Cabe desnaturalizar sociologicamente o cotidiano como modo de vida. Eis, hoje em dia, uma urgência que transcende a sociologia. Pensar sociologicamente a aparente obviedade e a insignificância só à primeira vista individual de um modo de se relacionar com o tempo cuja marca é a repetição sequencial de maneiras de (inter)agir e se relacionar, de sentir e de pensar – tanto que sinônimos socialmente recorrentes do substantivo “cotidiano” são “rotina”, costume”, hábito” -, possui um inevitável alcance social, no atual momento histórico – pandêmico. Quem aprende a inserir epistemologicamente tal modo de vida naquilo que Florestan Fernandes de modo didático sintetizou como “teia de interações e relações sociais” – e que, justamente por isso, se expressa, como veremos, espacial e temporalmente através dos corpos humanos e das materialidades que os envolvem -, tem como reconhecer que o cotidiano é social e historicamente específico. Assim, a disciplina espera colaborar para uma compreensão “enraizada” da vida diária da qual somos produtos e produtores no Brasil do presente, onde ter um cotidiano se transformou em utopia. 

            Para tanto, a disciplina se estrutura em quatro eixos temáticos, após uma breve introdução para a apresentação do programa e a conceituação operacional das noções de sociologia e de cotidiano. No primeiro eixo, vale inquirir o que expressões culturais diversas do presente pandêmico e do passado (na música, na literatura, na sociologia no cinema, na arquitetura e no urbanismo) trazidas a público na Europa Ocidental, nos Estados Unidos e no Brasil em momentos diversos a partir da segunda metade do século XIX, revelam a respeito de quando e de como o cotidiano emergiu historicamente como problema social, nessas diferentes regiões do mundo. 

      Mas como explaná-lo sociologicamente? Os quatro eixos temáticos subsequentes da disciplina discorrerão sobre as principais vertentes teóricas e metodológicas que, na história da sociologia na Europa Ocidental, nos Estados Unidos e no Brasil, têm se dedicado a conceituar essa modalidade de vínculo social com o tempo – e assim, como veremos, simultaneamente com o espaço -, sendo que, notadamente em relação ao debate em nosso país -, o intuito de desnaturalização sociológica terá como apoiar-se ainda no confronto das respectivas conceituações com a realidade empírica local. De fato, virá à tona que a trajetória institucional da sociologia nesses cenários acadêmicos conta com autores que, contemplados retrospectivamente, se particularizam por ter elucidado, por ângulos teóricos simultaneamente diversos e originais, uma, outra ou ambas de duas facetas específicas do cotidiano: sua imediaticidade e sua historicidade. Eis o que permite conceber tais abordagens como sociologias do cotidiano, para além dos rótulos peculiares que cada autora ou autor atribui a sua própria perspectiva.