Concepções dos estudantes


Concepções alternativas dos estudantes


Mas as dificuldades no Ensino de Evolução não estão limitadas à formação inicial do docente. Como vimos, os professores de ciências apontam outros obstáculos para adotar em sala de aula uma abordagem evolutiva. Vamos discutir cada um deles com maior atenção?

Comecemos com o segundo problema, isto é, a ideia de que as concepções prévias dos estudantes interferem negativamente no processo de ensino-aprendizagem. Como lidarmos com as diferenças culturais existentes dentro de uma mesma sala de aula, principalmente quando o assunto tem um caráter polêmico e mexe com as nossas concepções de origem do mundo e, principalmente, de origem do homem?

Para responder a essa questão, precisamos pensar sobre as nossas estratégias de ensino. Entre as estratégias mais utilizadas nas últimas décadas, uma bastante comum é a que envolve as noções de Mudança Conceitual e Conflito Cognitivo. Essas propostas enfatizam o processo individual de construção do conhecimento, em que as concepções prévias dos alunos podem ser modificadas por meio da criação de conflitos entre suas ideias e os resultados de experimentos ou de discussões da esfera científica. Assim, uma sequência de aula que objetiva a mudança conceitual por meio de conflitos envolveria: explicitar as ideias prévias dos alunos, fomentar trocas e discussões em grupos para tornar essas concepções mais claras, promover situações de conflito para construção de novas ideias e verificar o progresso no entendimento por meio de comparação entre as concepções prévias e as recém-construídas.

Entretanto, o modelo de Mudança Conceitual tem sido bastante investigado e alguns problemas vêm sendo percebidos, merecendo ainda maior atenção quando tratamos de Evolução. No texto “Construtivismo, Mudança Conceitual e Ensino de Ciências: para onde vamos?”, Eduardo Mortimer, baseado também em outros pesquisadores em Ensino de Ciências, aponta que o primeiro desses problemas se refere a uma questão de custo-benefício: gasta-se muito tempo para trabalhar poucos conteúdos e o retorno nem sempre é próximo do que o professor deseja. Um segundo problema é o fato de que muitas estratégias baseadas no conflito cognitivo parecem não reconhecer as lacunas citadas por Piaget em sua Teoria da Equilibração. Assim, muitas vezes, no processo de construção de uma ideia nova, a falta de informações para interpretar os resultados de um experimento torna-se um obstáculo maior que o conflito entre as concepções dos estudantes e os resultados obtidos. Outra questão levantada pelos pesquisadores é a de que, muitas vezes, o estudante permanece no plano dos esquemas e procedimentos e não passa para o plano das explicações. Desse modo, o aluno não generaliza os conteúdos trabalhados, pois não os reconhece como gerais.

Além disso, o Modelo de Mudança Conceitual parece assumir que as concepções prévias dos alunos devem ser abandonadas e trocadas por ideias científicas, mas, como discutimos na primeira aula, os estudantes conseguem lidar com diferentes zonas de um perfil conceitual, aplicando-as conforme o contexto em que se encontram. Os saberes cotidianos, os saberes escolares e os saberes científicos não são necessariamente excludentes e podem coexistir nas explicações de mundo dadas por um mesmo estudante, dentro e fora da sala de aula.

Mas por que essas reflexões se tornam ainda mais importantes quando falamos sobre Ensino de Evolução?

O Ensino de Evolução envolve não somente questões científicas, mas também filosóficas, sociais, econômicas e culturais que permeiam o cotidiano dos nossos alunos. Trazê-las para a sala de aula é uma tarefa importante, mas é fundamental que saibamos que cada um desses campos de saber fornece perguntas e respostas, que podem ser bastante diversas entre si, e que cada estudante tem uma forma própria de lidar com essas divergências.

Um exemplo característico é o possível conflito entre ciência e religião. Segundo o IBGE, a maioria dos brasileiros atribui a Deus a criação de todos os seres vivos, inclusive a do homem. Acreditar que Deus é criador onipresente e onipotente é incompatível com a Teoria da Evolução? Basta dar uma rápida olhada em sites e blogs, que tratam desse assunto, para percebermos que há diferentes modos de entender a relação ciência-religião. Tomando como exemplo, entre no blog do Prof Felipe Aquino e leia alguns dos comentários feitos por internautas em resposta ao post dele sobre o posicionamento do Papa Bento XVI em relação à Teoria da Evolução.

Esses comentários podem exemplificar muito bem posturas comuns de estudantes do Ensino Fundamental que são apresentados à Teoria da Evolução ou a outras teorias científicas portadoras de uma visão diferente daquela já apreendida por eles. Em geral, ao se depararem com novas visões de mundo, os estudantes podem estabelecer as seguintes relações:

1) Total incompatibilidade entre ciência e religião

Alguns alunos (e vemos isso também nos comentários do blog acima citado) afirmam que não somente ciência e religião são diferentes, como também são incompatíveis. Fundamentalistas religiosos e ateus geralmente adotam essa postura e utilizam a visão escolhida para dar significado àquilo que observam no mundo. Assim, afirmar, por exemplo, que homens e macacos têm ancestrais comuns, e que as mudanças entre os grupos ocorreram durante milhões de anos, seria totalmente incompatível com a ideia de que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança há alguns milhares de anos. Nesses casos, o estudante desenvolve uma busca constante de distanciamento e até de negação absoluta da visão contrária à sua.

2) Compatibilidade com síntese

Outros estudantes procuram estabelecer relações entre os diferentes pontos de vista e acabam por criar suas próprias sínteses explicativas diante de situações conflituosas. Utilizando o exemplo acima, esses alunos aceitam que a Evolução ocorre, mas assumem que quem conduz cada passo do processo é um ser superior, sobrenatural, que está acima dos processos naturais. Essas ideias encontram eco na proposta de Design Inteligente, que se propõe a ser um conhecimento humano gerado pelas esferas científica e religiosa.

3) Compatibilidade sem integração

Há ainda os alunos que conseguem delimitar as diferentes visões, deixando-as separadas e lançando mão de cada uma delas, conforme a situação que lhe é apresentada. Nesse sentido, o estudante pode responder satisfatoriamente a questões avaliativas sobre Evolução, mas nega o pensamento evolutivo no seu cotidiano. O conhecimento científico foi compreendido e pode ser reproduzido pelo estudante, mas não foi apreendido por ele.

Essas posturas, provavelmente, estão relacionadas à história de vida de cada um desses alunos. Pesquisas atuais em Ensino de Ciências nos ajudam a perceber alguns pontos importantes. A relação entre ciência e religião estabelecida por um aluno religioso é influenciada pelo tipo de vínculo que esse estudante tem com sua prática dogmática (se é fundamentalista ou liberal) e pelo tempo em que está atrelado a essa prática (se a educação religiosa teve início na infância precoce ou na adolescência). Além disso, o tipo de vínculo estabelecido com a cultura científica também influencia a postura a ser escolhida. Quanto mais vinculado ao dogma religioso fundamentalista e quanto maior o tempo de inserção na prática religiosa, maior a possibilidade de uma visão incompatível entre ciência e religião. Por outro lado, quanto maior e de melhor qualidade for a experiência com o universo científico, maior será a possibilidade de os alunos religiosos desenvolverem uma visão compatível com a ciência.

Esses dados nos mostram a importância de desenvolvermos uma boa aproximação entre os alunos e a cultura científica no ambiente escolar, apresentando-a como uma forma de pensar que tem poder explanatório e que nos ajuda a resolver uma série de problemas. Assim, é importante frisar que, mais do que querer que os estudantes troquem uma ideia por outra, ou que eliminem suas concepções alternativas e apreendam o discurso científico, o Ensino de Ciências pode caminhar no sentido de ajudar os alunos a fazer distinção entre concepções apropriadas para cada contexto de sua vida e promover uma maior compreensão da visão de mundo científica para ajudar a explicar nossa realidade.