sexo”. Observação que pode ser desdobrada em uma ampla e profícua investigação.

     

    3.      Mas a dificuldade atinge a todos os seres humanos. A menoridade pode até mesmo aparecer como uma espécie de “segunda natureza”, uma vez que a experiência da maioridade é por vezes ignorada, principalmente quando o sujeito se encontra numa situação que o impede de acessar de maneira autônoma o seu próprio entendimento. E quem ousaria ultrapassar o que está dado?

    “Preceitos e fórmulas, esses instrumentos mecânicos destinados ao uso racional, ou antes ao mau uso de seus dons naturais, são os entraves desses estado de minoridade que se perpetua. Quem o rejeitasse, no entanto, não efetuaria mais do que um salto incerto por cima do fosso mais estreito que seja, pois ele não tem o hábito de uma tal liberdade de movimento. Assim, são poucos os que conseguiram, pelo exercitar de seu próprio espírito, libertar-se dessa minoridade tendo ao mesmo tempo um andar seguro.”

     

    b)      Parágrafo 4 – o ser humano enquanto indivíduo público e a possibilidade de passagem à maioridade

     

    4.      Entre vários indivíduos, haverá aqueles que pensam por si mesmos, dentre eles, aqueles cujo entendimento, consciência, são tomados como base pelos que não rejeitaram menoridade, e que “difundirão o espírito de uma apreciação razoável de seu próprio valor e a vocação de cada homem de pensar por si mesmo.” E o próprio público, antes submetido por esses tutores, os forçará a manter esse espírito. Quanto ao público, este “só pode aceder lentamente ao Esclarecimento. Uma revolução poderá talvez causar a queda do despotismo pessoal ou de uma opressão cúpida e ambiciosa, mas não estará jamais na origem de uma verdadeira reforma da maneira de pensar; novos preconceitos servirão, assim como os antigos, de rédeas ao maior número, incapaz de refletir.”  

     

    Segunda parte – parágrafos 5 a 7 – Usos da razão

     

    5.      Para que haja Esclarecimento, é preciso que haja liberdade.

    Uma forma de liberdade: fazer uso público da própria razão em todos os domínios.

    MAS, Kant assinala que há limitações (“não raciocinai!”) por toda parte, vindas de todos os lados, do oficial, do conselheiro de finanças, do padre, sempre acompanhadas de uma ordem a ser obedecida. O único senhor no mundo que diz aos indivíduos para raciocinarem, ao qual Kant se refere num parênteses neste parágrafo é Frederico II, rei da Prússia naquele momento. Contudo, fica claro que raciocinar não significa desobedecer. Há então uma distinção entre o que Kant denomina uso público da razão e o que compreende ser o uso privado desta:

    “Mas que limitação constitui obstáculo ao Esclarecimento, e qual não constitui ou lhe é mesmo favorável? Respondo: o uso público de nossa razão deve a todo momento ser livre, e somente ele pode difundir o Esclarecimento entre os homens; o uso privado da razão, por sua vez, deve com bastante freqüência ser estreitamente limitado, sem que isso constitua um entrave particular o progresso do Esclarecimento. Mas entendo por uso público de nossa razão o que fazemos enquanto sábios para o conjunto do público que lê. Denomino de uso privado aquele que se é autorizado a fazer de sua razão em um certo posto civil ou em uma função da qual somos encarregados. Ora, muitas tarefas que concorrem ao interesse da coletividade (gemeinem Wesens) necessitam de um certo mecanismo, obrigando certos elementos da comunidade a se comportar passivamente, a fim de que, graças a uma unanimidade artificial, sejam dirigidos pelo governo a fins públicos, ou pelo menos impedidos de destruí-los. Nesse caso, com certeza, não é permitido argumentar (räsonieren). Deve-se somente obedecer. Dado que essa parte da máquina, no entanto, se concebe como elemento do bem público como um todo, e mesmo da sociedade civil universal, assume por conseguinte a qualidade de um erudito que se dirige a um só público, no sentido próprio do termo, por meio de escritos, ele pode então raciocinar sem que as tarefas às quais ele está ligado como elemento passivo sejam afetadas.”

    Kant descreve algumas situações:

    - um oficial: não pode raciocinar em voz alta sobre a conveniência ou utilidade da ordem recebida pelos seus superiores. Ele só pode obedecer. E vale notar que “não se pode com justiça proibir-lhe, enquanto especialista, fazer observações sobre as faltas cometidas durante o período de guerra, e submetê-las ao julgamento de seu público.”

    - um cidadão: não pode recusar-se a pagar os impostos que lhe são exigidos. “Mas não está em contradição com seu dever de cidadão se, enquanto erudito, ele manifesta publicamente sua oposição a tais imposições inoportunas ou mesmo injustas.”

    - um padre: obrigado a fazer seu sermão de acordo com o símbolo da Igreja à qual ele serve. “Mas, enquanto erudito, ele dispõe de liberdade total, e mesma da vocação para tanto, de partilhar com o público todas suas idéias minuciosamente examinadas e bem intencionadas que tratam das falhas desse simbolismo e de projetos visando a uma melhor abordagem da religião e da Igreja.”

    E mais além acrescenta:

    “O uso, portanto, que um pastor em função faz de sua razão diante de sua paróquia é apenas um uso privado; pois esta é uma assembléia de tipo familiar, qualquer que seja sua dimensão; e, levando isso em conta, ele não é livre enquanto padre e não tem o direito de sê-lo, pois ele executa uma missão alheia à sua pessoa. Em contrapartida, enquanto erudito que, por meio de seus escritos, fala ao verdadeiro público, isto é, ao mundo, por conseguinte no uso público de sua razão, o padre desfruta de uma liberdade ilimitada de servir-se de sua própria razão e de falar em seu próprio nome. Pois, querer que os tutores do povo (nas coisas eclesiásticas) voltem a ser menores, é um absurdo que contribui para a perpetuação dos absurdos.”        

     

    6.      Kant nos chama a atenção para os efeitos de manter um comprometimento dos indivíduos com símbolos imutáveis ditados pelos seus superiores. “Uma época não pode se aliar e conspirar para tornar a seguinte incapaz de estender seus conhecimentos (sobretudo tão urgentes), de libertar-se de seus erros e finalmente fazer progredir o Esclarecimento. Seria um crime contra a natureza humana, cuja vocação original reside nesse progresso; e os descendentes terão pleno direito de rejeitar essas decisões tomadas de maneira ilegítima e criminosa. A pedra de toque de tudo o que pode ser decidido sob forma de lei para um povo se encontra na questão: um povo imporia a si mesmo uma tal lei? Ora, esta seria possível, por assim dizer, na espera de uma melhor, e por um breve e determinado período, a fim de introduzir uma certa ordem; sob condição de autorizar ao mesmo tempo cada um dos cidadãos, principalmente o padre, em sua qualidade de erudito, a fazer publicamente, isto é, por escrito, suas observações sobre os defeitos da antiga instituição, sendo enquanto isso mantida a ordem introduzida.”

    A reflexão que Kant desenvolve neste texto vislumbra a possibilidade de retardar o Esclarecimento. Fica claro que o autor estabelece graus para o questionamento e a mudança das instituições, ao mesmo tempo em que é taxativo quanto à impossibilidade de acordo com uma constituição, a saber, religiosa, o foco de sua crítica, que seja tida como imutável.

     

    7.      Para Kant, a autoridade legislativa de um monarca não lhe dá o direito de decidir pelo povo. A conciliação entre melhoria – verdadeira ou pretensa, Kant assinala – e a ordem civil tem como base a vontade do povo. Ao monarca cabe velar para que entre os súditos não haja violência pela qual um impeça o outro de pensar por si. Atitudes despóticas apenas o rebaixam e prejudicam sua própria majestade.

      

    Terceira parte – parágrafos 8 a 11 – Época esclarecida

     

    8.      Não vivemos numa época esclarecida, mas de Esclarecimento (à qual Kant se refere também como “o século de Frederico”). Há então um momento de transição, contudo, ainda falta muito para que haja condições de os indivíduos deixarem seus tutores. E aqui fica evidente o lugar central dado à religião neste texto. “Muito falta ainda para que os homens, no estado atual das coisas, tomados conjuntamente, estejam já num ponto em que possam estar em condições de se servir, em matéria de religião, com segurança e êxito, de seu próprio entendimento sem a tutela de outrem.”

     

    9.      O que Kant quer dizer com o termo “esclarecido” quando o emprega a Frederico II? O filósofo se refere a um soberano que assuma, no que concerne à religião, a libertação dos seus súditos da minoridade como um dever. Este governante não é tolerante, é esclarecido. E essa libertação dos súditos está sujeita à permissão, à concessão, e ocorre dentro de limitações: “Sob seu reinado, honoráveis eclesiásticos, a despeito de seu dever de função, têm a permissão, em qualidade de eruditos, de apresentar livre e publicamente ao exame de todos os juízos e pontos de vista que se afastam aqui ou ali dos símbolos adotados; melhor ainda, esse direito é concedido a todos que não se encontram limitados por seu dever de função.”

     

    10.  Naquele momento, as ciências e as artes, ao ver de Kant, estão livres da tutela dos soberanos. Por isso é a religião o foco principal do Esclarecimento, da saída do indivíduo da mais nociva e mais desonrosa minoridade. O uso livre da razão, bem como a crítica e a reelaboração da legislação são claramente possíveis nesse contexto examinado por Kant; mas a contestação, o processo, qualquer ação revolucionária parecem não caber nesse cenário; sobre a autorização do uso público da razão, o próprio texto diz: “não há perigo”.

     

    11.  Há então um paradoxo: o soberano não teme o comando vindo de uma religião, mas comanda indivíduos bem disciplinados (estes também livres de prescrições sobre a religião), situação que se traduz na ordem: “raciocinai o quanto quiserdes, e sobre o que desejardes, mas obedecei!” Assim, nesse contexto, é a obediência dos súditos que garante o uso livre da razão, e também a tranquilidade pública. Kant compara: “Um grau mais elevado de liberdade civil parece ser vantajoso para a liberdade de espírito do povo, e lhe impõe todavia barreiras intransponíveis; um grau menos elevado daquela proporciona a este em contrapartida a possibilidade de estender-se de acordo com suas forças.” Na época do Esclarecimento, o uso livre da razão, essa própria inclinação para pensar livremente torna o povo cada vez mais capaz para ter a liberdade de agir, e o governo, capaz de encontrar o seu interesse em tratar os súditos na medida de sua dignidade.

     

    Vamos pensar nas noções de esclarecimento e autonomia neste texto de Kant. Como vocês as compreendem a partir dessa leitura?

     

  • Aula 9 – 06.05 - Experiência

    AULA 9 – Experiência

    Olá, pessoal,

    Espero que estejam bem e se cuidando.

     

    Nesta semana pensemos sobre a experiência vivida pelo sujeito no contexto da aprendizagem. Se na semana anterior comentei sobre o uso livre da razão em Kant, a proposta de hoje foca no pensamento enquanto imaginação e criatividade no âmbito educacional. Temos desta vez Lev Vygotsky e John Dewey pela leitura de Anísio Teixeira como suporte.

    Disponibilizo aqui e por e-mail os textos e os comentários e seguimos com nosso contato pelo fórum e por e-mail.

    Abraços e força,

    Juliana

     

    Lev Vygotsky (1896-1934), psicólogo russo

    Alguns interesses do autor: psicologia da arte, estética teatral e educação estética

    Texto que estamos estudando: capítulo 1 de Imaginação e criatividade na Infância, livro sobre psicologia da imaginação criativa, publicado em 1930.

    Um ponto de partida na reflexão de Vygotsky: imaginação e criatividade estão em qualquer um dos âmbitos da vida.

     

    Conceitos importantes para esta leitura: imaginação e criatividade

     

    IMAGINAÇÃO

    As primeiras experiências do sujeito com o outro fundam a primeira ligação entre imaginação e realidade.

    Impulso real da criatividade.

     

    CRIATIVIDADE

    Ato criativo: qualquer ato humano que dá origem a algo novo.

    Desde a primeira infância: criatividade como condição necessária para a existência.

     

    Comportamento humano:

    1. Atividade reprodutiva/reprodutora

     

    associada à memória

     

    - reproduz ou repete “modos de comportamento já anteriormente elaborados e produzidos”.

    Exemplo: aprendi um idioma e hoje, ao escrever nesse idioma, reproduzo ou repito modelos, regras assimiladas e elaboradas naquela aprendizagem.

     

    - ressuscita “traços de impressões anteriores” (experiências do passado)

    Exemplo: posso lembrar de detalhes de lugares onde estive.

     

    Importância da conservação da experiência anterior

     

    Para que o sujeito se relacione com o mundo: seus hábitos são criados e elaborados a partir da memória de suas experiências anteriores em condições análogas às quais se encontram. Essa adaptação, a partir de uma repetição simplificada de impressões conservadas de ações suficientemente fortes ou ações repetidas com bastante frequência, é possível devido à plasticidade da nossa substância nervosa, que além de alterar-se, conserva os vestígios dessa alteração.

     

    MAS as condições do meio exterior se transformam. Como se dá então a adaptação do ser humano a situações nas quais ele não identifica elementos de suas experiências passadas?

     

    1. Atividade criadora ou combinatória

     

    associada à imaginação (fundamento de toda atividade criadora)

     

    - para além da reprodução e da repetição: criação de novas imagens e ações a partir dos elementos das experiências ou impressões vividas.

     

    - possibilidade de modificar o presente / essência do ser humano: orientada para o futuro.

     

    Vale notar: se qualquer ato humano que dá origem a algo novo é um ato criativo, é errôneo não reconhecermos e não admitirmos a criatividade daqueles que não criaram grandes obras artísticas ou não realizaram grandes descobertas científicas.

    Daí pensarmos na criatividade coletiva:

    “Se tomarmos em atenção a existência da criatividade coletiva, que reúne todos estes contributos por si só insignificantes da criatividade individual, compreende-se melhor como grande parte de tudo o que foi criado pela humanidade pertence precisamente ao trabalho criativo e coletivo anônimo de inventores desconhecidos.” (VYGOTSKY, 2012, p. 26)

     

     

    Outras questões para a nossa reflexão:

     

    No que as bases da proposta de uma pedagogia da imaginação criativa de Vygotsky – as noções de imaginação e criatividade, e a compreensão da criatividade como condição para a existência – podem contribuir para a sua formação? E ainda, em tempos de crise de COVID-19, em que medida, a partir de uma atividade criadora e combinatória, própria do humano, que nos permite modificar o presente e despertar nossa essência, orientada para o futuro, podemos vislumbrar possibilidades de práticas de educação quando a crise passar? Podemos levar meses para construirmos as respostas para esta pergunta.

     

     

    Anísio Teixeira (1900 – 1971), educador e filósofo brasileiro

    Documentário Anísio Teixeira: educação não é privilégio:

     

    John Dewey (1859 – 1952), filósofo estado-unidense

    Dois grandes interesses do autor: problemas da educação e ensino público nos Estados Unidos.

    A partir da convicção “Democracia é liberdade.”, para a qual busca uma argumentação filosófica, Dewey visa integrar teoria e prática na educação.

    Base teórica: funcionalismo – fundado pelo filósofo e psicólogo estado-unidense William James (1842 – 1910). Em linhas gerais, o funcionalismo volta-se ao pragmatismo, foca na relação entre o sujeito e o meio ambiente, passando da pergunta “o que é a consciência?” para “para que é a consciência?”.

    Na Universidade de Chicago, Dewey cria uma “escola experimental”

    Mais sobre John Dewey:

     

    Do lugar da criança na educação

    Dewey recusa tanto teorias tradicionalistas que acusam métodos cujo foco é a criança de suprimir a autoridade dos adultos, e que pretendem impor ao educando conhecimentos sem instruí-lo a respeito dos métodos de investigação experimental, como os românticos que tomam as faculdades e interesses do aluno como importantes em si, e cujas teorias focam única e exclusivamente na criança.

    Da escola

    A proposta de Dewey é organizar a escola como cooperativa de modo a fomentar o espírito social das crianças e desenvolver seu espírito democrático. Nesse contexto, no entorno social escolar, a ser criado pelos professores, as crianças lidam com situações problemáticas a serem resolvidas por meio de conhecimentos teóricos e práticos da esfera científica, históricos e artísticos, e assumem responsabilidades de uma vida moral democrática. O filósofo tinha como proposta transformar as escolas do país em instrumentos da democratização radical da sociedade estado-unidense. Para ele, ao conceber a filosofia como uma ciência experimental, toma como ponto de partida a construção de uma escola.

     

    Sobre “A pedagogia de Dewey (Esboço da teoria de educação de John Dewey)” de Anísio Teixeira

     

    Em Vygotsky, a relação com o outro aparece como fundadora da ligação entre imaginação e realidade. E em Dewey, na leitura de Teixeira, a relação com o outro, e também com o mundo, é fundamental na vivência da experiência:

    “Pode-se mesmo dizer que tudo existe em função dessas relações mútuas, pelas quais os corpos agem uns sobre os outros, modificando-se reciprocamente.

    Esse agir sobre o outro corpo e sofrer de outro corpo uma relação é, em seus próprios termos, o que chamamos de experiência. Nosso conceito de experiência, longe, pois, de ser atributo puramente humano, alarga-se à atividade permanente de todos os corpos, uns com os outros.” (TEIXEIRA, 1980, p. 113)

     

    “Experiência é uma fase da natureza, é uma forma de interação, pela qual os dois elementos que nela entram – situação e agente – são modificados.” (TEIXEIRA, 1980, p. 113)

     

     

    Teixeira descreve três tipos de experiência:

     

    1.      experiências que apenas temos: não chegamos a conhecer seu objeto e às vezes não sabemos que as temos;

     

    2.      experiências refletidas: chegamos a conhecê-las e até mesmo a processos de análise e à indagação de sua própria realidade;

     

    3.      para além da experiência: “vagos anseios do homem por qualquer coisa que ele não sabe o que seja, mas que pressente e adivinha.” – desdobramentos de falhas, contradições e dificuldades ou de outras manifestações nas experiências.

     

    As experiências refletidas e os desdobramentos que ultrapassam a própria experiência, pela linguagem e pela comunicação formam a experiência humana.

     

    Da relação entre experiência e aprendizagem

    “Ora, se a vida não é mais que um tecido de experiências de toda sorte, se não podemos viver sem estar constantemente sofrendo e fazendo experiências, é que a vida é toda ela uma longa aprendizagem. Vida, experiência, aprendizagem – não se podem separar. Simultaneamente vivemos, experimentamos e aprendemos.” (TEIXEIRA, 1980, p. 115)

     

    E se a aprendizagem é intrínseca à experiência vivida: a educação é definida como “fenômeno direto da vida, tão inelutável como a própria vida”. (TEIXEIRA, 1980, p. 116)

     

    Teixeira enfatiza o lugar natural que a educação tem na vida humana para Dewey, independente de processos de preparação específicos a certos períodos da vida, articula vida e educação:

     

    “Enquanto vivo, eu não me estou, agora, preparando para viver e daqui a pouco, vivendo. Do mesmo modo eu não me estou em um momento preparando para educar-me e, em outro, obtendo o resultado dessa educação. Eu me educo através de minhas experiências vividas inteligentemente. Existe, sem dúvida, certo discurso de tempo em cada experiência, mas assim as primeiras fases como as últimas do processo educativo, tem todas igual importância, e todas colaboram para que eu me instrua e me eduque  - instrução e educação que não são os resultados externos da experiência reconstruída e reorganizada mentalmente no curso de sua elaboração.” (TEIXEIRA, 1980, p. 116)

     

    Mas se em alguma medida educação, experiência e vida coincidem, para que serviriam as escolas?

     

    Teixeira identifica a escola proposta por Dewey como “mecanismo especializado e sistemático, para fornecer aquilo que a vida, diretamente, não pode ministrar.” (TEIXEIRA, 1980, p. 119) E alerta para o risco de esta escola obrigar a criança a deveres insípidos e contraproducentes e tornar-se um fim em si mesma.

    Mas mesmo na escola, a experiência é elemento fundamental na orientação da criança a apreender o sentido que as coisas tem para os outros. A experiência com o uso do objeto cadeira, por exemplo, contribui para a criança, em seguida, aprender a palavra cadeira e compreender que essa palavra representa o que significa suas experiências com a cadeira. “A experiência é ampliada por um processo de reconstrução imaginativa. As novas coisas aprendidas estão ligadas às primeiras experiências reais.” (TEIXEIRA, 1980, p. 121) Retomamos então a importância da imaginação, que vimos em Vygotsky, para a aprendizagem.

     

    E não podemos esquecer que a aprendizagem não está desprendida de um meio social. Teixeira pontua que Dewey compreende o indivíduo como ser social e, consequentemente, a intersubjetividade também é crucial no ambiente escolar. A proposta de Dewey se apóia na noção de educação como participação, na realização de atividades com outras pessoas que compartilhem os mesmos sentido e finalidade para tal atividade.

     

    Reforço então o peso da relação com o outro e da vida quando refletimos sobre educação, seja pela noção de imaginação em Vygotsky, fundada pela experiência com o outro, ou pelo conceito de experiência em Dewey, a partir do qual surge uma proposta de educação de um indivíduo concebido como um ser social.

    E destaco a criatividade, que nos orienta para o futuro a partir dos elementos de impressões e experiências passadas em Vygotsky, e o processo de reconstrução imaginativa na aprendizagem em Dewey, que evoca as primeiras experiências reais. 

    Intersubjetividade, imaginação, criatividade, experiência, vida, sociedade e passado são os elementos que deixo para vocês prosseguirem com suas investigações filosóficas acerca da educação.

     

    Referências bibliográficas

    TEIXEIRA, Anísio. “A Pedagogia de Dewey (Esboço da teoria da educação de John Dewey)”, IN: DEWEY, John. Vida e Educação. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Col. “Os Pensadores”).

    VYGOTSKY, Lev Semenovitch. Imaginação e Criatividade na Infância. Ensaio de Psicologia. Tradução, introdução e notas de João Pedro Fróis. Lisboa: Dinalivros, 2012, p. 21-28.

     

     

     

  • Aula 10 - 13.05 - Intersubjetividade

    Aula 10 – 13.05 – Intersubjetividade

     

    Olá, pessoal,

    Como estão?

    Espero que estejam bem e com saúde.

    Depois de pensarmos a educação à luz de reflexões filosóficas sobre existência e autonomia, e também sobre a experiência imaginativa e criadora do sujeito, agora acrescentamos ao nosso escopo uma análise do sujeito diante do outro. Trago aqui a questão da intersubjetividade em Alejandro Cerletti, num recorte específico dentro do campo da educação.

    Envio então o texto e os comentários, e aqui no moodle, há um fórum para conversas sobre as impressões de vocês.

    Abraços e força,

    Juliana

     

    Professor Alejandro Cerletti (Argentina)

     

    A imagem da intersubjetividade à qual recorro no texto do Professor Alejandro Cerletti para darmos continuidade aos nossos estudos é a do espaço comum a professores e alunos, que recriam o perguntar filosófico, deslocando-se do campo da universalidade das perguntas e respostas daqueles reconhecidos como filósofos, e se voltam à singularidade de cada um, para converterem essas perguntas em problemas. No campo educativo-filosófico, Cerletti identifica três sujeitos: quem aprende, quem ensina e o vínculo entre ambos. Ou melhor, no âmbito do pensar compartilhado de uma aula, há um sujeito coletivo.

    Embora o foco do autor seja o ensino de Filosofia, com este texto proponho que vocês levem algo de um pensar filosófico para o ato de ensinar que vocês praticarão. Aliás, vale notar que Cerletti propõe a filosofia como um olhar analítico, desnaturalizado e problematizador de diversos aspectos da questão educativa.

    O ponto de partida do autor é a noção de repetição criativa do filósofo francês Alain Badiou (1937 – ). Cerletti afirma que, segundo Badiou, haverá sempre na filosofia, “uma decisão de reorganizar o existente a partir de novas decisões normativas.” O que há e o que pode haver são realidades vinculadas, de modo que, se há repetição, há também possibilidades outras. O gesto filosófico da repetição criativa pode ser recebido, empregado e transformado, a partir da própria apropriação que fazemos dele, apropriação esta, feita por cada indivíduo desde sua particularidade. Conforme a leitura de Cerletti, para Badiou a filosofia repete o gesto de alterar a continuidade do que “se diz”. “Todo ato filosófico estabelece sempre uma separação, uma distinção, que permite abrir novos rumos.” (CERLETTI, 2009, p. 36) Nesse sentido, é fundamental a autonomia de quem ensina; Cerletti considera o ensino de filosofia “uma construção subjetiva, apoiada em uma série de elementos objetivos e conjunturais.” (CERLETTI, 2009, p. 8) Para o autor, toda educação implica alguma forma de autoaprendizagem, alguma forma de apropriação subjetiva e singular do saber e também de uma decisão de fazer.

    Seguindo essa trilha da leitura de Badiou por Cerletti, acrescento que é crucial que não abafemos ou calemos a pluralidade da subjetividade. A pluriversalidade[1], para usarmos o termo de Ramose, como vimos, nos liberta de um conhecimento único e nos dá subsídios para reagirmos contra as narrativas dominantes do sujeito que se afirma como absoluto, pela revelação da particularidade como base do conhecimento; tal como a filosofia de Simone de Beauvoir sugere que a realidade sempre poderia ser outra, já que é a partir do desvelamento dos sujeitos que surgem o que compreendemos como valores e as instituições que conhecemos. Proponho a vocês abrirem novos rumos do educar por meio dessa repetição criativa de Badiou da qual parte Cerletti. Esta e todas as minhas outras propostas de estudos só são essas porque são especificamente minhas, ou seja, elas revelam não apenas a ementa de Filosofia da Educação I da FEUSP, mas também a minha bagagem filosófica. Isso ocorre comigo e com todo professor, toda professora. Pela ótica de Cerletti, o ensino depende de quem ensina, conforme os conhecimentos filosóficos e pedagógicos que este possui e do vinculo que mantém com a filosofia.

     

     

    Sobre o capítulo 1 - Que é ensinar filosofia?

     

    Cerletti coloca alguns problemas da atividade de ensinar filosofia, mas que são próprios do ensino. Podemos retomar algumas questões.

    O que é ensinar? Resposta comum: ensinar é transmitir algo a alguém. Mas o que é transmitir? O que você transmite quando ensina? E como é definido esse objeto “transmitido” pelo ensino?

    Como exercício, sugiro tentar responder essas perguntas, para que vocês descubram um pouco sobre suas possibilidades de construção por meio do ensino, o percurso acadêmico de vocês e sobre o que atravessa este percurso. E gostaria de dar essa dimensão filosófica aos questionamentos que vocês podem levantar a respeito das práticas educacionais e do objeto de ensino de vocês.

    No caso de perguntas como “o que é ensinar filosofia?” “o que é filosofia?”, estas já são perguntas filosóficas. Por outro lado, podemos responder as mesmas perguntas a partir de documentos oficiais que instituem as formas de ensino e os fins da educação de modo objetivo.

    Prosseguindo com algumas noções que podem parecer já sólidas o bastante, o que dizemos sobre transmissão? É comum aceitarmos que há uma passagem do não saber ao saber, na qual aquele que sabe explica, passa conhecimento, àquele que não sabe, e em seguida verifica se a passagem, o aprendizado, foi efetivada.

    Qual é a relação entre esse tipo de transmissão com a forma como você ensina?

    No caso da filosofia, Cerletti identifica uma relação entre a sua definição e a forma de ensiná-la. É importante também para o autor pensarmos a relação entre história da filosofia e a filosofia que circula em aula. Algumas situações possíveis para essas relações:

     

    Haveria consequências didáticas diferentes se supuséssemos, por exemplo, que a filosofia é essencialmente o desdobramento de sua história, ou se a entendêssemos como desnaturalização do presente; se consideramos sua atividade como uma cuidadosa exegese de fontes filosóficas, ou como um exercício problematizador do pensamento sobre todas as questões; se avaliamos que ela pode significar um auxílio para o bom viver ou a supomos uma complicação inexorável da existência; ou se assumimos que ela serve para fundamentar a vida cidadã ou para encarnar uma crítica radical da ordem estabelecida, etc. Obviamente, poderia pensar-se também em qualquer combinação dessas caracterizações ou agregar muitas mais. Mas persistiria que o que se o que se considera ser basicamente a filosofia deveria expressar-se de alguma maneira em seu ensino, se se deseja estabelecer alguma continuidade entre o que se diz e o que se faz em um curso. (CERLETTI, 2002, p. 17)

     

    Nesse sentido, é fundamental então perguntar-se sobre qual filosofia colocamos em jogo para promovermos o encontro entre filosofia e educação, e situar o ensino e a aprendizagem no próprio fazer filosófico ou desenvolvê-los sobre a filosofia. Mas, será que assim não teríamos a pretensão de transmitir o resultado do filosofar em vez de mostrar o filosofar em ato?

     

    Em última instância, todo ensino filosófico consiste essencialmente em uma forma de intervenção filosófica, seja sobre textos filosóficos, sobre problemáticas filosóficas tradicionais, seja até mesmo sobre temáticas não habituais da filosofia, enfocadas desde uma perspectiva filosófica. (CERLETTI, 2002, p. 19)

     

    Essa perspectiva é o pano de fundo do professor, baseada no que ele considera mais pertinente, ou de acordo com sua concepção, conhecimento, preferência e capacidade. Não há um saber filosófico neutro e compartilhado por todos. E em sala de aula, como se desdobram as perguntas e respostas que compõem esse saber?

     

    O filosofar se apóia na inquietude de formular e formular-se perguntas e buscar respostas (o desejo de saber). Isso pode sustentar-se tanto no interrogar-se do professor ou dos alunos nas tentativas de respostas que ambos se dêem, bem como no de um filósofo e suas respostas. Essas respostas que os filósofos se deram são, paradigmaticamente, suas obras filosóficas. Mas é muito diferente “explicar” as respostas que, em um contexto histórico e cultural determinado, um filósofo se deu, do que os estudantes e o professor tentarem se apropriar dos questionamentos desse filósofo, para que essas respostas passem a ser, também, respostas a problemas próprios. O perguntar filosófico é, então, o elemento constitutivo fundamental do filosofar e, portanto, do “ensinar filosofia”. Consequentemente, um curso filosófico deveria constituir-se em um âmbito em que possam ser criadas as condições para a formulação de perguntas filosóficas, e no qual se possa começar a encontrar algumas respostas. (CERLETTI, 2009, p. 20-21)

     

    E em sala de aula, o saber filosófico resulta não apenas do percurso docente, mas também da presença discente, ou seja, da relação intersubjetiva do ensino-aprendizagem. O “aprender” a filosofar é considerado por Cerletti, com apoio no pensamento de Badiou, um ato pessoal, e ainda, o professor argentino nos alerta para a imprevisibilidade do pensamento do outro no ensino-aprendizagem.  Ou seja, o resultado do ensinar está sob as inconstâncias do imprevisto.

     

     

    Sobre o capítulo 2 - O perguntar filosófico e a atitude filosófica

     

    Se nos perguntamos sobre ensinar filosofia hoje, suscitamos outra pergunta: por que filosofia hoje? E ainda, a transmissão da filosofia pressupõe definir filosofia. Assim, se queremos que questionamentos filosóficos acompanhem o nosso modo de ensinar, voltamos a uma das perguntas do início do nosso curso: o que faz com que uma pergunta seja filosófica? Ou melhor, acompanhando Cerletti, que tipo de resposta você espera para sua pergunta? Para o autor, “o que faz com que uma interrogação possa ser considerada filosófica, fundamentalmente, está mais na intencionalidade de quem pergunta, ou se pergunta, do que na pergunta em si.” (CERLETTI, 2009, p. 23)

    E, quanto à resposta, quando se responde definitivamente a pergunta filosófica? É importante que saibamos que o questionamento do filósofo é permanente. Assim, a insistência das perguntas que se sucedem é mais importante do que a resposta dada a uma pergunta filosófica.

    E de onde vem as perguntas filosóficas? A filosofia fala daquilo que existe e leva o que existe ao conceito – (lembram do texto de Ramose?[2]) O sujeito é agente do perguntar, a questão não se impõe a ele vinda de uma exterioridade, nem a resposta está além de nós, a ser descoberta.

     

    Afirmamos que a sustentação do caráter filosófico de uma pergunta é a intencionalidade de quem pergunta. Adotando uma terminologia de inspiração sartriana, não haveria, então, um perguntar filosófico “em si”, como se as perguntas filosóficas pudessem ser objetivadas sem o compromisso que supõe assumi-las em toda a sua magnitude. Poderíamos dizer que o perguntar filosófico é sempre “para si”. Quem pergunta e se pergunta filosoficamente intervém no mundo e nele se situa subjetivamente. Leva adiante um gesto de desnaturalização daquilo que lhe aparece, interpela o que “se diz” e se dirige aos saberes com uma inquietude radical. Pois bem, a questão é como se poderia ensinar essa intencionalidade ou esse desejo de saber que sustenta as perguntas filosóficas. (CERLETTI, 2009, p. 26)

     

    E quanto mais as perguntas persistem e se acumulam e nos afastamos de uma resposta única, não identifiquemos essa ausência de uma resolução objetiva como fracasso!

     

    Pois bem, essa incerteza, incômodo ou insatisfação surgida da impossibilidade de dar conta cabalmente do mais básico de nossa atividade, longe de ser um obstáculo filosófico ou didático – ou, talvez, precisamente por sê-lo – constitui a chave do filosofar. Consideramos que o que move alguém a filosofar é o desafio de ter que dar conta, permanentemente, de uma distância ou de um vazio que nunca é preenchido, satisfeito. Poderíamos dizer que nós, que nos dedicamos à filosofia atualizamos, a cada dia, esse desafio, porque tentamos responder cotidianamente àquela pergunta. E ensinar, ou tentar transmitir a filosofia, é também – e antes de mais nada – um desafio filosófico, porque na tarefa de ensinar vemo-nos obrigados a enfrentar esse vazio e tentar reduzir, cada um à sua maneira, aquela distância que busca ser preenchida. (CERLETTI, 2009, p. 27)

     

    Se houve surpresa no primeiro dia de aula, ao começarmos com uma questão que deixa a resposta à pergunta “o que é filosofia?” em aberto, como vocês tem lidado com essa ausência de resposta, sem que nunca cheguemos a definir o que é filosofia, na medida em que avançamos pelo curso?

    A filosofia, ainda que nos falte certeza acerca de sua definição, pode nos auxiliar como atitude questionadora e crítica diante daquilo que está assentado, de caráter aparentemente inquestionável, em qualquer esfera do conhecimento e no plano concreto de nossa experiência. Essa atitude pode ser incorporada ao ato de ensinar que se dá por um viés filosófico. “O que haveria que tentar ensinar seria, então, esse olhar agudo que não quer deixar nada sem revisar, essa atitude radical que permite problematizar as afirmações ou colocar em dúvida aquilo que se apresenta como óbvio, natural ou normal.” (CERLETTI, 2009, p. 29)

    Esse movimento de uma atitude radical ultrapassa a mera aquisição de conhecimento; pela filosofia, conhecimentos e relações com o mundo podem ser reordenados, o sujeito pode criar. Em sala de aula, é o encontro com o outro que fomenta essa atividade criadora.

     

     

    Referências bibliográficas

     

    CERLETTI, Alejandro. O ensino de filosofia como problema filosófico. Trad. Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p. 11-29.

     

    RAMOSE, Magobe. “Sobre a legitimidade e o estudo da Filosofia Africana”. In: Ensaios filosóficos, v. 4, p. 6-23, 2011.

     

     

     



    [1] Cf. RAMOSE, 2011, p. 10

    [2] “Onde quer que haja um ser humano, há também a experiência humana. Todos os seres humanos adquiriram, e continuam a adquirir sabedoria ao longo de diferentes rotas nutridas pela experiência e nela fundadas. Neste sentido, a filosofia existe em todo lugar.” (RAMOSE, 2011, p. 8)

  • Aula 11 - 03.06 - História

    Aula 11 - História

     

    Olá, pessoal.

    Espero que vocês e seus entes queridos estejam bem.

     

    Hoje retomo o programa, por e-mail e pelo moodle.

    Nosso último contato tratava da intersubjetividade pelo recorte do texto do Cerletti. Hoje, retomo a intersubjetividade professor(a) – aluna(o) e sua relação com a temporalidade com o texto A crise na educação de Hannah Arendt, reflexão que ressalta a importância da história para elaborarmos nossas práticas educacionais.

    Continuo aguardando as respostas de vocês nos formulários ou um contato por e-mail, caso ainda não tenhamos conversado, para combinarmos a atividade a ser entregue para a conclusão do semestre.

    Atendendo a sugestões, criei uma sala no Google Classroom, como mais um canal de comunicação e compartilhamento entre nós: https://classroom.google.com/u/0/c/MTA3ODY4MzE5ODg4 . Adicionei o e-mail de todo mundo. Caso alguém não tenha recebido o convite, o código da turma é: 5girzjq. De todo modo, ainda manterei os e-mails e o moodle.  

     

    Compartilho também o cronograma para nossas quartas-feiras das próximas semanas:

     

    ·         10.06 (semana que vem): e-mail e moodle – orientações para leitura / fichamento / produção de texto.

     

    ·         17.06 das 19h às 20:30: Google Meet (atividade síncrona que poderá ser acessada posteriormente) – orientações para leitura / fichamento / produção de texto.

     

    ·         24.06: e-mail e moodle – Situação (LOURO, Guacira Lopes (org.). Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pósestruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 37-87 e NOGUERA JR, Renato. “Afrocentricidade e Educação: princípios gerais para um currículo afrocentrado”. In: Revista África e Africanidades, v. III, p. 01-18, 2010.)

     

    ·         01.07 das 19h às 20:30: Google Meet (atividade síncrona que poderá ser acessada posteriormente) – Situação (LOURO, Guacira Lopes (org.). Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pósestruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 37-87 e NOGUERA JR, Renato. “Afrocentricidade e Educação: princípios gerais para um currículo afrocentrado”. In: Revista África e Africanidades, v. III, p. 01-18, 2010.)

     

    ·         08.07: e-mail e moodle – Emancipação (ADORNO, Theodor W. “Educação após Auschwitz”. In: Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.)

     

    ·         15.07: Google Meet (atividade síncrona que poderá ser acessada posteriormente) – Emancipação (ADORNO, Theodor W. “Educação após Auschwitz”. In: Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.)

     

    E ainda teremos 22 e 29.07. Em breve compartilho o cronograma dessas datas com vocês.

    Aproveito para comentar que desenvolvi um pouco mais um dos textos de nosso programa e o enviei como contribuição para o repositório Educação em tempos de isolamento da FEUSP: http://www4.fe.usp.br/wp-content/uploads/juliana-oliva.pdf?fbclid=IwAR0Zgnnw7tiqWwgCayscHxM0GRFRXjyOujfcVAVgf5zOliyZ8UlLDNsu0Q0

     

    Abraços, força, paciência e criatividade para seguirmos!

    Juliana

     

    Hannah Arendt (teórica política – ou filósofa, apesar da recusa da autora por essa identificação – Alemanha, 1906 – EUA, 1975)

     

    Identificamos Hannah Arendt como filósofa. Contudo, apesar de ter estudado e ensinado Filosofia, ela não se identificava como uma filósofa, mas como teórica política. Arendt era judia e passou pelo campo de internação de Gurs na França, mas antes de ser levada ao campo de concentração, conseguiu partir para os Estados Unidos.

    Dentre suas obras, As origens do totalitarismo e Eichmann em Jerusalém, cujo tema central é o conceito de Arendt de banalidade do mal, tiveram e ainda tem bastante destaque.

     

    Sobre a relação entre Hannah Arendt e educação pelo Professor José Sérgio Fonseca de Carvalho da FEUSP, que é estudioso de Arendt:

     

    Mais sobre a vida e a obra da autora, nos primeiros 60 minutos de https://sesc.digital/conteudo/educacao/19524/contextos-hannah-arendt-e-a-educacao-dia-1

     

    E o filme Hannah Arendt:

     

     

     

    Minhas considerações sobre o texto que acompanhamos hoje: Destaco alguns pontos da relação entre os conceitos de educação, crise, temporalidade e autonomia em A crise na educação (palestra proferida em 1958), parte do livro Entre o passado e o presente (publicado em 1961)

     

    Comecemos pelo final do texto:

     

    O que nos diz respeito, e que não podemos portanto delegar à ciência específica da pedagogia, é a relação entre adultos e crianças em geral, ou, para colocá-lo em termos ainda mais gerais e exatos, nossa atitude face ao fato da natalidade: o fato de todos nós virmos ao mundo ao nascermos e de ser o mundo constantemente renovado mediante o nascimento. (ARENDT, 1972, p. 247 / p. 18 do arquivo)

     

    Hannah Arendt, que não é uma teórica da educação, no texto A crise na educação, desloca, da pedagogia para a filosofia, a análise da natalidade enquanto fato – seres nascem para o mundo – que diz respeito a todos os indivíduos e enquanto transformação constante do mundo, aspectos que influem na maneira como adultos e crianças se relacionam.

    Mas se estamos falando sobre uma crise da educação, há uma primeira questão que se coloca: o que é educação? Tomemos o final do texto:

     

    A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum. (ARENDT, 1972, p. 247 / p. 18 do arquivo)

     

    A educação é tomada por Arendt de modo amplo, como responsabilidade de todos os adultos, estes, designados como responsáveis não apenas pela criança, mas também pelo mundo. Eis a importância da compreensão que temos da relação entre a nossa geração e as novas gerações na definição que podemos elaborar para a palavra “educação”. Ao longo do texto de Arendt fica claro também o quanto precisamos repensar a distinção que fazemos entre o mundo de nossa geração e um certo mundo do “amanhã”, a ser construído pelas crianças de hoje, por vezes identificadas como “o futuro”. Como os indivíduos aos quais Arendt se refere como recém chegados, recebidos em nosso mundo, poderiam dar origem a uma realidade completamente nova? E ainda, quando almejamos um mundo diferente daquele que conhecemos, mas orientamos esses recém chegados quanto ao tipo de mundo que queremos, não estamos então falando de um mundo de aspectos muito parecidos com aquele em que já vivemos?

    Seriam então também estas questões pulsando no texto de Arendt, que nos dariam pistas sobre a crise que há na educação naquele momento?

    Mas o que é uma crise?

     

    I

     

    A palavra “crise”, que pode ser usada para referirmo-nos a um grave desequilíbrio entre a produção e o consumo, estende-se a outras esferas da sociedade. O desequilíbrio identificado por Arendt na educação não é decadente, mas decorre da ausência de uma resposta básica para uma pergunta, resposta esta que nem era identificada como tal por estar assentada em ideias aceitas sem exame crítico. A crise é oportunidade de rompimento:

     

    É a oportunidade, proporcionada pelo próprio fato da crise - que dilacera fachadas e oblitera preconceitos -, de explorar e investigar a essência da questão em tudo aquilo que foi posto a nu, e a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo. O desaparecimento de preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos apoiávamos de ordinário sem querer perceber que originariamente elas constituíam respostas a questões. Uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas novas ou velhas, mas de qualquer modo julgamentos diretos. Uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com preconceitos. Uma atitude dessas não apenas aguça a crise como nos priva da experiência da realidade e da oportunidade por ela proporcionada à reflexão.  (ARENDT, 1972, p. 223 / 1-2)

     

    Uma crise na educação nos Estados Unidos na década de 1960 não é o mesmo tipo de acontecimento que houve nas grandes guerras e nos campos de concentração, mas Arendt nos chama a atenção para a seriedade e para o aspecto político dessa crise, bem como para sua amplitude, a crise na educação reflete a crise do mundo moderno. E no contexto político:

     

    Sempre que, em questões políticas, o são juízo humano fracassa ou renuncia à tentativa de fornecer respostas, nos deparamos com uma crise; pois essa espécie de juízo é, na realidade, aquele senso comum em virtude do qual nós e nossos cinco sentidos individuais estão adaptados a um único mundo comum a todos nós, e com a ajuda do qual nele nos movemos. O desaparecimento do senso comum nos dias atuais é o sinal mais seguro da crise atual. Em toda crise, é destruída uma parte do mundo, alguma coisa comum a todos nós. A falência do bom senso aponta, como uma vara mágica, o lugar em que ocorreu esse desmoronamento. (ARENDT, 1972, p. 226 / p. 4-5)

     

    Da relação entre política e educação nos Estados Unidos

     

    Há um entusiasmo histórico estadunidense pelo novo, desde o lema impresso nas notas de dólar: Novus Ordo Seclorum (Uma Nova Ordem dos Séculos, ou, conforme a tradução da nossa edição, Uma Nova Ordem do Mundo), referindo-se à imigração, constituinte daquele país, esta, segundo Arendt, relacionada à consciência política e à estrutura psíquica estadunidenses, até a crença no início de um mundo novo a ser construído por quem acaba de nascer. A autora entende que é a educação dos filhos de imigrantes, aliás, que possibilita a fusão de diversos grupos étnicos, pela “americanização” dos filhos dos imigrantes.

    A ideia de um mundo novo que seja fruto da educação pode ser para o adulto um escape dos riscos de fracasso de suas próprias ações junto aos seus iguais, ou seja, de sua própria geração. Mas uma nova ordem política, ressalta Arendt, ideia que pertence ao velho mundo, só seria possível mediante o banimento de todas as pessoas mais velhas do Estado, uma vez que quaisquer que sejam nossas propostas para uma nova ordem política, estas sempre serão mais velhas do que os próprios recém nascidos a quem atribuímos a tarefa de fundar um mundo novo, e deles tomaríamos essa empreitada:  “preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo.” (ARENDT, 1972, p. 226/3-4). E ainda, é importante separar educação de política.

     

    A educação não pode desempenhar papel nenhum na política, pois na política lidamos com aqueles que já estão educados. Quem quer que queira educar adultos na realidade pretende agir como guardião e impedi-los de atividade, política. Como não se pode educar adultos a palavra "educação" soa mal em política; o que há é um simulacro de educação, enquanto o objetivo real e a coerção sem o uso da força. (ARENDT, 1972, p. 225/3)

     

    A educação americanizada, à qual todos tem o direito, que sustenta a ideia de que um mundo novo é construído pelas crianças que chegam em casa com um idioma diferente que afeta seus pais imigrantes, desfazendo um mundo antigo, está imbuída de um papel político. Essa mesma educação, em prática num país avançado e moderno, para ficarmos nos termos da autora, naquele momento encontra-se em atraso em relação aos países da Europa. A crise está relacionada à aceitação de pressupostos de teorias modernas da educação.

     

    [E]m parte alguma os problemas educacionais de uma sociedade de massas se tornaram tão agudos, e em nenhum outro lugar as teorias mais modernas no campo da Pedagogia foram aceitas tão servil e indiscriminadamente. Desse modo, a crise na educação americana de um lado, anuncia a bancarrota da educação progressiva e, de outro, apresenta um problema, imensamente difícil por ter surgido sob as condições de uma sociedade de massas e em resposta às suas exigências. (ARENDT, 1972, p. 226-228/5)

     

    A autora ressalta também que aquelas práticas educacionais igualitárias, ainda que tivessem resultados positivos, estão apoiadas no sacrifício da autoridade do indivíduo que ensina. Mas, “em todo caso, esses fatores gerais não podem explicar a crise em que nos encontramos presentemente, e tampouco justificam as medidas que a precipitaram.” (ARENDT, 1972, p. 229/6)

     

     

    II

     

    Esta segunda parte do texto apresenta uma crítica aos pressupostos das teorias da progressive education (cujo grande nome é John Dewey), conhecida aqui no Brasil como Escola Nova (para nós, Anísio Teixeira é o grande nome desse campo). Ainda que Arendt não as discuta, refere-se às práticas educacionais presentes nas escolas calcadas nos pressupostos dessas teorias. Eis então uma reflexão filosófica sobre a criança e a educação na contramão de teorias modernas que aparecem em alguns textos que estudamos em nosso programa.

     

    1. A ideia de um mundo e uma sociedade infantil autônoma na qual a autoridade vem do próprio grupo, e não do adulto, que apenas interfere para que o pior não aconteça. Nesse cenário, do indivíduo confrontado pela maioria do grupo, daqueles que se impõem, a criança encontra-se sob uma autoridade mais forte e mais tirânica. Nessa espécie de “mini democracia”, as crianças se organizam sem a orientação dos adultos, o que não significa que elas não reproduzam aspectos do mundo dos adultos, inclusive aspectos tirânicos. Nessa suposta emancipação do mundo dos adultos, a criança não está livre, não pode se rebelar e nem mesmo escapar para o próprio mundo dos adultos.

     

    2. Pedagogia como ciência do ensino em geral, sob influência da psicologia moderna e dos princípios do pragmatismo. Considerar professor aquele que pode ensinar qualquer coisa, que não se especializou nas disciplinas que ensina negligencia a formação dos professores e abala a efetividade da autoridade daquele que sabe.

     

    3. Substituição do aprendizado pelo fazer, que decorre de uma ideia de que “só é possível conhecer e compreender aquilo que nós mesmos fizemos.” Espera-se que o professor ensine como o saber é produzido, a habilidade se sobrepõe ao conhecimento. O trabalho é substituído pelo brincar, ou seja, toda atividade a ser desenvolvida pela criança deve ser divertida ou lúdica, e mais uma vez o mundo da criança é tido como absoluto, como se a infância não fosse temporária e a criança não estivesse em desenvolvimento para tornar-se um adulto. Assim, extingue-se o relacionamento natural entre crianças e adultos. Arendt critica a pedagogia que afirma que as crianças aprendem somente a partir da própria experiência. Tal pressuposto desqualifica certa transmissão de conhecimento que pode se dar, por exemplo, em uma aula expositiva na qual o docente narra fatos históricos importantes para a compreensão do presente, conhecimento que a criança não alcançará por meio de sua experiência em seu grupo.

     

    Eis então a crise:

     

    A atual crise, na América, resulta do reconhecimento do caráter destrutivo desses pressupostos básicos e de uma desesperada tentativa de reformar todo o sistema educacional, ou seja, de transformá-lo inteiramente. Ao fazê-lo, o que se está procurando de fato - exceto quanto aos planos de uma imensa ampliação das facilidades de educação nas Ciências Físicas e em tecnologia - não é mais que uma restauração: o ensino será conduzido de novo com autoridade; o brinquedo deverá ser interrompido durante as horas de aula, e o trabalho sério retomado; a ênfase será deslocada das habilidades extracurriculares para os conhecimentos prescritos no currículo; fala-se mesmo, por fim, de transformar os atuais currículos dos professores de modo que eles mesmos tenham de aprender algo antes de se converterem em negligentes para com as crianças. (ARENDT, 1972, 233-234 / p. 9)

     

    O questionamento desses três pressupostos, uma vez aceitos, e agora insuficientes como resposta, deflagra uma crise. A crise da educação ocorre quando já não sabemos muito bem o que é o mundo público, o nosso mundo comum. Mas Arendt deixa de lado as discussões sobre as reformas propostas e suas questões técnicas e foca em duas questões: 1. “Quais foram os aspectos do mundo moderno e de sua crise que efetivamente se revelaram na crise educacional, isto é, quais são os motivos reais para que, durante décadas, se pudessem dizer e fazer coisas em contradição tão flagrante com o bom senso?” 2. “o que podemos aprender dessa crise acerca da essência da educação - não no sentido de que sempre se pode aprender, dos erros, o que não se deve fazer, mas sim refletindo sobre o papel que a educação desempenha em toda civilização, ou seja, sobre a obrigação que a existência de crianças impõe a toda sociedade humana?”

     

    III

     

    Arendt começa pela segunda questão, que trata do papel da educação na civilização e da obrigação imposta à sociedade pela existência de crianças, e do que podemos aprender, levando esses dois aspectos em consideração, acerca dessa crise da essência da educação.

    Vimos na segunda seção que um dos graves problemas apontados pela autora está na cisão entre o mundo dos adultos e a infância. Elementar e necessária, a educação, que é mais do que um mero treinamento para a sobrevivência, acolhe o recém chegado no mundo. Há uma história acontecendo, o mundo tem uma memória e objetos duradouros, e os recém chegados estão em estado de vir a ser, mais do que um novo ser humano, é um ser humano em processo de crescimento vital.

    Aos pais, cabem não apenas os cuidados com a criança e a sua proteção, mas também não deixar de lado as conquistas que o mundo acumulou em sua história. No mundo público, no âmbito político, nós, adultos, somos responsáveis pelo mundo, o qual nem sempre corresponde ao que desejamos, e por transformá-lo.

     

    Os pais humanos, contudo, não apenas trouxeram seus filhos à vida mediante a concepção e o nascimento, mas simultaneamente os introduziram em um mundo. Eles assumem na educação a responsabilidade, ao mesmo tempo, pela vida e desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo. Essas duas responsabilidades de modo algum coincidem; com efeito podem entrar em mútuo conflito. A responsabilidade pelo desenvolvimento da criança volta-se em certo sentido contra o mundo: a criança requer cuidado e proteção especiais para que nada de destrutivo lhe aconteça de parte do mundo. Porém também o mundo necessita de proteção, para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração. (ARENDT, 1972, 235 / p. 10)

     

    Eis então a esfera privada da família, segura, na qual a criança é protegida dos olhares do mundo público e para a qual os adultos retornam diariamente. Do outro lado, a vida pública, que reúne todos os indivíduos e os impedem de colidir, revela um espaço comum, construído pelo trabalho, pelas mãos de todos nós. Ao mesmo tempo em que a criança precisa estar protegida do mundo público, a ambiência em que, entre iguais, se dá o seu desenvolvimento, não pode ser considerada um tipo de vida pública. A suposta vida pública das crianças em um grupo de indivíduos da sua idade, concebida pela educação moderna, é artificial e prejudica o desenvolvimento e o crescimento vitais em curso que resultará na vida adulta. Sobre esse contexto, Arendt questiona:

     

    Como pôde então acontecer que as mais elementares condições de vida necessárias ao crescimento e desenvolvimento da criança fossem desprezadas ou simplesmente ignoradas? Como pôde acontecer que se expusesse a criança àquilo que, mais que qualquer outra coisa, caracterizava o mundo adulto, o seu aspecto público, logo após se ter chegado à conclusão de que o erro em toda a educação passada fora ver a criança como não sendo mais que um adulto em tamanho reduzido? (ARENDT, 1972, 237 / p. 11)

     

    As respostas para tais perguntas não serão encontradas exatamente no campo da educação, mas nas bases constituídas pelas concepções modernas de vida privada e mundo público sobre as quais a educação moderna se edifica. A emancipação da vida e sua preservação, socialmente compreendidas como bem supremo, para além do âmbito privado, com ares de liberação para trabalhadores e mulheres, que passam a preencher funções necessárias no processo vital da sociedade, confunde o público e o privado. Cada ser humano é distinto de todos os outros e não existe para apenas ser uma peça para produção e consumo na sociedade. No caso das crianças, elas ainda não participam do mundo:

     

    Os últimos a serem afetados por esse processo de emancipação foram as crianças, e aquilo mesmo que significara uma verdadeira liberação para os trabalhadores e mulheres - pois eles não eram somente trabalhadores e mulheres, mas também pessoas, tendo portanto direito ao mundo público, isto é, a verem e serem vistos, a falar e serem ouvidos - constituiu abandono e traição no caso das crianças, que ainda estão no estágio em que o simples fato da vida e do crescimento prepondera sobre o fator personalidade. (ARENDT, 1972, p. 237-238 / p. 11)

     

    Arendt não ignora que o objetivo dos sistemas educacionais modernos seja o bem estar da criança. Mas se opõe a uma educação centrada na criança, naquele que aprende. O recém-chegado é novo em relação ao mundo, que já existia e continua a existir, para além da passagem dos seres humanos por ele. Assim, para a autora, a educação deve ser centrada no mundo.

    Cabe à escola então, que não é o mundo e que não deve fingir sê-lo, mediar a transição da vida privada da casa, da família, para o mundo público pela qual passa a criança.

     

    Na medida em que a criança não tem familiaridade com o mundo, deve-se introduzi-la aos poucos a ele; na medida em que ela é nova, deve-se cuidar para que essa coisa nova chegue à fruição em relação ao mundo como ele é. Em todo caso, todavia, o educador está aqui em relação ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade, embora não o tenha feito e ainda que secreta ou abertamente possa querer que ele fosse diferente do que é. Essa responsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores; ela está implícita no fato de que os jovens são introduzidos por adultos em um mundo em contínua mudança. Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação. (ARENDT, 1972, p. 239 / p. 12)

     

    Não é incomum que o indivíduo moderno não assuma a responsabilidade para dar continuidade a um mundo que não o satisfaz e que lhe dá desgosto e assim deixe para as crianças a tentativa de entendê-lo. Além disso, na educação moderna, a autoridade docente perde força. A autoridade se assenta na responsabilidade pelo mundo e, no caso do professor, é importante sublinhar a diferença, bem como a relação, entre qualificação e autoridade. “A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo.” (ARENDT, 1972, p. 239 / p. 13) Alguns adultos lavam suas mãos, recusando assumir esse lugar semelhante a de um “representante de todos os habitantes adultos” aos olhos da criança. Ou seja, eles se recusam a assumir-se como parte do mundo e a explicar a realidade, a transmitir suas experiências aos mais jovens, o que os separa não apenas das novas gerações, mas também das anteriores, de toda tradição e de um legado cultural, que eles terminam por recusar aos recém chegados.

    Para compreendermos essa noção de autoridade, novamente, faz-se necessário separar educação e política:

     

    Ao removermos a autoridade da vida política e pública, pode ser que isso signifique que, de agora em diante, se exija de todos uma igual responsabilidade pelo rumo do mundo. Mas isso pode também significar que as exigências do mundo e seus reclamos de ordem estejam sendo consciente ou inconscientemente repudiados; toda e qualquer responsabilidade pelo mundo está sendo rejeitada, seja a responsabilidade de dar ordens, seja a de obedecê-las. Não resta dúvida de que, na perda moderna da autoridade, ambas as intenções desempenham um papel e têm muitas vezes, simultânea e inextricavelmente, trabalhado juntas. (ARENDT, 1972, p. 240 / p. 13)

     

    No caso da educação, as crianças não derrubam a autoridade dos adultos, mas os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo. Assim, voltando a alguns pressupostos da educação moderna, educar a criança num universo especificamente infantil sem a autoridade do professor é privá-la do processo que caracteriza a introdução ao mundo adulto. É importante esclarecer que a autoridade em Arendt não pressupõe força nem violência, e ainda que se assente em uma hierarquia, na qual alguém aconselha e há um aconselhado, não consiste em opressão.

    Junto à recusa pela autoridade política, se esvai a autoridade da tradição. Em outras palavras, a crise da autoridade é também a crise da tradição. É preciso que nos perguntemos então a respeito de nossa atitude face ao passado e sobre o valor que damos a exemplos e experiências oriundas dele. Porém, a autoridade dos pais sobre os filhos e de professores sobre alunos difere da autoridade política. A superioridade que marca a criação dos filhos é temporária, até que as crianças se tornem cidadãos, não apenas enquanto portadores de direito, mas que participam da sociedade, enquanto as relações entre governantes e governados não são temporárias. Ao separar educação de política, Arendt não defende um caráter apolítico para o sistema educacional, mas situa a educação como intermediária, numa esfera pré-política, na qual a educação não deixa de contribuir para o mundo político.

    Retomando a motivação de Arendt para este texto, mesmo movida pela ideia de uma Nova Ordem Mundial, a educação na Estados Unidos ainda tem um caráter conservador, no sentido protetor. Protege-se tanto o mundo da criança como a criança do mundo, o novo do velho, e o velho do novo. Por outro lado:

     

    Tal atitude conservadora, em política - aceitando o mundo como ele é, procurando somente preservar o status quo -, não pode senão levar à destruição, visto que o mundo, tanto no todo como em parte, é irrevogavelmente fadado à ruína pelo tempo, a menos que existam seres humanos determinados a intervir, a alterar, a criar aquilo que é novo. (ARENDT, 1972, p. 240 / p. 13)

     

    A educação identificada como conservadora vem então proteger um legado ao qual a criança tem direito de conhecer, ao mesmo tempo em que preserva nela o novo, o aspecto revolucionário, próprios da criança, para que ela possa introduzi-lo como novo no mundo.

     

    IV

     

    Sobre os motivos reais para que acontecimentos que contradizem o bom senso durem décadas. Retomemos a relação entre a crise da autoridade na educação e a crise da tradição:

     

    A verdadeira dificuldade na educação moderna está no fato de que, a despeito de toda a conversa da moda acerca de um novo conservadorismo, até mesmo aquele mínimo de conservação e de atitude conservadora sem o qual a educação simplesmente não é possível se torna, em nossos dias, extraordinariamente difícil de atingir. Há sólidas razões para isso. A crise da autoridade na educação guarda a mais estreita conexão com a crise da tradição, ou seja, com a crise de nossa atitude face ao âmbito do passado. É sobremodo difícil para o educador arcar com esse aspecto da crise moderna, pois é de seu ofício servir como mediador entre o velho e o novo, de tal modo que sua própria profissão lhe exige um respeito extraordinário pelo passado. (ARENDT, 1972, p. 243-244 / p. 15)

     

    No campo da filosofia, assim como no da arte, o passado não se torna obsoleto. A criação de um novo conceito não desconsidera um conceito criado anteriormente. Assim, para Arendt, é importante para as escolhas do presente que sejam adotados critérios já aprendidos no passado. É preciso cuidar de algo para que este não desapareça. A tradição aqui não revive o passado no presente, não busca repeti-lo, mas o toma como inspiração para lidar com dilemas do presente. Nesse sentido, a autora retoma a educação tradicional que nasce em Roma no século IV, não como modelo, mas para que um olhar para o passado diferente daquele que temos hoje nos ajude a aguçar o nosso olhar na direção do presente.

    O início de algo completamente novo, da ruptura, do milagre, daquilo que não se espera, aliás, está ligado à liberdade, que é a possibilidade de romper edificações do passado, e ter o futuro como abertura. Assim, há sentido na escola quando seu espaço permite em vez de escolher, começar algo novo, e quando não conseguimos prever quem o aluno será.

     

    O problema da educação no mundo moderno está no fato de, por sua natureza, não poder esta abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição. Isso significa, entretanto, que não apenas professores e educadores, porém todos nós, na medida em que vivemos em um mundo junto à nossas crianças e aos jovens, devemos ter em relação a eles uma atitude radicalmente diversa da que guardamos um para com o outro. Cumpre divorciarmos decisivamente o âmbito da educação dos demais, e acima de tudo do âmbito da vida pública e política, para aplicar exclusivamente a ele um conceito de autoridade e uma atitude face ao passado que lhe são apropriados mas não possuem validade geral, não devendo reclamar uma aplicação generalizada no mundo dos adultos. (ARENDT, 1972, p. 245-246 / p. 17)

     

    Na prática, há algumas consequências destacadas pela autora:

    1. “a função da escola é ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver.”

    2. “não se pode educar adultos nem tratar crianças como se elas fossem maduras.” Não há um mundo comum compartilhado por todas as crianças que poderíamos denominar em absoluto como “infância”, nem a infância é um estado humano autônomo.

    Quanto à educação, esta precisa ter um final previsível, no caso de nossa sociedade, um diploma referente a um segmento limitado e particular do mundo no qual o indivíduo se especializa, e não a introdução do jovem no mundo como um todo. Este e outros detalhes, Arendt entrega aos especialistas e pedagogos. Vale notar que nesses fins estabelecidos para a educação é importante o cuidado para não dizer como e qual direção a criança deve seguir, mas revelar-lhe a possibilidade de começar algo novo. Em princípio, somos seres capazes de pensar e de agir, e a interrupção de processos está ao nosso alcance, de modo que não é preciso submetermo-nos ao curso da história ou ao da natureza ou ao do mercado, como se essas esferas fossem supra-humanas.

    É importante também notar que, ao criticarmos práticas coercitivas e violentas de cunho autoritário no contexto escolar, corremos o risco de recusar a autoridade. Mas é preciso criticar e recusar, sim tais práticas, mas, para Arendt, sem recusar a presença, do mediador entre o saber e o sujeito que aprende, assim como o intercâmbio de experiências de diferentes gerações, o caráter temporal do mundo humano. É a efetivação e o reconhecimento da autoridade que nos protegem do uso dos meios externos de coerção. A autoridade não é a ausência de diálogo na sala de aula nem é instituída à força.

    Por fim, no que concerne à decisão sobre o quanto amamos o mundo, o que está em jogo na educação não tem relação com o amor enquanto sentimento, mas como aposta no mundo.

     


  • 10/06 - orientações para leitura, fichamento e produção de textos

    Olá, pessoal.

    Espero que vocês e seus entes queridos estejam bem.


    Hoje deixo algumas dicas para os estudos de vocês, que valem também como orientações para as atividades que estão preparando para enviarem até o dia 02/08. Conversaremos sobre essas dicas também em nosso encontro no Google Meet, no dia 17/06 (semana que vem).


    Abraços,

    Juliana

     

    Dicas para ler um texto de filosofia, fazer um fichamento e escrever um texto

     

    Até o momento vocês leram os textos do programa conforme o próprio costume que já tem na hora de fazer uma leitura, com a própria bagagem que trazem de outros estudos e também do modo de ver a vida.

    Em geral, no início do curso falamos sobre as origens da filosofia e de suas supostas definições, mas nem sempre paramos nossos programas para conversarmos sobre maneiras de olhar e de lidar com um texto filosófico.

    Assim, aproveitando os desvios de percurso que ocorrem neste momento, gostaria de compartilhar algumas dicas de manuais importantes, Como ler um texto de filosofia, do Professor Antônio Joaquim Severino, e Como se faz uma tese de Umberto Eco, e outras que aprendi ao longo do meu percurso acadêmico.

     

    Leitura

     

     Vejamos alguns detalhes da definição de texto por Severino em Como ler um texto de filosofia: Temos que dois sujeitos – autor(a) e leitor(a) – podem se comunicar por meio de um texto. Ao ler um texto, não tenho acesso ao pensamento e não experiencio o mundo como a consciência de quem o escreveu, mas tenho a codificação desse pensamento transmitido por meio do texto e que apreendo enquanto subjetividade. Ou seja, alguém pensa em algo e para transmitir esse pensamento, utiliza signos cujos significados todos os indivíduos leitores conhecem e esses leitores, pelo conhecimento que adquiriram sobre esses signos, recebem a mensagem.

    Mas em que medida a objetividade dos signos e a transmissão exata do pensamento estão garantidas?


    Somos não apenas consciências diferentes, mas nossa subjetividade conhece e é afetada pelo mundo das mais diversas maneiras. É só pensarmos numa simples troca de mensagens em aplicativos de mensagem, como o whatsapp, por exemplo, para termos uma ideia da complexidade da distância entre emissor(a) e receptor(a).

    Assim, há algumas recomendações importantes o contato com a mensagem transmitida por um texto, no nosso caso, um texto filosófico. Deixo algumas dicas:

     

    ·         Concentração é importante! Sabe quando você está lendo, mas tem alguma preocupação, ou até mesmo uma pessoa, que não sai da sua cabeça? Às vezes, durante uma leitura, a gente sai do texto várias vezes e retorna a ele, e no fim, até consegue entender o essencial. Mas durante a leitura de um texto filosófico, deixar o pensamento perder-se nos problemas ou em crushes, por exemplo, pode nos causar prejuízos e nos fazer recomeçar a leituras algumas vezes. Assim, deixe tudo de lado e mergulhe na leitura.

    ·         Neste momento em que vivemos, parece que o que não sai da nossa cabeça são mesmo as tristes notícias sobre a COVID-19 e sobre os riscos do cenário político, o que dificulta a concentração em nossas atividades por muito tempo. O que pode ajudar é a divisão do texto em pequenas partes, para você ler em momentos diferentes ao longo do dia ou da semana. Assim você aproveita os momentos de concentração, às vezes tão curtos, que você tem no dia, sem se desesperar quando perde o foco diante de tantas páginas que você ainda tem pela frente. Só tome cuidado para que os intervalos entre uma etapa de leitura e outra não sejam muito longos.

    ·         Outra dica para uma melhor compreensão do texto é buscar as palavras desconhecidas e anotar seus significados. Por isso, tenha por perto um dicionário da Língua Portuguesa e, para os conceitos simbolizados pelas palavras, um bom dicionário de Filosofia.

    ·         Mas às vezes é preciso ir além dos dicionários. Consultar comentadores do texto estudado pode ser esclarecedor, tanto no que concerne aos conceitos da reflexão filosófica apresentada no texto como a respeito da vida, obra e pensamento autora ou do autor estudada/o. Professores, boas revistas científicas e, hoje em dia, também canais de vídeo e outras páginas da web podem são boas fontes para a recomendação de comentadores. Vale também conhecer o contexto histórico em que o texto foi escrito. Um dos elementos fundamentais que essas consultas, assim como as explanações e debates em sala de aula, podem te auxiliar a levantar são as problematizações presentes no texto.

    ·         E por fim, tomar notas e fazer um fichamento do texto podem te ajudar a pensar melhor e a compreender o que você está lendo.


    Antes de passarmos às dicas sobre fichamentos, um pouco mais sobre leitura segundo Severino:


    Fichamento

     

    O fichamento é uma forma de organizar informações sobre o texto lido de modo que estas possam ser consultadas posteriormente sem a necessidade de ler o texto todo outra vez. Como fazer esse registro? O formato dos fichamentos variam de estudante para estudante e também de texto para texto. Pode ser que você consiga refazer todo o percurso daquele momento do texto na sua cabeça com poucas palavras sobre uma passagem. Mas há quem precise de mais detalhes e até mesmo de um trecho reescrito com suas próprias palavras para a retomada daquilo que está em questão em determinada passagem do texto.

    Além disso, se, para além de registrar as principais ideias de cada parágrafo, você tiver a intenção de investigar um conceito ou uma problemática específica nesse texto, você precisa assumir esse foco em seu fichamento e destacar aquilo que lhe interessa.

    Elementos principais de um fichamento

    A referência bibliográfica completa do livro ou da revista ao qual o texto fichado pertence e o número da página à qual pertencem cada parágrafo fichado e cada citação transcrita para o seu fichamento são fundamentais, pois são dados dos quais você precisará para elaborar as referências do que você escreve no seu trabalho acadêmico.

    O fichamento deve ser feito à mão ou digitado? A escolha é sua. Se você fizer à mão, pode escrever, sublinhar, riscar, rabiscar, trocar de cor, desenhar esquemas, circular palavras...o que você pode fazer também no computador, eu sei, mas sem a necessidade de comandos ou limites de um programa e do ambiente digital. E aí vocês já percebem que eu prefiro escrever meus fichamentos à mão. Mas, se você lida bem com a escrita no computador, vá em frente. Nesse caso, a vantagem é que você já terá meio caminho andado para escrever o seu texto. É o momento em que você já digita citações e suas próprias reflexões que poderão ser utilizadas em seus trabalhos.

    E sim, para além do texto, você pode registrar também as suas impressões num fichamento. No mestrado, meu orientador me falou sobre um modo de fichar que utilizava as duas páginas que ficavam lado a lado num caderno aberto. A ideia era fazer um fichamento com informações do texto de um lado e no outro lado, escrever suas impressões.

    Sobre a divisão do fichamento, siga a divisão do próprio texto, identifique parágrafos (numere os parágrafos no texto também) e seções.

    Compartilho abaixo alguma das orientações e exemplos de Umberto Eco para fichamentos em Como se faz uma tese:





    Escrita

     

    Primeira dica: a pessoa que lerá o seu texto não está na sua cabeça. Parece óbvio, mas enquanto escrevemos, parece que esquecemos disso. É importante dar todos os detalhes que possam aproximar a leitora e o leitor do tema e do problema com os quais você está trabalhando. Não pense na professora ou no professor, ou seja, em quem conhece o tema sobre o qual você escreve, como a pessoa que lerá seu texto, mas considere o público geral. Como você explicaria um problema, um argumento ou os passos para sua reflexão para uma 

    pessoa que não conhece a bibliografia que você está utilizando?

    Estabelecer o caminho que você quer seguir pode ser um bom guia para sua escrita. No caso de um trabalho maior, esse caminho seria o sumário. Você pode imaginar, por exemplo, quais partes você gostaria que seu texto tivesse, mesmo que ele seja pequeno, e quais nomes você daria a elas, como se esses nomes fizessem parte de um sumário. Tenho quase certeza de que no momento da escrita essa lista será alterada, o que não é um problema, mas tendo-a como ponto de partida já é um modo de iniciar seu texto tendo alguma direção. No caso das nossas atividades para conclusão do semestre, é importante que você saiba que esta lista não precisa ser compartilhada com o resultado final do texto, você não precisa enviar sua atividade com um sumário.

    A esta parte sobre escrita, acrescento um outro techo de Como se faz uma tese, sobre escrever uma tese. Esse ainda não é o caso de vocês, mas penso que estas primeiras dicas de Eco valem a pena:


    Por fim, deixo outra dica valiosa: fazer mais de uma revisão melhora o seu texto. Revisar pela leitura em voz alta faz toda a diferença, e se você tiver alguém por perto que tope te escutar, pode ser ainda melhor.

    E não esqueça de consultar o Manual de Normas ABNT para trabalhos acadêmicos, disponível em http://www4.fe.usp.br/biblioteca/capacitacao-usuarios/manualabnt-trabalhosacademicos para a elaboração da capa (p. 25-28), organização das referências (p. 49-50) e citações (53-58) etc. Não vou abaixar a nota caso não sigam as normas, mas é interessante aprender e exercitar o uso dessas regras, para acostumar-se com os formatos dos trabalhos acadêmicos.

    Essas são algumas dicas para este momento. Este conteúdo será trabalhado também em nosso encontro no Google Meet.

    Bom trabalho a vocês!

     

    Referências bibliográficas

     

    ECO, Umberto. Como se faz uma tese. Trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1998.

     

    SEVERINO, Antônio Joaquim. Como ler um texto de filosofia. São Paulo: Paulus, 2009

     


  • link para encontro de 17.06 no Google Meet

    Bom dia, pessoal!

    Espero que estejam bem. 

    Hoje nos encontramos (das 19h às 20:30) nesta sala https://meet.google.com/vtv-zxzr-hjy
    do Google Meet para uma aula sobre leitura, fichamento e produção de textos, com base no material enviado na semana passada. A reunião será gravada e o vídeo poderá ser acessado posteriormente.

    Caso eu identifique algum problema com o link da reunião no momento de acessar a sala, gero um novo endereço na mesma hora e envio para vocês por e-mail.

    Até mais tarde.
    Abraço,
    Juliana

  • Aula 12 - 24.06 e 01.07 - Situação

    Olá, pessoal.

    Espero que vocês e seus entes queridos estejam bem.

    Dando continuidade ao programa, passamos ao tema da situação, e aqui, me refiro ao sentido que Simone de Beauvoir dá a esse termo, que vimos no texto em que tratamos sobre existência. Retomando em linhas gerais, a situação é toda construção social que cerca nossa presença no mundo e limita a liberdade original, que é própria de nossa existência.

    Racismo, sexismo, homofobia e transfobia, por exemplo, são algumas das situações de opressão que afetam historicamente a existência singular de inúmeros indivíduos. Para seguirmos nossas reflexões sobre temas caros à filosofia no campo da educação, a proposta de hoje é trabalharmos com o texto Afrocentricidade e Educação: princípios gerais para um currículo afrocentrado de Renato Noguera e com os capítulos 2 e 3 do livro Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pósestruturalista de Guacira Lopes Louro.

     

     

    Um dos movimentos mais importantes para fazermos um trabalho com um texto de Filosofia, antes de desenharmos densas problemáticas ou apresentarmos nossas reflexões filosóficas, é a apresentação dos conceitos e noções da autora ou do autor estudada/o com os quais iremos trabalhar. Mudando um pouco o formato da minha intervenção no conteúdo de nossa disciplina, para acompanhar a leitura do artigo do Professor Renato Noguera (UFRRJ), deixo um roteiro com perguntas. Estudar o artigo para buscar as respostas para essas questões pode ser um exercício de levantamento de conceitos e noções importantes para o pensamento de Noguera que aparece nas primeiras partes desse texto:

     

    ·         O que é afrocentricidade?

    ·         O que você considera importante destacar da relação entre afrocentricidade e eurocentrismo para que possamos entender a proposta de Noguera?

    ·         O que significa a categoria “localização”?

    ·         Qual é a relação entre afrocentricidade e liberdade?

    ·         Qual é a relação entre afrocentricidade e agência? Como podemos, a partir das questões levantadas por esses conceitos, contribuir para aprimorar práticas educacionais?

     

    Deixo também o link para o texto da lei 10639/03, mencionada por Noguera no artigo, que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-brasileira: https://legislacao.presidencia.gov.br/ficha/?/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%2010.639-2003&OpenDocument

     

    Na seção Elementos para um currículo afrocentrado, temos dicas inspiradoras do autor. Como complemento ao texto, deixo também esta entrevista com ele:

     

    E para saber mais sobre Renato Noguera: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/399-renato-noguera

     

     

     

    Para acompanhar o texto da Professora Guacira Lopes Louro (UFRGS), minha intervenção é um roteiro com informações complementares sobre pontos importantes que ela menciona nos capítulos com os quais estamos trabalhando.

     

    Sobre Louro: http://www.ufrgs.br/ufrgs/noticias/professora-guacira-lopes-louro-recebe-premio-paulo-freire-1

    E uma entrevista com a autora em três partes:

     

    Complemento para o capítulo 2 - Gênero, sexualidade e poder

     

    Sobre a preocupação dos Estudos Feministas com as relações de poder e a concepção “um homem dominante x uma mulher dominante”

     

    Logo no início do capítulo “Gênero, sexualidade e poder” do livro Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pósestruturalista, Louro destaca a opressão histórica das mulheres como tema central da área de Estudos Feministas. É importante compreendermos que ainda que nos deparemos com situações em que uma mulher seja inferiorizada em relação a um homem, que seja oprimida, agredida por ele e essa situação tenha relação com uma sociedade sexista, esse sexismo que afeta essa e outras mulheres se assenta em estruturas muito mais complexas do que a singularidade de um homem que prejudica uma mulher. O que não significa que o homem agressor não deva ser responsabilizado e responder por seu ato, mas sim, que o contexto sexista é composto de muito mais mecanismos de opressão do que as atitudes machistas dos indivíduos.

     

    Sobre o conceito de poder em Foucault

     

    Um dos conceitos chave na filosofia de Michel Foucault (1926-1984) é o conceito de poder. O filósofo busca mostrar aquilo que não vemos na relação entre poder e as estruturas sociais. Nesse sentido, ao invés de focar em uma ideia de poder centralizado ou superior, o filósofo se volta a uma rede que se estende por todo âmbito social no qual nossas vidas estão entremeadas. Assim, não há alguém acima de nós nos vigiando, mas nós terminamos vigiando-nos a nós mesmos. Em outras palavras, o poder, disciplinador, vai além do Estado; há micropoderes.

    Ainda seguindo a compreensão de Foucault, na sociedade ocidental, a prisão emerge como modelo arquitetônico de controle dos corpos dos indivíduos para a concepção de asilos, hospícios, fábricas e também da escola das sociedades industriais. É preciso notar que para Foucault, o poder sobre a vida, e de controle sobre o corpo-espécie, das populações, a saber, o biopoder, ao qual os indivíduos estão tão submetidos como também são instrumento e efeito, é um fato de nossa época; sua análise não vislumbra então fundar um mundo livre desse poder ou recusar atos permeados pela biopolítica (ainda que sua intenção também não seja elogiar essa situação), mas mostrar aquilo que não vemos. Mais do que posicionar-se de maneira simplista, como contra ou a favor, é importante que possamos ver aquilo que não se mostra.

     

    Sobre a noção de sujeito em Foucault

     

    Ao final da página 40, Louro afirma que Foucault “nos faz observar que o poder produz sujeitos”. Para compreendermos a noção foucaultiana de sujeito, é importante falarmos também sobre a noção de moral. Tomemos a relação entre moral e sujeito no segundo volume da História da sexualidade do referido autor. E por moral entendemos uma regra de conduta, um conjunto de valores, ou, a própria conduta, o comportamento do indivíduo em relação às regras. Cito o próprio Foucault:

     

    Por “moral” entende-se um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as Igrejas etc. Acontece dessas regras e valores serem bem explicitamente formulados em uma doutrina coerente e em um ensinamento explícito. Mas acontece também delas serem transmitidas de maneira difusa e, longe de formarem um conjunto sistemático, constituírem um jogo complexo de elementos que se compensam, se corrigem, se anulam em certos pontos, permitindo, assim, compromissos ou escapatórias. Com essas reservas pode-se chamar “código moral” esse conjunto prescritivo. Porém, por “moral” entende-se igualmente o comportamento real dos indivíduos em relação às regras e valores que lhes são propostos: designa-se, assim, a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos completamente a um princípio de conduta; pela qual eles obedecem ou resistem a uma interdição ou a uma prescrição; pela qual eles respeitam ou negligenciam um conjunto de valores. (FOUCAULT, 2012, p. 33-34)

     

    No agir em relação à conduta moral, em conformidade ou em discordância, o indivíduo, ao seu modo de sujeição, constitui-se a si mesmo, constitui-se então como sujeito moral. Esse agir implica também a transformação de si em um sujeito moral de si mesmo, conforme a maneira como ele se posiciona em relação aos preceitos, de modo que “age sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe-se à prova, aperfeiçoa-se, transforma-se.” (FOUCAULT, 2012, p. 37) A ação moral e as atividades sobre si, formas de subjetivação, para o autor, são indissociáveis.

     

    Da associação do masculino ao correto e ao neutro

     

    Louro menciona situações em que a noção de masculino corresponde à norma, ao geral, quando apontamos que são as mulheres que diferem dos homens (p. 44), por exemplo, ou na diferenciação entre os registros historiográficos de uma “História das mulheres” e uma “História geral”, sendo esta última tida como a História oficial da humanidade (p. 50), da qual, vale notar, muitas vezes a História do continente africano também é excluída.

    Podemos recordar também que se dissermos “homem” podemos nos referir aos seres humanos, homens e mulheres. Se usarmos o termo “mulher”, o sentido não é o mesmo, estamos nos referindo somente às mulheres. Assim, é importante lembrar desses detalhes que perpassam não apenas a nossa língua, mas a construção do conhecimento, que reforçam a masculinidade não apenas como o positivo, mas também como o neutro, cabendo à mulher, e à ideia de feminilidade socialmente construída, o lado negativo, o desvio, aquela que não pertence à categoria do sujeito universal.

     

    Informações complementares para o capítulo 3 – A construção escolar das diferenças

     

    Sobre a ação distintiva histórica da escola, recomendo o artigo Um breve panorama da educação em diferentes momentos da história da Professora Carlota Boto da FEUSP: https://jornal.usp.br/artigos/a-educacao-e-a-escola-em-tempos-de-coronavirus/

     

    Sobre os meninos “precisarem” de mais espaço que as meninas

     

    Para complementar essa imagem à qual Louro alude na página 60, recorro ao texto Throwing like a girl: A Phenomenology of Feminine Body Comportment, Motility, and Spatiality de Iris Young (1949 - 2006), no qual a filósofa estadunidense – mencionada na página 76, aliás – analisa a relação das mulheres com o espaço a partir da crítica que faz à associação desta relação a uma suposta essência feminina.

    Segundo Young, o neurologista fenomenologista Erwin Straus, após observar os movimentos que um menino e uma menina de cinco anos de idade fazem para lançar uma bola, relata que enquanto a garota não faz movimentos laterais e move apenas o braço e a mão que lançam a bola, o garoto movimenta pernas e torce o tronco, além de mover braços e mãos para realizar o mesmo ato. Para Straus, a diferença nos movimentos dos corpos teria relação com uma diferença biológica entre essas crianças no que concerne não à anatomia, mas à atitude, a saber, no caso da menina, uma atitude que ele identifica como “feminina”. Em suma, Young recusa a conclusão de Straus e interpreta a diferença entre menina e menino no que diz respeito à relação com o espaço à luz de três problemáticas: a compreensão do próprio corpo como objeto, que decorre da objetificação do corpo feminino numa sociedade sexista; a inibição da mobilidade na menina, que associa o corpo a um “Eu não posso/não consigo” e a falta de identificação da mulher com o espaço como continuidade do seu ser.

    Menciono esse estudo de Young aqui para reforçar que assim como a noção de corpo, a relação entre o sujeito, no que concerne à experiência que tem do próprio corpo, com o espaço também não escapa das marcas de gênero.

     

    Questões para reflexão à luz do texto de Guacira Lopes Louro:

     

    Como olhamos para as crianças e que tipo de comentário fazemos sobre elas?

    Quais são nossas expectativas em relação às meninas? E aos meninos?

    Como nossa concepção de gênero influencia na forma como educamos as crianças?

     

    Esses textos de Noguera e Louro serão abordados também em nosso encontro no Google Meet, que acontecerá na próxima semana, terça-feira, dia 01/07, das 19:30 às 21h. O vídeo do encontro ficará disponível para acesso posterior.

     

     

     

    Referências bibliográficas

     

    FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: O uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2012.

     

    LOURO, Guacira Lopes (org.). Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pósestruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 37-87

     

    NOGUERA JR, Renato. “Afrocentricidade e Educação: princípios gerais para um currículo afrocentrado”. In: Revista África e Africanidades, v. III, p. 01-18, 2010.

     

    YOUNG, Iris Marion. “Throwing like a girl: A Phenomenology of Feminine Body Comportment, Motility, and Spatiality”. In: YOUNG, Iris Marion. On female body experience: “Throwing like a girl” and other essays. New York: Oxford University Press, 2005.

     

  • Aula 13 - 08 e 15.07 - Emancipação

    Olá, pessoal.

    Espero que vocês e seus entes queridos estejam bem.

     

    Hoje compartilho com vocês Educação após Auschwitz do Adorno em anexo, e abaixo, meu texto complementar. Na semana que vem, dia 15/07, temos um encontro no Google Meet das 19:30 às 21h para uma aula sobre os textos de hoje.

    E nas semanas seguintes, faço a retomada de alguns temas e textos do programa, também em aulas no Google Meet:

     

    ·         22.07 das 19:30 às 21h: Educação, criança e a responsabilidade pelo mundo I Vygotsky / Dewey / Arendt

    ·         29.07 das 19:30 às 21h: Educação, criança e a responsabilidade pelo mundo II Beauvoir / Cerletti

     

    Abraços,

    Juliana

     

    Theodor W. Adorno (1903 – 1969, Frankfurt, filósofo alemão)

     

    Adorno foi um dos fundadores do Instituto para a Pesquisa Social na Universidade de Frankfurt, em 1924, na Alemanha, instituição que mais tarde, na década de 1950, passa a ser conhecida como “Escola de Frankfurt”. Adorno, Max Horkheimer (1895 – 1973), Herbert Marcuse (1898 – 1979) e Walter Benjamin (1892 – 1940) são quatro nomes daquele contexto que até hoje ganham bastante destaque.

    O Instituto para a Pesquisa Social, fundamentado numa perspectiva marxista, e orientado por uma leitura não ortodoxa do materialis­mo histórico-dialético, propõe estudos interdisciplinares realizados por pesquisadores, dentre eles, filósofos, sociólogos e economistas, que transitam por diversos temas e áreas do conhecimento, como Filosofia, Ciências Sociais e Psicanálise; abordagem que culmina na Teoria Crítica. Em 1934, ao pressentir uma guerra na Europa, Horkheimer retira o Instituto para a Pesquisa Social de Frankfurt. O Instituto permanece então instalado nos Estados Unidos sob a direção de Adorno até a década de 1950, quando retornam à Alemanha.

     

    _________________________________________________________

     

    Pouco antes do final da Segunda Guerra Mundial, em 1944, Adorno e Horkheimer, nas primeiras páginas de Dialética do esclarecimento – livro que resulta de conversas entre os dois autores, datilografado pela química Gretel Adorno e, após o término da guerra, revisado em 1947 –, indagam sobre o motivo da humanidade estar afundando em uma nova espécie de barbárie em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano. A esta problemática os autores vinculam o questionamento acerca da noção de esclarecimento.

    No século XVIII, para Kant, o esclarecimento está relacionado a um processo de emancipação intelectual. Essa emancipação esta ligada tanto à resolução e à coragem do indivíduo para servir-se de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro como à  crítica das prescrições daqueles tidos como hierarquicamente superiores, como padres e governantes, àqueles que encontram-se no estado denominado menoridade.

    No século XX, Adorno e Horkheimer retomam o termo num momento em que a vida e a noção que temos de conhecimento são colocados em xeque, quando o esclarecimento, para os dois filósofos, passa por uma autodestruição. Lemos em “O conceito de esclarecimento”, primeiro capítulo de Dialética do esclarecimento:

     

    No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber. (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 17)

     

    Incorporado do pensamento de Benjamin, o mito na Dialética do esclarecimento tem o sentido do arcaico e do violento. É importante notar que para os autores a barbárie é constitutiva da civilização, ou seja, não é um acidente nem o acaso, mas sim a regra. O esclarecimento, enquanto desencantamento do mundo, livre das definições de caráter mítico difundidas pelos supostamente superiores, agora calcadas no conhecimento, possibilita ao indivíduo o uso da própria razão para compreender e explicar a realidade ao seu redor. Por outro lado, o esclarecimento pode recair na mitologia, e é para esse risco que Adorno e Horkheimer chamam a nossa atenção. Ainda que alcançar a natureza para conhecê-la constitua um processo crítico e emancipador do sujeito, esse alcance pode desdobrar-se em um domínio que se traduz em poder e controle.

     

    Abandonando a seus inimigos a reflexão sobre o elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu caráter superador e, por isso, também sua relação com a verdade. A disposição enigmática das massas educadas tecnologicamente a deixar dominar-se pelo fascínio de um despotismo qualquer, sua afinidade autodestrutiva com a paranóia racista, todo esse absurdo incompreendido manifesta a fraqueza do poder de compreensão do pensamento teórico atual. (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 13)

     

    Com a autodestruição do esclarecimento e a incompreensão das ciências diante do ocorrido no nazismo, como pensar a educação?

     

    Na década seguinte à Dialética do esclarecimento, em 1965, Adorno ministra uma palestra intitulada Educação após Auschwitz. O texto dessa fala é publicado dois anos depois na coletânea Educação e emancipação, livro que compila este e outros textos do autor sobre educação.

    A ênfase de Educação após Auschwitz está na necessidade de refletirmos acerca do que é preciso para que o nazismo e suas violentas consequências não se repitam. Ao longo de sua fala, Adorno apela à ciência para esclarecer o que houve em Auschwitz e à educação para que aquele acontecimento não se repita.

     

    Nesse contexto, podemos esquematizar algumas questões:

     

    O que queremos dizer quando falamos em ciência? Ou melhor, haverá “a ciência” ou ciências? E dentro da expressão “a ciência”, qual é o lugar das ciências humanas?

    Haveria uma hierarquia entre ciências humanas, exatas e as ciências identificadas como naturais?

    Seria o campo de conhecimento da filosofia uma ciência? Em que sentido?

    E ainda, quais são os caminhos para as ciências esclarecerem a barbárie quando o próprio esclarecimento passa por uma autodestruição? Em outras palavras, como fazer a crítica da razão pelos meios da própria razão?

     

    Adorno inicia Educação após Auschwitz com a frase “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação.” (ADORNO, 1995, p. 118) e afirma que há pouca consciência sobre essa condição, o que significa que pode ser que Auschwitz ocorra outra vez. Essa reflexão, proposta como auto-reflexão, e a não repetição são elementos essenciais ao longo de todo o texto.

    Para Adorno, Auschwitz foi a barbárie e foi a regressão, e o que há não é uma ameaça, já que “a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que tem de fundamental as condições que geram esta regressão.” (ADORNO, 1995, p. 119) Há uma pressão social que se repete, na qual se sobressaem as tendências do indivíduo a retornar a um estado de “não vida”, a algo que Adorno considera indescritível e que culmina em Auschwitz. Ainda que própria da civilização, essa pressão tem um aspecto anticivilizatório.

     

    Como falar sobre o ocorrido?

     

    Citar números, falar em quantidades, no que diz respeito às vítimas, é humanamente indigno. Ao mesmo tempo, não se deve reduzir o ocorrido a algo superficial ou identificar esse acontecimento como uma “aberração no curso da história”, ou seja, não se trata de algo inexplicável, houve condições para se chegar a Auschwtiz e Adorno propõe que falemos sobre elas. “O simples fato de ter ocorrido já constitui por si só expressão de uma tendência social imperativa.” (ADORNO, 1995, p. 120) Milhões de pessoas foram assassinadas de forma planejada, ou seja, dentro de uma proposta racionalista, proposta esta que organiza a sociedade.

    O autor nos chama a atenção para “contra-explosões”, como o genocídio armênio e a invenção da bomba atômica, forças que não desviam, mas se integram ao curso da história mundial, que vão de encontro ao que se tem chamado “explosão populacional”.

     

    Contudo, Adorno sabe da dificuldade para mudar os aspectos sociais e políticos da realidade que possibilitam essas contra-explosões. Sua proposta então é voltarmo-nos para o lado subjetivo, ou seja, buscarmos as raízes desses problemas nos indivíduos, não nas vítimas, mas nos perseguidores. E além disso, considera fundamental uma educação que desde a primeira infância se dirija à auto-reflexão crítica, visando evitar a repetição.

     

    Torna-se necessário o que a esse respeito uma vez denominei de inflexão em direção ao sujeito. É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos. Os culpados não são os assassinados, nem mesmo naquele sentido caricato e sofista que ainda hoje seria do agrado de alguns. Culpados são unicamente os que, desprovidos de consciência, voltaram contra aqueles seu ódio e sua fúria agressiva. É necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias. (ADORNO, 1995, p. 121)

     

    Compreendendo que os mecanismos que tornam as pessoas capazes de tais atos violentos são parte das engrenagens do processo civilizatório, Adorno toma como apoio os estudos de Freud em O mal-estar na cultura, livro publicado em 1930, escrito em meio à quebra da bolsa de Nova York e à ascensão do partido hitlerista na Alemanha, no qual o autor examina a relação entre cultura, tão necessária para remediar a causa do sofrimento humano, mas também nova fonte de sofrimento, e a dimensão da agressividade, da hostilidade e da crueldade na presença humana no mundo. Podemos então nos perguntar: em que medida a própria noção de civilização pode lidar com a violência uma vez que esta também produz violência?

    Adorno entende que a mesma sociedade que nos agrega contribui para a desagregação das particularidades, principalmente da subjetividade.

     

    De uma perspectiva sociológica eu ousaria acrescentar que nossa sociedade, ao mesmo tempo em que se integra cada vez mais, gera tendências de desagregação. Essas tendências encontram-se bastante desenvolvidas logo abaixo da superfície da vida civilizada e ordenada. A pressão do geral dominante sobre tudo que é particular, os homens individualmente e as instituições singulares, tem uma tendência a destroçar o particular e individual juntamente com seu potencial de resistência. Junto com sua identidade e seu potencial de resistência, as pessoas também perdem suas qualidades, graças a qual tem a capacidade de se contrapor ao que em qualquer tempo novamente seduz ao crime. Talvez elas mal tenham condições de resistir quando lhes é ordenado pelas forças estabelecidas que repitam tudo de novo, desde que apenas seja em nome de quaisquer ideais de pouca ou nenhuma credibilidade. (ADORNO, 1995, p. 122)

     

    Para além do espírito germânico de confiança na autoridade – não é pela imposição, pela autoridade, que Hitler sobe ao poder, mas por meio de uma eleição –, a falta de preparo psicológico das pessoas para a autodeterminação é um elemento chave na ascensão do nazismo e a Auschwitz. Mas ainda assim o retorno do fascismo constitui uma questão social, e não psicológica.

    Até este momento do texto, será que sabemos do que fala Adorno quando fala em educação após Auschwitz?

     

    Quando falo de educação após Auschwitz, refiro-me a duas questões: primeiro, a educação infantil, sobretudo na primeira infância; e, além disto, ao esclarecimento geral, que produz um clima intelectual, cultural e social que não permite tal repetição; portanto, um clima em que os motivos que conduziram ao horror tornem-se de algum modo conscientes. Evidentemente não tenho a pretensão de sequer esboçar o projeto de uma educação nesses termos. Contudo, quero ao menos indicar alguns pontos nevrálgicos. (ADORNO, 1995, p. 123)

     

    Apesar da urgência em falar sobre Auschwitz quando se fala em educação, um projeto educativo que evite a repetição do nazismo e seus traços autoritários e violentos não aparece como uma tarefa fácil. Mas ao revelar os mecanismos que possibilitam tamanha violência, Educação após Auschwitz nos oferece subsídios para estudarmos a situação da educação não apenas na Alemanha nazista, mas também nas violências cotidianas permeadas de ódio e de exclusão com as quais nos deparamos no Brasil.

    Acompanhando a reflexão de Adorno, ao falarmos sobre Auschwitz, corremos o risco de tomar o problema de maneira simplista e não menos autoritária do que a questão a ser resolvida se apelarmos ao que o autor chama “vínculos de compromisso” de pessoas bem intencionadas – e aqui será que poderíamos arriscar uma analogia entre o discurso destas e daqueles que hoje são por vezes popularmente chamados “cidadãos de bem”[1]? Para as pessoas bem intencionadas com suas propostas de vínculos de compromisso das quais fala Adorno, um enfático “não deves”, como uma força superior a ser obedecida, poderia impedir a repetição da barbárie. Mas o quanto pode haver de autoridade e de desobrigação de pensar por si próprio nesse compromisso?

     

    Facilmente os chamados compromissos convertem-se em passaporte moral são assumidos com o objetivo de identificar-se como cidadão confiável ou então produzem rancores raivosos psicologicamente contrários à sua destinação original. Eles significam uma heteronomia, um tornar-se dependente de mandamentos, de normas que não são assumidas pela razão própria do indivíduo. O que a psicologia denomina superego, a consciência moral, é substituído no contexto dos compromissos por autoridades exteriores, sem compromisso, intercambiáveis, como foi possível observar com muita nitidez também na Alemanha depois da queda do Terceiro Reich. Porém justamente a disponibilidade em ficar do lado do poder, tomando exteriormente como norma curvar-se ao que é mais forte, constitui aquela índole dos algozes que nunca mais deve ressurgir. Por isto a recomendação dos compromissos é tão fatal. As pessoas que os assumem mais ou menos livremente são colocadas numa espécie de permanente estado de exceção de comando. O único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz seria autonomia, para usar a expressão kantiana; o poder para a reflexão, a autodeterminação, a não-participação. (ADORNO, 1995, p. 123-124)

     

    A autonomia kantiana aparece então como possibilidade de não fazer parte de uma objetividade, do sujeito não desaparecer, não desagregar-se em meio à multidão movida por uma autoridade exterior.

    Por outro lado, assim como apelar ao vínculo de compromisso, ao passaporte moral, acusar quem fala sobre a barbárie de cometê-la também é perigoso na visão de Adorno, como no caso da reação do crítico à peça Mortos sem sepultura de Jean-Paul Sartre que ele menciona.

     

    O perigo de que tudo aconteça de novo está em que não se admite o contato com a questão, rejeitando até mesmo quem apenas a menciona, como se, ao fazê-lo sem rodeios, este se tornasse o responsável, e não os verdadeiros culpados. (ADORNO, 1995, p. 124)

     

    Nesse sentido, ao acusarmos quem fala sobre a barbárie, evitamos falar sobre ela.

    Quanto ao exemplo seguinte, sobre o livro O Estado da SS de Eugen Kogon e a situação da população do campo, há dois pontos que considero espinhosos na reflexão de Adorno. Embora ele afirme repudiar qualquer sentimento de superioridade em relação à população rural, em seguida, ao declarar que ninguém tem culpa por nascer em uma ou outra área, a diferença cultural entre campo e cidade parece marcada por uma hierarquia, na qual a educação do ambiente urbano parece ser a saída para uma suposta desbarbarização da zona rural. E ainda, a televisão é a grande aposta de Adorno como um dos recursos que pode facilitar essa salvação. Por outro lado, em seguida o autor reconhece a presença da violência também nas cidades grandes.

    Prosseguindo com a leitura de Educação após Auschwitz, compreendemos então que o coletivo, liderado por indivíduos que manipulam as massas, aparece como ponto de identificação cega do sujeito manipulado, este, atravessado pela violência e pela incorporação da autoridade em sua consciência, em seu corpo e na relação com o outro. Assim, é preciso fortalecer a autonomia do sujeito frente a certo tipo de coletivização:

     

    Considero que o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da coletivização. Isto não é tão abstrato quanto possa parecer ao entusiasmo participativo, especialmente das pessoas jovens, de consciência progressista. O ponto de partida poderia estar no sofrimento que os coletivos infligem no começo a todos os indivíduos que se filiam a eles. (ADORNO, 1995, p. 127)

     

    Sobre a relação do indivíduo com o coletivo, Adorno se refere a experiências que envolvem uma espécie de provação pela qual o sujeito deve passar para ser incorporado, como as primeiras experiências na escola, os ritos de passagem e os trotes – e aqui poderíamos retomar a noção de iniciação no texto de Olivier Reboul que lemos há algumas semanas –, nos quais a dor física é o preço para sentir-se parte de um grupo. Esses atos de violência chegam a ser reduzidos a meros “costumes” no contexto nazista.    

    Essa severidade dos ritos de iniciação, que implica numa capacidade de suportar a dor num grau máximo que se desdobra na indiferença à dor em geral, seja a sua própria ou a dor do outro, compete também ao campo da educação:

     

    Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir. Tanto é necessário tornar consciente esse mecanismo quanto se impõe a promoção de uma educação que não premia a dor e a capacidade de suportá-la, como acontecia antigamente. Dito de outro modo: a educação precisa levar a sério o que já de há muito é do conhecimento da filosofia: que o medo não deve ser reprimido. Quando o medo não é reprimido, quando nos permitimos ter realmente tanto medo quanto esta realidade exige, então justamente por essa via desaparecerá provavelmente grande parte dos efeitos deletérios do medo inconsciente e reprimido. (ADORNO, 1995, p. 128-129)

     

    É importante notar que essa diferença em relação ao outro é construída no âmbito do coletivo. Adorno nos chama a atenção para o tipo de indivíduo que na experiência de identificação com um coletivo deixa de considerar o outro e também a si próprio enquanto subjetividade. A identificação com o coletivo dá a ele uma ideia de um sujeito autodeterminado; ou seja, a consciência é coisificada (ou, nos termos de Marx, reificada, tão objetificada quanto uma mercadoria, que parece ter vida própria no contexto capitalista), como parte de uma massa amorfa. Essa problemática é desdobrada por Adorno em seus estudos sobre as relações entre a massa que se deixa manipular e a pessoa que tem caráter manipulador, a qual ele denomina “personalidade autoritária”.

    E eis então o momento em que o filósofo faz em Educação após Auschwitz uma proposta concreta às ciências para que a barbárie não se repita:

     

    Quero fazer uma proposta concreta: utilizar todos os métodos científicos disponíveis, em especial psicanálise durante muitos anos, para estudar os culpados por Auschwitz, visando se possível descobrir como uma pessoa se torna assim. O que aqueles ainda podem fazer de bom e contribuir, em contradição com a própria estrutura de sua personalidade, no sentido de que as coisas não se repitam. E essa contribuição só ocorreria na medida em que colaborassem na investigação de sua gênese. (ADORNO, 1995, p. 131)

     

    Adorno elenca três dificuldades que serão encontradas no desenvolvimento dessa proposta:

    - Será difícil levar as pessoas que atuaram como perseguidores a falarem;

    - Não poderíamos aplicar àqueles que gostaríamos que falassem os seus próprios métodos;

    - Aqueles que gostaríamos que falassem não demonstram remorso.

    Por outro lado, há pontos de apoio psicológico, como o narcisismo, ou o orgulho, daquelas pessoas, que podem motivá-las a falar. De todo modo, é crucial tentar essa inflexão ao sujeito.

     

    Finalmente, é de supor que também nessas pessoas, aprofundando-se suficientemente a busca, existam restos da velha instância da consciência moral que se encontra atualmente em grande parte em processo de dissolução. Na medida em que se conhecem as condições internas e externas que os tornaram assim pressupondo por hipótese que esse conhecimento é possível , seria possível tirar conclusões práticas que impeçam a repetição de Auschwitz. A utilidade ou não de semelhante tentativa só se mostrará após sua concretização; não pretendo superestimá-la. É preciso lembrar que as pessoas não podem ser explicadas automaticamente a partir de condições como estas. Em condições iguais alguns se tornaram assim, e outros de um jeito bem diferente. Mesmo assim valeria a pena. O mero questionamento de como se ficou assim já encerraria um potencial esclarecedor. Pois um dos momentos do estado de consciência e de inconsciência daninhos está em que seu ser-assim que se é de um determinado modo e não de outro e apreendido equivocadamente como natureza, como um dado imutável e não como resultado de uma formação. (ADORNO, 1995, p. 131-132)

     

    Faz-se importante então investigar o que possibilita a dissolução do sujeito na compreensão que este tem de si mesmo a partir de uma autodeterminação, como se se encerrasse numa determinação natural. A proposta de Adorno não visa categorizar as pessoas ou identificar fórmulas que expliquem o comportamento humano, mas, recusando uma explicação para Auschwitz baseada numa suposta natureza humana maléfica, o filósofo busca investigar os mecanismos sociais e psicológicos que operam na formação desse tipo de indivíduo e a possibilidade de romper a resistência da consciência coisificada a tornar-se diferente desse ser que para ela a caracteriza em absoluto. A fala das pessoas, tomada por um viés psicanalítico, é fundamental para que tomem consciência sobre o ocorrido para resolverem aquilo que o possibilitou.

    A relação com a técnica – ou seja, com os instrumentos e meios que os indivíduos encontram para modificar o mundo – é outro elemento importante para o estudo da consciência coisificada. Assim como há uma dissolução da própria subjetividade entre aqueles que se entregam cegamente ao coletivo, a técnica também é tida por alguns como “algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria” (ADORNO, 1995, p. 132). Adorno não encontra o ponto de transição entre essa supervalorização da técnica, a qual ele identifica, por exemplo, no indivíduo que projeta um sistema ferroviário mais rápido para conduzir vítimas a Auschwitz e chega a se esquecer do que lhes acontece, e a mera relação com a técnica, que o filósofo denomina relacional, na qual pessoas capacitadas para executar certos conjuntos de procedimentos são menos influenciáveis. Há uma ambiguidade na relação entre o ser humano e a técnica, ao mesmo tempo em que esta o liberta do trabalho árduo para a realização de certas atividades, também pode tornar-se o único objeto para o qual o indivíduo liga a sua libido.     

    Para Adorno, o indivíduo que venera a técnica não é mais capaz de amar; e aqui o amor não tem um sentido moral ou moralizante. O autor compreende que há uma carente relação libidinal com outras pessoas, tendência que, ele assinala, está vinculada ao próprio processo civilizatório. Sobre a carência libidinal, em linhas gerais, é importante notar que o uso da palavra libido remete ao conceito de Freud, a partir dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, escritos em 1905 e reeditados posteriormente, até a década de 1920. No século XIX, enquanto sexólogos europeus utilizavam a palavra libido para descrever variações da atividade sexual humana, que correspondia à atividade genital, Freud aproxima a noção da libido à noção de pulsão sexual generalizada, considerando-a, num primeiro momento, energia, manifestação da pulsão na vida, produzida por órgãos do corpo todo, e a considera o principal determinante da psique humana. Manifestação esta que fixa-se em objetos; ou seja, há um deslocamento enquanto investimento do próprio sujeito a si mesmo (libido do eu ou libido narcisista), ao seu próprio corpo, e então a um outro (libido do objeto). Ao deixar o fim sexual, a libido sofre uma sublimação, e é voltada a objetos socialmente valorizados, como a literatura e a arte, por exemplo. É nessa sublimação que o processo civilizatório está calcado.

    Para garantir o deslocamento da libido, algumas pulsões são recalcadas no processo de criação de identidade dos indivíduos, que aprendem a dominar tanto a natureza externa quanto a interna. Contudo, as pulsões reprimidas podem despontar na violência. O risco de uma sublimação em que a libido é deslocada para uma supervalorização da técnica, está na coisificação do humano que se desdobra na incapacidade de identificação com o outro. Assim, desenha-se então um caminho para que ocorram situações como a de Auschwitz.

     

    Hoje em dia qualquer pessoa, sem exceção, se sente mal-amada, porque cada um é deficiente na capacidade de amar. A incapacidade para a identificação foi sem dúvida a condição psicológica mais importante para tornar possível algo como Auschwitz em meio a pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas. O que se chama de “participação oportunista” era antes de mais nada interesse prático: perceber antes de tudo a sua própria vantagem e não dar com a língua nos dentes para não se prejudicar. Esta é uma lei geral do existente. O silêncio sob o terror era apenas a consequência disto: A frieza da mônada social, do concorrente isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao destino do outro, o pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. Os algozes sabem disto; e repetidamente precisam se assegurar disto. (ADORNO, 1995, p. 134)

     

    Contudo, Adorno não quer pregar o amor nesse cenário em que nos sentimos pessoas mal amadas, já que, para ele, a deficiência de amor afeta todas as pessoas. E mesmo que tentemos ao menos impedir que as crianças vivenciem a dureza da vida, em algum momento estas podem, desprotegidas, conhecer a barbárie. Seus próprios pais também revelarão marcas da sociedade. Por isso para ele a saída não é clamar pelo amor, mas lidar primeiro com a frieza.

     

    O apelo a dar mais calor humano às crianças é artificial e por isto acaba negando o próprio calor. Além disto o amor não pode ser exigido em relações profissionalmente intermediadas, como entre professor e aluno, médico e paciente, advogado e cliente. Ele é algo direto e contraditório com relações que em sua essência são intermediadas. O incentivo ao amor provavelmente na forma mais imperativa, de um dever constitui ele próprio parte de uma ideologia que perpetua a frieza. Ele combina com o que é impositivo, opressor, que atua contrariamente à capacidade de amar. Por isto o primeiro passo seria ajudar a frieza a adquirir consciência de si própria, das razões pelas quais foi gerada. (ADORNO, 1995, p. 135-136)

     

    E mais uma vez Adorno reforça a importância do estudo dos mecanismos subjetivos para analisar Auschwitz. Não apenas de quem participou, mas até mesmo de quem não considera o ocorrido tão grave. Além disso, vale lembrar que a ameaça da repetição não atinge necessariamente aqueles que foram atingidos em Auschwitz. Os próximos perseguidos podem ser quaisquer daqueles que não pertencerem ao grupo perseguidor.

    Nesse contexto, a educação que se faz necessária é uma educação política:

     

    Finalmente, o centro de toda educação política deveria ser que Auschwitz não se repita. Isto só será possível na medida em que ela se ocupe da mais importante das questões sem receio de contrariar quaisquer potências. Para isto teria de se transformar em sociologia, informando acerca do jogo de forças localizado por trás da superfície das formas políticas. Seria preciso tratar criticamente um conceito tão respeitável como o da razão de Estado, para citar apenas um modelo: na medida em que colocamos o direito do Estado acima do de seus integrantes, o terror já passa a estar potencialmente presente. (ADORNO, 1995, p. 137)

     

    Os algozes nazistas não agiam pelo próprio interesse, aliás, contrariamente ao próprio interesse, coisificavam a si próprios ao coisificarem o outro. São a educação e o esclarecimento, para Adorno, as possibilidades para evitarmos que as pessoas enquanto serviçais perpetuem a própria servidão.

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    Sempre que leio Educação após Auschwitz sinto um impacto, algo como um soco no estômago. Retomar esse texto e preparar este e-mail no isolamento social, em meio não apenas às consequências da pandemia, mas também aos ecos autoritários e violentos de medidas tomadas num âmbito político que coisificam as pessoas, foi bastante esquisito e talvez ainda mais impactante.

    Meu intuito em trabalhar o texto de Adorno com vocês sempre foi o de colocar perguntas para ampliar horizontes de projetos educacionais. E este é o espírito do programa do curso. Desta vez as perguntas se embaraçaram. Há alguns meses eu poderia perguntar a vocês sobre o alcance da educação e da filosofia, frequentemente rebaixadas em nossa sociedade, seja por discursos ideológicos ou por cortes de verbas públicas, para reverter essa situação cuja tônica é marcada pelo ódio e pelo autoritarismo e na qual os sujeitos se diluem na supervalorização de figuras tidas como míticas. Hoje a minha indagação abarca também uma supervalorização da técnica, que impõe a extensão dos encontros nas escolas e nas universidades, pelo virtual, para as casas e para a vida de cada estudante, entre todas as suas dificuldades sanitárias, materiais e emocionais; o cumprimento de metas e a divinização de uma ciência econômica na qual pretendem fundamentar a desautorização violenta e autoritária das ciências que neste momento se voltam à preservação da vida. Hoje, então, com o rebaixamento da educação e da filosofia, podem o esclarecimento, a ciência – qual ciência? – se desvincular de uma supervalorização da técnica e agir em conjunto com a educação?

     

     

    Referências bibliográficas

     

    ADORNO, Theodor W. “Educação após Auschwitz”. In: Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

    ______; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Tradução: Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.