Clonagem terapêutica e reprodutiva


A clonagem é um mecanismo comum de propagação da espécie em plantas ou bactérias. Em humanos, os clones naturais são os gêmeos idênticos que se originam da divisão de um mesmo óvulo fertilizado. A grande revolução da Dolly abriu caminho para a possibilidade de clonagem humana ao demonstrar, pela primeira vez, que era possível clonar um mamífero - isto é, produzir uma cópia geneticamente idêntica a partir de uma célula somática diferenciada. Para entendermos porque essa experiência foi surpreendente precisamos recordar um pouco de embriologia.

Todos nós já fomos uma célula única, resultante da fusão de um óvulo e um espermatozoide. Esta primeira célula já tem no núcleo o DNA com toda a informação genética necessária para o novo ser. No núcleo das nossas células, o DNA se organiza em pares de cromossomos e se apresenta muito condensado. Com exceção das células sexuais — o óvulo e o espermatozoide, que têm 23 cromossomos —, em todas as outras células do corpo humano há 46 cromossomos (23 pares) em seus núcleos. As células do corpo, não sexuais, são as chamadas células somáticas.

A grande contribuição da clonagem da Dolly foi justamente a descoberta de que uma célula somática de mamífero, já diferenciada, poderia ser reprogramada ao estágio inicial e voltar a ser totipotente. Os cientistas escoceses realizaram esse feito ao transferir o núcleo de uma célula somática da glândula mamária de uma ovelha para um óvulo anucleado — quer dizer, de onde tinham retirado o núcleo.Surpreendentemente, o óvulo começou a se comportar como um óvulo recém-fecundado por um espermatozoide.



Adaptado do texto de Mayana Zatz


Animação 1 - Clonagem


Clonagem Reprodutiva


Como descrito no item anterior, para a obtenção de um clone, o óvulo para o qual os cientistas transferem o núcleo da célula somática é inserido no útero de uma mãe de aluguel. Se desejássemos fazer clonagem humana reprodutiva, teríamos de retirar o núcleo de uma célula somática que, teoricamente, poderia ser de qualquer tecido de uma criança ou de um adulto, inserir o núcleo em um óvulo, e depois implantá-lo no útero de uma mulher, que funcionaria como barriga de aluguel. Se o óvulo se desenvolvesse, teríamos um novo ser com as mesmas características físicas da criança ou do adulto de quem foi retirada a célula somática. Seria como um gêmeo idêntico nascido posteriormente (Animação 1).

Já sabemos que esse processo não é fácil. Dolly só nasceu depois de 276 tentativas fracassadas. Além disso, dos núcleos das 277 células da “mãe de Dolly” inseridos em um óvulo sem núcleo, 90% não alcançaram nem o estágio de blastocisto. As tentativas posteriores de clonar outros mamíferos, camundongos, porcos, bezerros, um cavalo e um veado, também mostraram eficiência muito baixa e uma proporção muito grande de abortos e embriões malformados. Penta, a primeira bezerra brasileira clonada a partir de uma célula somática adulta, em 2002, morreu com pouco mais de um mês. Ainda em 2002, foi anunciada a clonagem do “copycat”, o primeiro gato de estimação clonado a partir de uma célula somática adulta. Para chegar a isso, foram utilizados 188 óvulos, que geraram 87 embriões e apenas um animal vivo. Na realidade, experiências recentes, com diferentes modelos animais, têm mostrado que é extremamente difícil a reprogramação da célula somática para um estágio embrionário, indiferenciado, que originou Dolly.

Ian Wilmut, o cientista escocês famoso pela experiência que resultou no nascimento de Dolly, afirma que praticamente todos os animais clonados nos últimos anos, a partir de células não-embrionárias, estão com problemas (Rhind, 2003). Entre os diferentes defeitos dos pouquíssimos animais que nasceram vivos após inúmeras tentativas, observaram-se: placentas anormais, gigantismo em ovelhas, defeitos cardíacos em porcos, problemas pulmonares em vacas, ovelhas e porcos, problemas imunológicos, falha na produção de leucócitos, defeitos musculares em carneiros. De acordo com Hochedlinger e Jaenisch (2003), os avanços recentes em clonagem reprodutiva permitem quatro conclusões importantes:

  • a maioria dos clones morre no início da gestação;
  • os animais clonados têm defeitos e anormalidades semelhantes, independentemente da célula doadora ou da espécie;
  • essas anormalidades, provavelmente, ocorrem por falhas na reprogramação do genoma das células somáticas;
  • a eficiência da clonagem depende do estágio de diferenciação da célula doadora.

De fato, a clonagem reprodutiva a partir de células embrionárias tem mostrado uma eficiência de 10 a 20 vezes maior, provavelmente porque os genes importantes no início da embriogênese estão ainda ativos no genoma da célula doadora. (Hochedlinger e Jaenisch, 2003).

Entre todos os mamíferos já clonados, é interessante notar que a eficiência é um pouco maior em bezerros. Outro fato intrigante é não haver notícias de macaco que tenha sido clonado. Talvez por essa razão, a cientista inglesa Ann McLaren afirma que as falhas na reprogramação do núcleo somático podem vir a se constituir em barreira intransponível para a clonagem humana. Mesmo assim, pessoas como o médico italiano Antinori e a seita dos raelianos defendem a clonagem humana, um procedimento que tem sido proibido em todos os países. De fato, em 2003, as academias de ciências de 63 países, inclusive a brasileira, formalizaram documento conjunto em que pedem o banimento da clonagem reprodutiva humana. O fato é que a simples possibilidade de clonar humanos suscita discussões éticas em todos os segmentos da sociedade: Por que clonar? Quem deveria ser clonado? Quem iria decidir? Quem será o pai ou a mãe do clone? O que fazer com os clones que nascerem defeituosos?

Na realidade, o maior problema ético atual é o enorme risco biológico associado à clonagem reprodutiva. Apesar de todos esses argumentos contra a clonagem humana reprodutiva, as experiências com animais clonados têm nos ensinado muito acerca do funcionamento celular. Por outro lado, a tecnologia de transferência de núcleo para fins terapêuticos, a chamada clonagem terapêutica, poderá ser extremamente útil para a obtenção de células-tronco embrionárias.


Técnicas de Clonagem Terapêutica


Se tivermos um óvulo humano, cujo núcleo tenha sido substituído por um núcleo de célula somática, e deixarmos que se divida no laboratório – não em um útero -, teremos a possibilidade teórica de obter blastocistos e usar suas células-tronco embrionárias pluripotentes para formar diferentes células (Animação 2). Isso já foi feito em animais. O sucesso desse processo abriria perspectivas fantásticas para futuros tratamentos. Hoje, só se consegue cultivar em laboratório células com as mesmas características do tecido de onde foram retiradas ou transformá-las em poucos tipos celulares.


Animação 2 - Clonagem terapêutica

É importante esclarecer que, na clonagem para fins terapêuticos, os tecidos seriam produzidos apenas em laboratório. Não se trata de clonar um feto até alguns meses dentro do útero para depois lhe retirar os órgãos para transplante, como alguns acreditam.


Aspectos éticos


As 63 academias de ciências do mundo, que se posicionaram contra a clonagem reprodutiva, defendem as pesquisas com células embrionárias para fins terapêuticos. Em relação aos que acham que a clonagem terapêutica pode abrir caminho para a clonagem reprodutiva, devemos lembrar que existe uma diferença fundamental entre os dois procedimentos: a implantação ou não em um útero humano. Bastaria simplesmente proibir a implantação no útero para conter os abusos!

A cultura de tecidos é uma prática comum em laboratório. É realizada a partir de diversos tipos de células sem dilemas éticos. No caso da clonagem terapêutica, a diferença seria o início da cultura a partir de óvulos, que permitiriam a produção de qualquer tecido no laboratório, ou seja: ao invés de produzir apenas um tipo de tecido, já especializado, o uso de óvulos permitiria fabricar qualquer tipo de tecido. Em relação ao risco de comércio de óvulos, esse risco seria o equivalente ao que ocorre hoje com transplante de órgãos.

Em relação ao problema da destruição de “embriões humanos”, novamente devemos lembrar que estamos falando de cultivar tecidos - ou, futuramente, órgãos -, a partir de embriões e que estes nunca serão inseridos em um útero. Sabemos que 90% dos embriões gerados em clínicas de fertilização e inseridos no útero de uma mulher não geram vida. Além disso, um trabalho recente (Mitalipova et al., 2003) mostrou que células obtidas de embriões de má qualidade, que não teriam potencial para gerar uma vida, mantêm a capacidade de gerar linhagens de células-tronco embrionárias em laboratório e, portanto, de gerar tecidos. Ao usar células-tronco embrionárias com potencial baixíssimo de gerar indivíduos para regenerar tecidos em uma pessoa condenada por uma doença letal, poderíamos interpretar que na realidade estamos criando vida. Isso é comparável ao que se faz hoje em transplante quando se retiram órgãos de uma pessoa com morte cerebral (mas que poderia permanecer em vida artificialmente mantida por mais tempo).

É extremamente importante que as pessoas entendam a diferença entre clonagem reprodutiva humana, clonagem terapêutica e terapia celular com células-tronco embrionárias antes de tomar posição. Por outro lado, também não podemos acreditar que as células-tronco vão curar todas as doenças humanas. As pesquisas que estão sendo iniciadas agora serão fundamentais para responder a questões sobre o potencial das células-tronco adultas em comparação com as embrionárias, que doenças poderão ser tratadas e quais são os benefícios e riscos da terapia celular.


Situação brasileira


Com a aprovação da Lei de Biossegurança pela Câmara dos Deputados, no dia 2 de março de 2005, o Brasil entra na seleta lista de países do mundo em que os cientistas podem realizar pesquisas com células-tronco embrionárias, e trabalhar para encontrar tratamentos para doenças genéticas, até hoje incuráveis, e para lesões físicas ainda irreversíveis. Em alguns casos, as células-tronco embrionárias são a única esperança.

Os cientistas apostam muito nessas células embrionárias, pois elas são as únicas capazes de produzir todos os 216 tecidos do nosso corpo. A esperança é a de que inúmeras doenças, entre elas as neuromusculares, o diabetes, o mal de Parkinson e as lesões de medula possam ser tratadas pela substituição ou correção de células ou tecidos defeituosos. A terapia celular com células-tronco representa também um grande avanço nas técnicas hoje existentes de transplante de órgãos. Se as pesquisas derem os resultados esperados, deverá ser possível, no futuro, fabricar tecidos e órgãos em quantidade suficiente para todos. Seria o fim das longas filas de transplante de órgãos. Do mesmo modo que trocamos peças do nosso carro, poderemos substituir ou corrigir a função de órgãos com defeitos. Mas, para chegar lá, ainda temos de pesquisar e estudar muito.

As pesquisas com células-tronco do adulto, por sua vez, já foram iniciadas em pacientes cardíacos e em outras doenças como esclerose múltipla, acidente vascular ou diabetes; a maior pesquisa do mundo com pacientes cardíacos está sendo realizada no Brasil com 1.200 pessoas. Mas essas células têm algumas limitações. Hoje, elas só podem ser transformadas em células de alguns dos tecidos do corpo. Em especial, os pesquisadores sabem como transformar as células-tronco do adulto em células dos órgãos ou tecidos de onde foram retiradas: por exemplo, em células da medula óssea, que produz os componentes básicos do sangue. A terapia com células-tronco do adulto tem dado bons resultados no tratamento de leucemia. Nele, células-tronco do adulto da medula óssea e, mais recentemente, do cordão umbilical e da placenta são transplantadas nos pacientes a partir de doadores compatíveis.

Outra técnica utilizada, ainda experimentalmente, é a de autotransplante, na qual as células-tronco são retiradas e reinjetadas no paciente para o tratamento de lesões cardíacas e na recuperação do tecido nervoso de pessoas que sofreram acidentes vasculares. Mas ninguém sabe ainda se o tratamento é eficiente - por enquanto, é uma tentativa terapêutica experimental. A má notícia é a de que o autotransplante não pode resolver o problema dos mais de 5 milhões de brasileiros portadores de doenças genéticas, pois o defeito está presente em todas as suas células. Para essas pessoas talvez seja necessário o uso de células-tronco obtidas de embriões.