1. Introito

1.1. BR

Do ponto de vista clássico, um elétron e um próton são corpos, de forma e tamanho desconhecidos, mas com cargas inercial (ou gravitacional) e elétrica bem conhecidas. Enquanto suas cargas elétricas diferem apenas em sinais, suas cargas gravitacionais são bem diferentes (o próton é 1836 mais intenso).

Coulomb estabeleceu a força elétrica inspirado pela força gravitacional de Newton: ambas possuem uma intensidade que varia com o inverso do quadrado da distância entre fonte e corpo teste e são diretamente proporcionais ao produto de suas cargas. Para distâncias atômicas (da ordem de um Angstrom), a força elétrica entre um próton (fonte) e um elétron (teste) é cerca de 80 bilionésimo de Newton, \(10^{39}\) mais intensa que a força gravitacional. O átomo de hidrogênio é formado por um próton e um elétron. A atração (elétrica) mútua entre um próton e um elétron a uma distância de $0.53\,\mathring{A}$ ($0.53\times 10^{-10}\,$m; raio de Bohr) tem uma intensidade de apenas $8.24\times 10^{-8}\,$N. Como pode uma força de intensidade tão ínfima ser responsável pela integridade de um dos átomos mais importantes deste universo?

O programa Newtoniano estabelece a existência de uma força resultante da variação espacial da energia potencial tanto no caso gravitacional quanto no caso elétrico. Esta energia potencial pode ser interpretada como a energia gasta para trazer um corpo teste de muito longe para uma certa distância da fonte. Para o átomo de hidrogênio, esta energia, $4.36\times 10^{-18}\,$J (ou $27.2\,$eV; elétron-volt), é essencialmente elétrica.

Como é formado um átomo de hidrogênio? Se possível, basta juntarmos um próton e um elétron, corpos antes separados, para formar um novo objeto, o átomo de hidrogênio? Uma vez colocados juntos, o que impede o elétron de se aproximar indefinidamente do próton? Todos os átomos de hidrogênio do universo foram formados na mesma época? Que informações temos sobre o átomo de hidrogênio?

Com segurança podemos afirmar que um átomo de hidrogênio é um sistema sem qualquer precedente na descrição clássica (Newtoniana). A característica nova mais marcante deste sistema é a impossibilidade de absorver qualquer quantidade de energia. Um átomo (em geral) pode absorver energia entregue por fótons e emiti-la em seguida. Classicamente, há nada que impeça um sistema de absorver/emitir qualquer quantidade de energia. Surpreendentemente, um átomo (em geral) somente absorve certas quantidades de energia e emite somente estas mesmas quantidades de energia absorvidas. Se diz que os processos de absorção/emissão são discretizados ou quantizados. As energias disponíveis para absorção/emissão num átomo constituem seu espectro de energia. Cada átomo possui um espectro de absorção/emissão único, como uma espécie de impressão digital. Conjectura-se que todos os átomos de um mesmo tipo tenham o mesmo espectro. Esses espectros são passíveis de serem modelados matematicamente, isto é, existe uma ordem. Se existe ordem, existem leis.

Para começarmos a compreender melhor este sistema novo, chamado de átomo de hidrogênio, vamos investigar o que a mecânica Newtoniana tem a dizer sobre ele. O próton, por ter uma carga inercial maior, pode ser visto como fonte e o elétron como o corpo teste (com carga elétrica de sinal oposto). O próton, a fonte, cria um potencial elétrico que varia com o inverso da distância. O elétron, corpo teste, quando colocado na presença deste potencial elétrico, sente a força elétrica de Coulomb (atrativa) que varia com o inverso do quadrado da distância na direção da reta que passa por estes dois corpos. Este é o mesmo cenário do sistema solar formado pelo Sol (fonte) e pela Terra (corpo teste) interagindo via a força gravitacional Newtoniana. Portanto, basta trocarmos as cargas inerciais pelas cargas elétricas, bem como a constante gravitacional pela constante elétrica, para aproveitarmos integralmente a descrição Newtoniana de um sistema solar formado por dois corpos. Vale manter em mente que a carga inercial deve ser mantida na parte inercial da segunda lei de Newton, a qual contém a variação do momentum linear.

Se tem uma força, tem trajetórias, de acordo com a segunda lei de Newton: \begin{equation} \vec{F}_{e}=\dot{\vec{p}},\quad \vec{p}=m\vec{v},\; \dot{\vec{p}}=\frac{d\vec{p}}{dt},\end{equation} onde $m$ é a massa do elétron e \begin{equation} \vec{F}_{e}=-K\frac{\hat{r}}{r^2},\quad K=C_{e}e^2,\end{equation} é a força elétrica ($e$ é a unidade de carga elétrica). Uma força como esta, radial, com simetria esférica, é denominada de força central. Uma força central que varia com o inverso do quadrado da distância radial implica em três quantidades conservadas: a energia mecânica $E$, o vetor momentum angular $\vec{L}$ e o vetor excentricidade $\vec{M}$, \begin{equation} E=\frac{1}{2}mv^2-\frac{K}{r},\quad  \vec{L}=\vec{r}\times\vec{p},\quad K(\vec{M}+\hat{r})=\vec{v}\times\vec{L},\end{equation} respectivamente. Estas três quantidades conservadas levam, sem a necessidade de resolver qualquer equação diferencial, à trajetória \begin{equation} r(\theta)=\frac{L^2}{mK}\frac{1}{1+M\cos\theta},\quad M^2=1+\frac{E}{\varepsilon},\; \varepsilon=\frac{1}{2}m\frac{K^2}{L^2},\end{equation} que representa uma seção cônica (em coordenadas polares $r$ e $\theta$), com excentricidade $M$ e semi-eixo maior \begin{equation} a=-\frac{K}{2E}.\end{equation}

Quando estudante, me foi dito que este modelo planetário não serve para descrever um átomo de hidrogênio devido à emissão de radiação por uma carga elétrica acelerada. Ainda não conhecia o princípio da equivalência estabelecido por Einstein. Uma carga elétrica com uma aceleração de módulo constante não emite radiação. Dentre as seções cônicas está a circunferência, de excentricidade nula, $M=0$ que implica em $E=-\varepsilon$. Esta órbita circular tem uma aceleração de módulo constante, o que garante a estabilidade deste átomo de hidrogênio planetário. Desta forma, a energia $E$ do elétron nesta órbita circular de raio $a$ é \begin{equation} E=-\frac{1}{2}m\frac{K^2}{L^2},\quad a=\frac{L^2}{mK}.\end{equation}

Isto é tudo que a mecânica Newtoniana tem a dizer. A discretização dos valores de energia deste elétron orbitando o próton é uma imposição de outro tipo de física. Em se tratando de uma observação, aceitamos esta discretização  destas energias neste sistema. Na falta de um modelo matemático para esta física nova, fazemos o que podemos fazer: discretizar os possíveis valores do módulo $L$ do momentum angular, \begin{equation} L=n\,\hbar,\; n\in\{1,2,\ldots\}\quad (\ast)\end{equation} Esta é a única escolha possível, pois o parâmetro $K$ depende apenas de constantes universais. Situações estarrecedoras demandam medidas estarrecedoras. Desta forma, a energia torna-se discretizada (bem como o raio das respectivas órbitas circulares): \begin{equation} E_n=-\frac{1}{2}m\frac{K^2}{\hbar^2}\frac{1}{n^2},\quad a_n=\frac{\hbar^2}{mK}n^2.\quad (\ast\ast)\end{equation} 

O que podemos observar é apenas a diferença entre estes diversos níveis de energia (dentro de uma certa incerteza experimental). A diferença entre os dois primeiros níveis é aproximadamente $\Delta E=10.2\,$eV, o que permite determinar o valor da unidade de momentum angular, $\hbar=1.0548\times 10^{-34}\,$Kg\,m$^2$/s. Este valor fornece $a_1=0.5294\,\mathring{A}$. Como sabemos hoje, $\hbar$ é a constante universal de Planck e $a_1$ é o raio de Bohr, o primeiro a propor a quantização do momentum  angular num cenário dentro da mecânica clássica. 

Oferecemos aqui uma rota via segunda lei de Newton para chegar ao mesmo átomo de Bohr, validado e ampliado pela então chamada Mecânica Quântica. De mecânica, a Mecânica Quântica tem nada. No entanto, ao lidar com densidades de probabilidades, revela uma física completamente nova e estarrecedora.