1989. Uma onda de otimismo atravessa os círculos oficiais do poder quanto ao presente e futuro: um novo consenso estaria emergindo, democrático e capitalista, com o fim e a dissolução do bloco socialista. Irrompe um poderoso relato do triunfo da chamada democracia liberal – alguns mais exaltados chegam até a falar de fim da história. A partir do término da Guerra Fria, todos teriam se transformado em democratas. Os acontecimentos recentes mostraram o quase total equívoco dessa perspectiva e a parca vitalidade da democracia (representativa). Por um lado, tais leituras e posições subestimaram, de forma drástica, um deslocamento liberal anterior, sua virada a partir dos anos 1970 (reforçada nas décadas seguintes) de retirada de direitos e acentuação das desigualdades. Ocultaram também o crescente caráter repressivo de todos os regimes políticos contemporâneos – uma guerra contra seus cidadãos, segundo estudo de Bernard Harcourt. Por outro lado, percebe-se uma reorganização das correntes políticas de extrema-direita e anti-democráticas. É nesse contexto que uma ampla literatura sobre a “crise da democracia” tem florescido. Em tempos de renovação dos autoritarismos em escala global, como compreender e apreender os presentes enfrentamentos entre vetores democráticos e de dominação? Isso envolve analisar uma longue durée desses confrontos, a partir de embates entre processos de colonização e formas de organização política menores (no sentido deleuziano), que geralmente não são consideradas como parte da linhagem democrática, talvez por serem protagonizadas por coletividades não habituais do cânone político “ocidental”: indígenas, quilombolas, piratas, dentre outros. As primeiras décadas do século passado são decisivas para esse debate e uma atenção especial lhe é dedicada. O início do século 20 é marcado pelas revoluções dos conselhos (“tesouro perdido da tradição revolucionária”, de acordo com Hannah Arendt) na Rússia em 1905/1917 e na Alemanha em 1918-1919, inspirando ou reatualizando criações políticos no mundo todo. Uma poderosa contra-revolução rapidamente surge e um esforço de compreensão do fenômeno nazi-fascista é fundamental, assim como das oposições a essa ativação de forças e projetos de morte. Trata-se, também, de estudar essas tensões nos tempos contemporâneos. Situamos o momento inaugural desse período no evento-1968 e sua revolução global. Como resposta, (re)nasce um liberalismo crescentemente autoritário, a partir do diagnóstico de que as sociedades estariam se tornando ingovernáveis. No contexto latino-americano isso nos remete às articulações, históricas e presentes, entre fragilidades democráticas, alto nível de violência contra os povos e opressão econômica. Por fim, após a crise financeira de 2008, vivemos uma década de “insurreições democráticas” (David Graeber) nas quais esses choques entre ativação democrática e respostas repressivas se reatualizam e seguem seu curso.