3. O 'Português Arcaico' (1250-1500)


Textos fundamentais - sequência sugerida de leitura:

  1. Ilari e Basso (2009):
    Capítulo 1 ('Um pouco de história: origens e expansão do português') [p. 22-94]

  2. Matos e Silva (2006):
    Introdução [p. 13-48].

  3. Teyssier (2014[1982]):
    Capítulo 2 ('O galego-português') [p. 20-30]

  4. Castro (2004):
    Capítulo II ('Origens do português no quadro românico'), seção 6 ('Formação de um espaço nacional para a língua portuguesa') [p. 68-82];
    Capítulo III ('Português Antigo'), seção 7 ('Periodização') [p. 83-86]
Textos complementares pertinentes:

  • Castro (1991), Capítulo 3 [p. 66-161]

Além do texto complementar acima, segue válida a sugestão do material de apoio de leitura (manuais de fonética).


3.1 Da produção primitiva à corte de D. Duarte 


Leal Conselheiro

D. Duarte I. Leal conseelheiro, Livro da enssynança de bem cavalgar toda sela. Manuscrito; 1401. Facsímile digital, Bibliothèque nationale de France. Fl. 3r. Disponível em:  https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b60004002/f15.image


Quadro: Marcos históricos e ciclos da produção escrita no período medieval

Quadro produção escrita PA

"A produção frequente de documentos em português é conhecida a partir da segunda metade do séc. XIII: em 1255 começam a ser escritos em português alguns dos documentos saídos da chancelaria de Afonso III, embora uma parte se mantenha em latim, e é só em 1279, com D. Dinis, que se torna sistemático o uso do português como língua dos documentos emanados da corte, uso que progressivamente é imitado pelos restantes centros produtores". (…)

"Ou seja: na verdade é apenas nos dez últimos anos do reinado de Afonso III, e precedendo a sua oficialização no reinado seguinte, que se alarga e consolida o uso escrito da língua portuguesa nos documentos do governo, após experiências que têm de ser consideradas como esporádicas. Como, afinal, todas as outras experiências anteriores de que temos tido conhecimento". (Castro, 2004) 

"D. Dinis teve um longo reinado e uma chancelaria muito produtiva. Não dispomos de números absolutos que nos permitam apresentar os quantitativos de atos redigidos pela chancelaria deste soberano. O Livro II da sua chancelaria, já mencionado, arrolando atos sobremodo para os anos de 1291 a 1295, posto que com alguns diplomas de anos anteriores e posteriores, compila um total de 542 diplomas. Bernardo Sá Nogueira referenciou um corpo documental dionisino, nos livros de registo da chancelaria deste monarca, composto por 2950 atos. O mesmo autor contabilizou 1343 apresentações de clérigos em igrejas de padroado real para os anos de 1279 a 1321. No antigo cartório do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, hoje na Torre do Tombo, de todos os reis medievais portugueses, é D. Dinis o que mais se documenta em número de diplomas subsistentes". (Gomes, 2013)

"O reinado dionisino foi suficientemente longo para que o monarca português pudesse concretizar uma sequência de iniciativas e de actos políticos que permitiram fizar e institucionalizar alguns dos aspectos fundamentais do país nos 700 anos seguintes. Em termos de política externa há que destacar a assinatura do Tratado de Alcanices em 1279; em termos de política interna, o impulso dado a aspectos do desenvolvimento económico do reino, a criação dos Estudos Gerais em 1290, a nacionalização das Ordens militares, com a criação da Ordem de Cristo, o lançamento das bases de uma verdadeira administração interna contextualizada pela difusão crescente da influência do direito romano, que será factor funcamental para a estruturação do Estado e para o progressivo afastamento de uma configuração estritamente senhorial, como se tornará mais evidente no séc. XV". (...)

"Este movimento deve ser visto na sua sequência histórica. D. Afonso III seguira uma estratégia de domesticação da fidalguia, favorecendo uma nobreza de corte, submissa e fiel, aspecto com que de certeza se devem relacionar tanto o impulso dado ao cultivo da poesia galego-portuguesa, agora cada vez mais acolhida na corte do rei, ao invés do que sucedera até então, como a tradução para português da Demanda do Santo Graal, toda ela imbuída de dimensões doutrinais das quais a menor não terá sido certamente o exemplo da corte arturiana, onde o rei aparecia servido por uma aristocracia guerreira submissa. Mas o interessante é notar que, se em 1319 [?] o infante D. Afonso incuía no seu grupo de apoiadores elementos da fidalguia de corte, da segunda ou terceira nobreza e sobretudo filhos segundos ou bastardos, nomeadamente da área a norte do Mondego, D. Dinis aparece-nos buscando o apoio dos concelhos por um lado e, por outro, de alguns elementos de uma fidalguia menor, mas que tem a característica de se centrar na área de Lisboa".  (Osório, 1993)

Textos complementares citados:  

GOMES, Saul António. A chancelaria régia de D. Dinis: breves observações diplomáticas. In Fragmenta Historica:  História, Paleografia e Diplomática, Centro de Estudos Históticos/FCT, 2013.

OSÓRIO, Jorge A. D. Dinis: o rei, a língua, e o reino. Máthesis 2, 1993.


3.2 A questão da "elaboração da língua"


Duarte Nunes de Leão, Origens da Lingua Portuguesa, 1606:


“VI. A Língua que se hoje fala em Portugal donde teve origem,
e porque se chama Romance”

“Temos dito atrás, como pelas muitas e desvairadas gentes que a Espanha vieram povoar e negociar, estava a terra toda dividida em muitos reinos e senhorios, e assim havia muitas diferenças de linguagens e costumes. Pelo que vindo os Romanos a lançar de Espanha aos Cartagineses que ocupavam grande parte dela, foi-lhes fácil haver o universal senhorio de todos, e reduzir Espanha em forma de província como fizeram, dos quais como de vencedores não somente os espanhóis tomaram o jugo da obediência mas as leis, os costumes, e a língua Latina, que naqueles tempos se falou pura como em Roma, e no mesmo Lácio, até a vinda dos Vândalos, Alanos, Godos e Suevos, e outros bárbaros que aos Romanos sucederam, e corromperam a língua Latina com a sua, e a misturaram de muitos vocábulos assim seus como de outras nações bárbaras que consigo trouxeram, de que se veio fazer a língua que hoje falamos, que por ser língua que tem fundamentos da Romana, ainda que corrupta lhe chamamos hoje Romance. Desta introdução da língua Latina, que os Romanos fizeram em Espanha, e como de muitas nações e vários costumes, se vieram a conformar, e parecer tudo um povo de Romanos, é testemunha a mesma língua que hoje falamos, ainda que corrupta”. 

(Lião 1606:26, minha edição)


“Vindo pelos tempos, como é natural, haver mudança nos estados, e declinar o Império Romano, veio à Espanha a inundação dos Godos, Vândalos, e Sitingos, e de outras gentes bárbaras, que devastaram Itália, e as Gálias, e dominaram Espanha, e com sua bárbara língua corromperam a Latina, e a misturaram com a sua da maneira que se vê nos livros e escrituras antigas; que pelo tempo foi esta língua fazendo diferença nas Províncias de Espanha, segundo as gentes a vieram habitar. Depois desta barbária que se introduziu, veio a perdição de toda Espanha, que os Mouros assolaram, e destruíram, entre os quais ficaram os Espanhóis uns cativos, e outros tributários por partidos que de si fizeram, para lhes lavrarem as terras como seus ascrípticos, e inquilinos. E vivendo entre eles, corromperam ainda mais a língua meio Gótica e meio latina que falavam, tomando outros vocábulos dos Mouros, que ainda hoje nos duram. Depois deste cativeiro, vindo-se recuperar muitos lugares de poder dos Mouros, pelas relíquias dos Cristãos que da destruição dos Mouros escaparam nas terras altas de Viscaia, Astúrias e Galiza. E fazendo cabeças de alguns senhorios ficou aquela língua Gótica, que era comum a toda Espanha, fazendo alguma divisão e mudança entre si, cada um em sua região, segundo era a gente com que tratavam, como os de Catalunha que por àquela parte vir el Rei Pipino de França com os seus ficou naquela província sabor da língua Francesa, e se apartou lhes ficou notável diferença entre ela, e a língua de Castella, e das de Galiza e Portugal, as quais ambas eram antigamente quase uma mesma, nas palavras, e nos ditongos e pronunciação que as outras partes de Espanha não tem.

Da qual língua Galega a Portuguesa se avantajou tanto, quanto na cópia e na elegância dela vemos. O que se causou por em Portugal haver Reis, e corte que é a oficina onde os vocábulos se forjam, e pulem, e donde manam para outros homens, o que nunca houve em Galiza.

Era a língua Portuguesa na saída daquele cativeiro dos Mouros mui rude, e mui curta, & falta de palavras, e cousas, por o mísero estado, em que a terra estivera: o que lhe conveio tomar de outras gentes, como fez. Polo que sua meninice foi no tempo del Rei dom Afonso VI, de Castela, e no do Conde dom Henrique até o del Rei dom Dinis de Portugal que teve alguma policia, e foi o primeiro que pos as leis em ordem, e mandou fazer compilação delas, e compôs muitas cousas em metro à imitação dos Poetas Provençais, como se melhorou a língua Castelhana em tempo del Rei dom Afonso o sábio seu avô, que mandou escrever a crônica geral de Espanha, e compilar as sete partidas das leis de Castela, obra grave, e mui honrada, posto que rude nas palavras, como também mandou traladar muitos autores da língua latina na Castelhana.”

E assi se foram ornando ambas as línguas, Portuguesa e Castelhana até a policia em que agora estão.” 

(Lião, 1606:30-33; minha edição, meus grifos)




"Discute-se se o galego e o português fizeram caminho juntos durante muito ou pouco tempo. (...)

Como seria na Idade Média? Os trovadores - galegos, portugueses e castelhanos - escreviam todos na mesma língua, mas era uma língua artificial e não necessariamente a língua que cada um falava. Nessa língua literária, (...), não se observam traços que apontem para uma separação regional, mas dificilmente os poetas, ao falar, usariam dessa língua unificada. Pode ser que o galego e o português já estivessem a se separar.

De qualquer forma, a sua separação definitiva ocorreu no final do ciclo em exame, através de um episódio intercalar de elaboração da língua, processo coincidente e decerto relacionado com as grandes alterações sociais e políticas já referidas. (...)

Enquanto o centro-sul se torna cada vez mais influente, o norte de Portugal perde o estatuto de berço do reino e passa a ser visto como uma província distante. E a Galiza, com a qual tem as maiores afinidades, torna-se ainda mais distante. As transformações que o português então sofre afastam-no da matriz medieval galego-portuguesa (...).

Na soma dessas mudanças reconhece-se um processo de elaboração linguística, um acto de recusa das origens com o qual a língua portuguesa atinge o fim do seu período de formação e de crescimento, que precede um pouco o final da Idade Média". (Castro, 2004:86-87, grifo meu)


3.3 Resumo do "ciclo de formação da língua" (cf. Castro, 2004)

Ivo Castro afirma que a história da língua portuguesa é fundamentalmente marcada por sucessivos ciclos de expansão que refletem “a história da ocupação do território, a formação do estado e os grandes movimentos da nação”:

"O primeiro movimento a considerar pode ser apresentado como uma transplantação inicial da língua, que parte de sua área inicial na Galecia Magna para se derramar pelo resto do território europeu, onde se sobrepõe ao árabe que as populações reconquistadas falavam. O segundo movimento, igualmente para o sul, consiste em um salto para fora da Europa. Com as Descobertas, a língua instala-se em ilhas atlânticas desabitadas, nos litorais africano e asiático que ofereciam suporte às rotas marítimas, e ainda no litoral brasileiro".(...)

"Estes dois movimentos sucessivos de crescimento da língua portuguesa permitem-nos reconhecer a presença e a acção de dois ciclos evolutivos, separados por uma cesura no séc. XV:

a)  ciclo da Formação da Língua, que decorre entre os sécs. IX e XV na esteira da Reconquista do território dos árabes; os povos do norte transplantaram a sua língua para o sul, onde ela se transformou pelo contacto com a língua local e ganhou, a partir do séc. XV, ascendente sobre os dialectos do norte, tornando-se base de uma norma culta de características meridionais, que seria vista como a língua nacional;

b)  o segundo ciclo é o da Expansão da Língua: o período do séc. XV a inícios do séc. XVI é aquele em que a língua mais radicalmente se transfigura. Enquanto se reestruturava e consolidava dentro de portas, a língua portuguesa começa a expandir-se para fora da Europa, pelo que, a partir de então, é preciso distinguir entre português europeu e português extra-europeu.

O ciclo da Formação desenrola-se a partir da introdução de algumas mudanças muito extensas na língua falada no território inicial da Galécia Magna, língua que, entre os sécs. V-VII, era ainda uma variedade de latim oral. Simplificando, diremos que duas consoantes muito frequentes iniciam um processo de apagamento quando se encontram em posição intervocálica, o que teve como consequência que todas as palavras que as possuíam mudaram drasticamente de aspecto sonoro. (...) Estes dois fenómenos semelhantes produziram-se apenas na Galécia Magna e afectaram o latim aí falado, que passou assim a distinguir-se tanto do latim falado no centro da Península, que daria origem ao castelhano e ao leonês, como do latim falado a sul, na Lusitânia., a que, por respeito pela área em que ocorreu, se pode chamar galego-português. Essa diferença entre a língua da Galécia Magna e as suas vizinhas mais chegadas talvez tenham sido o acto de nascimento da nossa língua". 

(Castro, 2004:84-85).