O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade (Eduardo Coutinho)

Esse escrito é uma transcrição de um dos momentos ocorridos no evento "Ética e História Oral", que reuniu diversas autorias pensando ética em teoria e prática. O Eduardo Coutinho é um dos convidados dos debates/palestras e, em sua fala inicial e no que conversa durante o debate, estão presentes suas ideias sobre a entrevista enquanto encontro. Ao falar de ética, ele pontua que deve-se já partir do pressuposto que não há, ali, uma relação simétrica (ainda que a pessoa entrevistada seja, digamos, um presidente ou alguém de alguma família conhecida). Você pode deformar, manipular a fala. Para que o diálogo tenha equilíbrio, é importante incluir essa assimetria no produto. O diálogo é entre os dois, e isso deve ser enunciado.

O diálogo situaria dois personagens em cena: esse que entrevista e esse que é entrevistado. E, por isso, Coutinho considera que é importante enfatizar que a pessoa não desembestou a falar. Todo acontecimento, como disse Ismail Xavier, é despertado na conversa, no habitar o momento sabendo ser escutado (e sabendo que aquilo está sendo registrado), no confronto com o ser escutado, percebido, gravado. É fundamental, no seu olhar e fazer, situar que são importantes pergunta e resposta, o narrar e o que o atiçou. Coutinho acredita que não dá para alimentar a fantasia de poder filmar o real: o registro é sempre do encontro, um encontro entre dois mundos (o do cineasta e o que se desdobra em falas e gestos, mediado pela parafernália do cinema). A política desse fazer cinema não está no filmar com o compromisso de trazer uma mensagem: está no querer encontrar, conhecer, escutar histórias e ver o mundo através da fala do outro. O anseio não é o de trazer mensagens, de cravar generalizações sobre o macro a partir do micro, mas habitar o espaço construído no encontro e buscar entender (um entender que teria desdobramentos na interação, em quem escuta, em quem assiste, que tornaria possível ou não a mudança).

É muito importante, para alguns documentaristas, que a entrevista não seja pura e simplesmente uma versão oral ou audiovisual do que já se aprendeu em pesquisa: uma seleção de entrevistadas (os) que não faz senão confirmar o que já se pensava, uma seleção de trechos coerentes com as crenças já existentes, um roteiro de perguntas que busca adaptar teoria e experiência. Através dos documentários, buscou-se uma contraposição às sequência de filmagens com uma voz (quase que divina) narrando as vivências no afirmar politicamente um interesse vívido no sujeito que fala de si e por si. Trata-se de buscar trocar o “falar sobre” ou “falar por” pelo "falar com" (o que pressupõe diálogo). No pensar a entrevista, são delineadas outras questões que podem também conversar com o que foi sendo conversado nas aulas: o status desse que é entrevistado, o nível de controle da entrevista, o manuseio de objetos (fotos, por exemplo), se é ou não importante conversar antes daquele momento registrado, tipos de roteiro, a necessidade de se situar o consentimento e ética, a categoria memória e o ato de narrar, os diferentes lugares desse que entrevista e desse que é entrevistado e esse lugar "entre" estes (e a possibilidade de esse "entre" fazer parte do produto final).


Coutinho, Eduardo. “O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade”. Projeto História, v.15 (1997): JUL./DEZ. ÉTICA E HISTÓRIA ORAL, pp. 165-171, 1997.

Cit.: Bárbara R. de Araújo

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