1. Início de Conversa

  • A Escola Essencialista

Para começar a ser considerada uma prática científica, a Sistemática (ciência responsável pela classificação dos seres vivos) teve de esperar até 350 a.C., quando Aristóteles resolveu classificar a vida. Ele seguia o essencialismo platônico, no qual o que realmente importa são os traços típicos de cada espécie — e cada uma delas tem um tipo, uma referência, um modelo.

Segundo o raciocínio aristotélico (e usando um exemplo já empregado por Sober), esse princípio apresenta dois problemas bem notáveis:

1. Uma onça-pintada tem um filhote negro. O tipo da espécie Panthera onca é amarelado com manchas negras. Portanto, o filhote não possui a essência da mãe, e será uma espécie diferente. A mãe estará amamentando outra espécie.

2. De repente se descobre uma onça vivendo em Marte. Ela jamais viu a Terra, e nenhuma onça terrestre jamais viu nem conheceu essa criatura. Entretanto, são da mesma espécie, pois têm a mesma essência.

Esses exemplos são bem simplistas, e carecem de muitos desdobramentos filosóficos, mas servem para ilustrar, sem muita perda, a deficiência dessa escola de classificação. Isso, claro, não tira seu mérito na história natural: o próprio Carolus Linnaeus a usou quando propôs seu Systema Naturae, em 1758. O que ele fez foi propor um conjunto de regras e categorias para classificação, que foi extremamente útil numa época de explosão de pesquisas e publicações sobre a biodiversidade mundial.

  • A Escola Evolutiva

Coincidências à parte, cem anos após a obra-prima de Linnaeus, Charles Darwin e Alfred Wallace chegavam a conclusões muito parecidas, e Darwin, com seu On the Origin of Species (“A Origem das Espécies”), lançou uma das pedras fundamentais da Ciência contemporânea em 1859.

Não imediatamente, mas pouco a pouco (pois sua teoria, inicialmente tida como anticristã, chegou a ser satirizada), suas ideias passaram a ser consideradas mais seriamente, e já no início do século XX, com o neodarwinismo, tinha se tornado parte do referencial teórico da Biologia moderna, ciência que começava a adquirir autonomia.

Ainda nessa época, os trabalhos de Wegener (principalmente Die Entstehung der Kontinente und Ozeane, “A Origem dos Continentes e dos Oceanos”) propulsionaram as pesquisas em Biogeografia e Paleontologia: muitos tentavam, então, observar a Terra com um olhar histórico, tentando reconhecer padrões e entender a biodiversidade atual como um desenrolar temporal.

O impacto que isso trouxe à sistemática e à sociedade em geral foi enorme (a própria Igreja admitiu oficialmente a evolução em 1996). Assim, alguns eminentes taxonomistas e sistematas das décadas de 20, 30 e 40 (entre os quais Mayr e Huxley) começaram a imaginar que as classificações deveriam refletir a evolução de alguma forma. Assim surgia a escola evolutiva (Figura 7.2a).

 

Uma das controvérsias que surgiram dessa escola estava no fato de que a definição dos grupos taxonômicos dependia dos “grados”, passos evolutivos considerados importantes. Mas... Como saber o que é “importante”?

 

  • A Escola Fenética

Na década de 60, a insatisfação com a escola evolutiva culminou com o surgimento de outra, proposta por Sokal e Sneath. Nessa época, os computadores passavam a ser acessíveis, e os cálculos poderiam ser acelerados consideravelmente. Os feneticistas propunham que, quanto mais parecidas fossem as espécies, mais próximas elas deveriam estar em um cladograma. Portanto, se fossem codificadas em códigos binários todas suas características morfológicas (e depois dos anos 80, moleculares também), seria possível a montagem de grupos inclusivos de similaridade (Figura 7.2b).

A grande vantagem trazida pelos feneticistas foi a robustez de um método, bem menos subjetivo que os empregados na escola evolutiva.

No entanto, apresenta um problema semelhante ao da escola essencialista: será que a mera semelhança pode nos dizer se uma determinada espécie é parente próximo de outra? Muitos feneticistas sabiam dessas limitações, mas não se importavam: para eles, o importante era organizar as espécies de forma consistente. Dado o contexto científico-cultural presente na sociedade acadêmica, sobretudo, esse método passou a sofrer rejeição; afinal, se não se podia agrupar espécies numa tentativa de descobrir seus parentescos, muitos dos potenciais usos da sistemática iriam ralo abaixo.

 

  • A Escola Cladística

Ironicamente, mais de uma década antes da insatisfação dos sistematas com as escolas existentes, o grande entomólogo germânico Willi Hennig já havia publicado seu Grundzüge einer Theorie der phylogenetischen Systematik, onde aperfeiçoava um dos métodos mais simples e geniais já criados para a sistemática, que lançava raízes no início do século XX. Entretanto, essa técnica em alemão ficou oculta até 1966, quando foi publicada uma versão traduzida para o inglês: daí em diante, o método ganhou adeptos ferrenhos e se disseminou rapidamente. Ainda viria a sofrer muitas críticas e reformas, mas o conceito central permanece há quase 40 anos (Figura 7.2c).

De forma simplificada, a sistemática filogenética procura agrupar organismos por novidades evolutivas compartilhadas (sinapomorfias), sendo que as semelhanças presentes há mais tempo na linhagem não devem ser consideradas (simplesiomorfias); afinal, não podemos agrupar uma minhoca com um marisco só porque são invertebrados: não possuem coluna vertebral, é verdade... Mas também não a possuem os pepinos-do-mar, os ácaros, os líquens, os vírus e as cadeiras de plástico — o que não quer dizer que eles tenham um ancestral comum que seja exclusivo deles.

Que tal mais um exemplo? Vamos a um bastante polêmico, abordado de forma superficial. Considere, portanto, que tem às mãos um conjunto de cinco animais, como mostra a Figura 7.1:

Figura 7.1 Um esturjão (E), uma corruíra (C), um jacaré-de-papo-amarelo (J), um teiú (T) e uma paca (P); o esturjão foi escolhido para termos um critério de comparação (chamado de grupo-externo). Se os agrupássemos apenas com base na semelhança (feneticamente), teríamos um grupo T+J. Mas não podemos fazer isso: as semelhanças entre T e J (escamas, ovos, quatro pernas etc.) não são exclusivas deles; por que, então, deveriam formar um conjunto? Tudo que eles têm de igual, C também tem, embora tenha sofrido ainda mais mudanças. Entretanto, as características que P compartilha com C (desconsiderando a endotermia, para simplificar o exemplo), também compartilha com T e J.
Fonte: Thinkstock / CEPA

No fim das contas, ainda temos um sistema mais simples. Observe:

Grupos
Fenética

Sistemática Filogenética

T+J+C+P T+J+C+P
T+J C
C P
P

Figura. 7.2a Sistemática e a filogenia dos Hominoidea - Escola Evolutiva.
Fonte: Adaptado de Hickman et al., 2006.

Figura 7.2b Sistemática e a filogenia dos Hominoidea - Escola Fenética.
Fonte: Adaptado de Hickman et al., 2006.

 

Figura 7.2c Sistemática e a filogenia dos Hominoidea - sistemática Filogenética.
Fonte: Adaptado de Hickman et al., 2006.

 

  • A Evolução na Sistemática Filogenética

Quando se olha para um cladograma, ou árvore filogenética, é necessário entender a simbologia. O tempo transcorre verticalmente, sendo que o topo é mais recente e a base, mais antiga. Horizontalmente temos a diversidade de grupos ao longo do tempo; a menos que haja extinções, casos nos quais a linha se interrompe antes do topo (como o táxon E, na Figura 7.3). Perceba, na figura, que cada nó é o encontro de pelo menos dois ramos (linhas), e representa o ancestral comum e exclusivo de um grupo monofilético, que encerra todos os descendentes daquele ancestral. Por isso, olhando a Figura 7.3, podemos dizer que o grupo BCD é monofilético, mas não os grupos CD, EFG ou ABG, por exemplo.

Talvez fique mais claro se organizarmos esses organismos em um diagrama de Euler-Venn, mais familiar, geralmente, aos alunos (Figura 7.4). Perceba que os conceitos são praticamente os mesmos (repare na inclusividade!), só sendo alterada a maneira de representação.

A sistemática atual não trabalha com táxons (gêneros, famílias etc.) que não sejam monofiléticos. Quando se percebe que um grupo tradicional e antigo não deve ser monofilético após uma série de estudos e análises filogenéticas, os sistematas são obrigados a escolher nomes novos para os grupos estudados.

Figura 7.3 Esquema representando um cladograma. Grupos monofiléticos: ABCDEFG, BCDEFG, BCD, BC, FG, A, B, C, D, E, F, G. O tempo transcorre na vertical; portanto, o ancestral de FG é mais recente que o de BCDEFG, que, por sua vez, pode ser considerado um dos ancestrais de FG.
Fonte: CEPA


Figura 7.4 Diagrama de Euler-Venn representando a mesma árvore vista na Figura 7.3.
Fonte: CEPA