Para ler a Arte da Gramática... de Anchieta
O texto reproduzido abaixo me foi enviado por Ciro Leichsenring e tem relação direta com o que foi apresentado pela Maria Julia e abordado pela Regina no final da aula, a propósito da escrita de Anchieta na primeira edição impressa de sua Arte da Gramática. Sem dúvida, o autor da descrição do processo de transliteração do original impresso de Anchieta para o português contemporâneo revela o estranhamento que existe entre um sistema de escrita e outro, considerando que estamos a tratar de um mesmo idioma. Em primeiro lugar, devemos considerar que a língua é viva e tanto a ortografia (eleto. mais evidente) quanto a sintaxe se transformam com o tempo. Mas há um aspecto que nos interessa mais de perto e que está relacionado ao potencial de fixação da língua pela tipografia - como temos insistido nas últimas aulas. Notem que há da parte do tipógrafo o esforço de transliteração (ou seja, conversão) do manuscrito para o sistema tipográfico. Isso o obriga a criar uma série de sinais diacríticos que vão muito além do simples abecedário e do uso da pontuação. O tipógrafo deve reproduzir sinais fixados na tradição dos manuscritos, o que não é nada óbvio quando se trata de compor em caracteres móveis. É evidente que estas fórmulas não são exclusivas do texto da Arte da Gramática. Elas se fixaram nas línguas latinas, bastando observar outros textos contemporâneos, em francês, em espanhol e também em italiano. Mas também em outras línguas, para as quais ainda vemos a sobrevivência das ligaturas, de glifos herdados de outros alfabetos (por exemplo, o caso do cirílico na escrita língua romena) e assim por diante. É preciso ainda assinalar a dificuldade de transliterar as abreviaturas do manuscrito para o sistema tipográfico. Tudo isso daria um excelente exercício de transliteração, como certamente fizeram os indígenas guaranis nos livros produzidos nas Missões! É claro que o compositor da Arte da Gramática precisou superar outros percalços, por exemplo, ao transliterar as palavras em tupi do manuscrito para o impresso, preservando os seus sons... É o que vemos na explicação abaixo.
Para ler a Arte... A Arte... foi impressa em 1595. Apesar de estar redigida em um português bem semelhante ao de hoje em dia, a forma como esse português era representado em um texto impresso pode parecer-nos meio difícil de decifrar hoje. Eis algumas informações para ajudar a leitura: Raramente se acentuavam as palavras. Ainda se usavam letras duplicadas e grupos como th, ph, etc: grammatica, difficuldade, theologo. Usava-se muito a letra ſ, que se parece muito com um f, mas é na verdade uma forma alternativa (longa) da letra s minúscula. A forma longa costumava aparecer no início e no meio das palavras, enquanto que a forma curta quase que só se usava no fim, mas podia também ser usada no meio: Braſil, eſtes (estes), aſsi (assim). Não havia diferença entre u e v na escrita. A letra maiúscula era sempre V. A forma v se usava no início das palavras, e u nas outras posições: vltima vogal (última vogal), vſo (uso), vniuerſal (universal), ouuera (houvera), ſerue (serve). Não havia diferença entre i e j na escrita. A letra maiúscula era sempre I. Não se faz tanta confusão nas palavras portuguesas, mas sim nas palavras tupis: jtâ (itá), vjtecôbo (ûitekobo), adiectiuo (adjetivo). Muitas vezes o y tomava o lugar do i em ditongos e em outras posições: foy (foi), ey (hei), yxê (ixé). Não se usava hífen para separar o pronome do verbo: deyo (dei-o), vſaſe (usa-se), deſejandoo (desejando-o). Muitas vezes um m ou n se substituía por um til (~): eſtãdo (estando), algũa (alguma), cõiunctiuo (conjuntivo). A terminação verbal -am se escrevia -ão: acabão (acabam), vſão (usam). Como a Arte... foi escrita por um padre para ser usada por padres, há muitas expressões em latim: vt (ut = como), &c (et cætera = etcétera), in principio dictionis (no princípio da dicção/palavra), & ſic in reliquis temporibus vt ſupra (e assim nos tempos restantes, como acima), maxime (principalmente), abſolute (absolutamente), ſimpliciter (simplesmente), in fine (no fim), vel (ou), excipe (exceto), etc. A cedilha (¸) se chamava zeura. Antes de se citar uma letra ou palavra, escrevia-se uma vírgula: o qual não he, m. nem, n. (o qual não é "m" nem "n"). A letra h se acrescentava em algumas palavras e se retirava em outras: he (é), hũa (uma), auia (havia), oje (hoje). E há outros tantos detalhes, que não mencionarei. A título de exemplo, eis a "tradução" do primeiro parágrafo: Nesta lingoa do Braſil não ha f. l. s. z. rr. dobrado nem muta com liquida, vt cra, pra, &c. Em lugar do s. in principio, ou medio dictionis ſerue, ç. com zeura, vt Açô, çatâ. Nesta língua do Brasil não há f, l, s, z, rr nem (encontro de consoante) muda com (consoante) líquida, como cra, pra, etc. Em lugar do s no início ou no meio da palavra, serve ç, como açô [a-só], çatâ [s-atá]. A digitalização Procurei manter o texto fiel ao original, sem modernizar ou corrigir as grafias das palavras. Muitos erros podem ter sido incluídos durante o processo de digitalização, pelos quais peço desculpas. O processo foi concluído em 2002-06-14. Emerson José Silveira da Costa ("Ensjo" ou "Iperusununga").