3. Variação e norma pedagógica


3.1 A 'Questão da Língua' no Brasil em meados do século XX


Bibliografia complementar:

Paixão de Sousa, Maria Clara. A morfologia de flexão no português do Brasil: ensaio sobre um discurso de perda. Estudos da Língua(gem). 2010;8:55-82. Disponível em: http://www.estudosdalinguagem.org/index.php/estudosdalinguagem/article/view/175  

Textos comentados no artigo:

Melo , Gladstone Chaves de. A Língua do Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 1975. 1ª ed.: 1946.
Silva Neto , Serafim. Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Presença, 1976. 1ª ed.: 1950.



3.1.1 O Paradigma verbal do 'Português Popular' em
"A língua do Brasil" (Melo, 1946) e "Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil" (Silva Neto, 1950)

Paradigma Verbal

3.1.2 Excertos de "A língua do Brasil" (Melo, 1946) e "Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil" (Silva Neto, 1950)

(grifos meus)

A grande maioria dos fatos que caracterizam os nossos falares regionais tem âmbito panbrasileiro [...]. Está neste caso o frisante fato, que representa o vestígio do crioulo colonial, do desaparecimento da flexão numérica por meio de –s: os livro, as mesa. O mesmo se dirá da extrema simplificação das formas verbais, outra cicatriz do primitivo aprendizado tosco da língua portuguesa. De modo geral, em todas as regiões, só se usam a 1ª e a 3ª pessoas; o plural da 1ª pessoa perde o –s: bamo, fazemo, fomo, e, nos proparoxítonos, perde a terminação –mos: nós ia, fosse, andava. [...] (Silva Neto, 1950, p. 135).


Descoberto o Brasil, para cá trouxeram os portugueses sua língua românica. Esta a princípio encontrou um forte rival no tupi, que, até o século XVIII , chegou em certas regiões a ser mais falado que o português. Depois, este reagiu e recuperou terreno à língua local. Mas então se deu um fenômeno de capital importância na história das línguas: os indivíduos que tinham o tupi como língua materna abandonaram-no e adotaram o novo idioma. Naturalmente não puderam dominar todo o mecanismo e todas as sutilezas deste; antes, aprenderam-no mal, desfigurando-o com uma série de defeitos provenientes dos antigos hábitos linguísticos. 
Agora, pelo tempo adiante as gerações sucessivas foram perdendo esses defeitos iniciais, porque não tiveram de deixar sua língua para adquirirem outra, e principalmente porque as constantes ondas linguísticas, depuradoras e retificadoras, formadas pelas levas de emigrantes que, dirigindo-se ao Brasil, ameaçavam despovoar o Reino, iam desfazendo as diferenças e planificando o aspecto linguístico brasileiro. 
O mesmo se deve dizer de outro elemento perturbador e praticamente concomitante: o negro africano. Também ele entrou a falar mal o português, desfigurando-o com a marca dos seus anteriores hábitos linguísticos. 
Ao estudar-se a influência do negro no português do Brasil, não se pode esquecer o papel dos feitores, e principalmente o das mucamas e mães pretas, que criavam e ensinava a falar os 'sinhozinhos'. 
Mas depois, também neste caso, apareceram os elementos unificadores: as ondas linguísticas oriundas da metrópole, o meio mais culto, as escolas, a língua escrita e o contacto com pessoas instruídas
Pois bem: o português, transplantado, sofreu um rude abalo. Passou por vicissitudes mil, decorrentes das condições históricas, sociais e geográficas da formação brasileira, sofreu a concorrência do tupi, foi altamente deturpado na boca de índios e mamelucos, e na boca dos pretos, ficou ilhado em muitos pontos do território nacional, que se imunizaram do bafejo civilizador. Mesmo depois que reagiu e se adaptou às novas condições de vida, mesmo depois que foi tonificado pelas injeções de sangue novo, as levas de emigrantes lusos que, sucessivas, buscavam a Colônia, mesmo depois que se pode acastelar na língua escrita, teve que ser usado por um povo que já tinha outra afetividade que não a portuguesa, outro espírito nacional, outra maneira de sentir e interpretar a vida. 
Pergunta-se: esta série de abalos que sofreu, sob os céus americanos, o velho idioma do Condado Portucalense determinou a formação de um tipo linguístico novo e diferente, ou apenas condicionou divergências acidentais que não permitem o reconhecimento – com honestidade intelectual – de uma 'língua brasileira', senão apenas o de um 'aspecto brasileiro' da língua portuguesa? Eis o problema (Melo , 1946, p. 17-18).

 

Como se vê, há muitas semelhanças entre o português dos índios e o português dos negros. Isto é, aliás, bem natural, pois tanto o índio quanto o negro, em atrasado estágio de civilização, aprenderam o português como língua de emergência, obrigados pela necessidade (Silva Neto , 1950, p. 36)

 

No português brasileiro não há, positivamente, influência de línguas africanas ou ameríndias. O que há é cicatrizes da tosca aprendizagem que da língua portuguesa, por causa de sua mísera condição social, fizeram os negros e os índios. (Silva Neto , 1950, p. 96).

 

Se negros e índios falavam, nos primeiros tempos da colônia, um português deturpado, simplificado ao máximo em suas formas, era em virtude da condição social ínfima e de mínima cultura. Pouco a pouco, no contato com os brancos e ao sopro das luzes das escolas, negros, índios e mestiços de toda a espécie foram aperfeiçoando a sua linguagem (Silva Neto, 1950, p. 91).

 

Porque a redução de flexões na fala popular brasileira representa um desvio e não o termo de uma evolução, ela pode ser corrigida. E é na verdade o que acontece. À medida que se eleva na escala social ou que recebe instrução, vai o negro, o mulato, o matuto ou o urbano atrasado falando melhor, flexionando os nomes e os verbos. Logo, à medida que se for disseminando, pelo nosso hinterland, a alfabetização, a instrução, as escolas, é de esperar que vão reaparecendo as flexões perdidas. Haverá um reajustamento linguístico, não por baixo, mas por cima (Melo , 1946, p. 103).