2. O 'Português Arcaico' (das origens a 1250)


Textos fundamentais - sequência sugerida de leitura:

  1. Ilari e Basso (2009):
    Capítulo 1 ('Um pouco de história: origens e expansão do português') [p. 22-94]

  2. Matos e Silva (2006):
    Introdução [p. 13-48].

  3. Teyssier (2014[1982]):
    Capítulo 2 ('O galego-português') [p. 20-30]

  4. Castro (2004):
    Capítulo II ('Origens do português no quadro românico'), seção 6 ('Formação de um espaço nacional para a língua portuguesa') [p. 68-82];
    Capítulo III ('Português Antigo'), seção 7 ('Periodização') [p. 83-86]
Textos complementares pertinentes:

  • Castro (1991), Capítulo 3 [p. 66-161]

Além do texto complementar acima, segue válida a sugestão do material de apoio de leitura (manuais de fonética).


2. O 'Português Arcaico' (das origens a 1250) - Anotações


2.1 Formação de um espaço nacional para a língua portuguesa


2.1.1 Relembrando a história das ocupações na Península Ibérica


2.1.1.0 Resumo 'animado'

  

  
Vídeo: A Península Ibérica, -300 a 2015 - animação. Fonte: Villanueva, Fernando Díaz. Animación en mapas de la historia de España desde el año 300 antes de Cristo hasta la actualidad. Música: W. A. Mozart: Divertimento K131 by Kevin McLeod. Published under CC BY 3.0 license. Publicado em 28/12/2014. Disponível em https: // youtu.be/dQxTxCGyN3s


2.1.1.1 O ocidente setentrional: particularidades históricas da área originária do galego-português 

Galaecia

Figura: 'Camadas' na história do noroeste da Península Ibérica


2.1.1.2 O ocidente meridional: particularidades históricas da região centro-sul de Portugal


O Andaluz

Figura:  O Andaluz no século XI. Fonte: Mapa do al-Ândalus até meados do séc. XI (segundo M. Barrucand/A. Bednorz), em Ferreira, Manuel dos Santos da Cerveira Pinto. O Douro no Garb Al-Ândalus: a Região de Lamego durante a presença árabe. Tese de doutoramento, Universidade do Minho, 2004. http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/3001

Mapa-mundi de Al-Idrisi
Figura: Mapa-múndi de Al-Idrisi, ou Tabula Rogeriana (1154). Fonte: Wikimedia Commons, https://en.wikipedia.org/wiki/File:TabulaRogeriana_upside-down.jpg


Dinar, face Dinar, verso

Figura: Moeda “espanhola-andaluz” do século VIII (frente e verso). Fonte: “Dinar bilingüe, con el anverso en árabe y el reverso en latín”, Museu Prasa, Córdoba. https://numismaticamedieval.wordpress.com/category/monedas-hispanoarabes/ 


Transcrição dos dizeres na moeda:

Face

na borda:

FERITOSSOLIINSPANANXCI
(Soldo cunhado na Espanha no ano 98) 

(*98HD - 716 AD)

no centro:
estrela

Verso

na borda:

ضرب هذا الدينر بالأندلس سنة ثمان وتسعين
(Dinar cunhado em al-Andaluz no ano 98)
(Dinar cunhado em al-Andaluz no ano 98)

no centro:

سول الله     محمد ر  
(Maomé é o mensageiro de Deus)
(Maomé é o mensageiro de Deus)


poema de yussuf
Imagem: Poema de Yussuf, ou Poema de José - Exemplo de aljamia. Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes

http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/poema-de-jose--0/html/01972b58-82b2-11df-acc7-002185ce6064_2.htm

Transcrição (da mesma fonte):

Loamiento ad Alláh: el alto es e verdadero,
Honrado e complido, sennor dereiturero,
Franco e poderoso, ordenador sertero.
Grande es su poder, todo el mundo abarca;
Non se le encubre cosa que en el mundo nasca,
Siquiera en la mar ni en toda la comarca,
Ni en la tierra priera ni en la blanca. (...)

Exemplo de uma Jarcha

Yehuda Halevi (c. 1075-c.1140), Jarcha 4
(cf. Menéndez Pidal 1951:244):

Garid vos, ay yermaniellas,                              (Decid vosotras, ¡ay hermanillas!,
com' contener a mieu male                             ¡cómo resistir a mi pena!
sin el habib non vivréyu,                                 Sin el amigo no podré vivir;
advolarei demandari.                                       volaré en su busca)

(Menéndez Pidal, Ramón. Cantos románicos andalusíes: continuadores de una lírica latina vulgar. Boletín de la Real Academia Española, [s.l.], v. 94, n. 310, p. 445-530; 2015. [com fac-simile do Boletín de 1951]. Disponível em: http://revistas.rae.es/brae/article/view/87/145)

2.1.1.3 A formação do território ‘Português’ no contexto da 'Reconquista'


2.1.1.3.1 Etapas da 'Reconquista' Ibérica

Etapas da reconquista ibérica

Imagem: Fonte: EdMaps, https://www.edmaps.com/html/spain_and_portugal.html


2.1.1.3.2 Etapas da 'Reconquista' portuguesa


Etapas da 'reconquista' portuguesa (Teyssier)

Figura: Etapas da 'reconquista' portuguesa, segundo P. Teyssier. Fonte: Teyssier, 1982 (Mapa 2, p. 9).


2.1.1.3.3 Fundação do Reino de Portugal


Manifestis Probatum
Figura: Manifestis Probatum. Bula papal, Alexandre III, 1179. Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, PT-TT-BUL/16/20

Excerto:

Sabemos por evidentes sucessos que como bom filho e príncipe católico
tendes feito vários serviços à sacrossanta Igreja, vossa mãe,
 destruindo valorosamente os inimigos do nome cristão,
dilatando a fé católica por muitos trabalhos de guerra e empresas militares
[…]

Por isso nós concedemos à tua excelência e autoridade, e confirmamos por autoridade
o Reino de Portugal com a integridade das honras e a dignidade de Reino que aos reis pertence,
e também todas as terras que, com auxílio da graça celeste, arrebatares das mãos dos Sarracenos
[…].

(Tradução de Frei António Brandão, em Crónica de D. Afonso Henriques. Fonte: http://dgarq.gov.pt/files/2011/08/Bula-Manifestis-Probatum.pdf)


2.2 Do latim ao português: pontos introdutórios de fonética histórica


2.2.1 Do latim aos 'romances'


2.2.1.1 Principais mudanças fonéticas comuns aos ambientes românicos


  • Mudanças no acento tônico

    Latim clássico:

    sapere

    [sápere]

    ‘saborear, sentir o sabor’

     

     

     

     

    português:

    saber

    [sabér]

    ‘saber’, 'to know'

    castelhano:

    saber

    [sabér]

    francês:

    savoir

    [savóir]

    italiano:

    sapere

    [sapére]



  • Perda das oposições por quantidade (vogais)
    vogais tonicas lat port

  • 'Palatalização'

    a. palatalização das consoantes velares

palatalizacao velares
   Palatalização de /k/. Fonte: Ilari (1992:79)

b. surgimento de consoante palatal a partir de /i/ semivogal

lat. vulg.

sardo

rom.

it.

fr.

esp.

port.

iugu

juu

[j]

jug

[dƷ]

giogo

[dƷ]

joug

[Ʒ]

yugo

[j]

jugo

[Ʒ]

Adaptado de Ilari (1992:81)

2.2.1.2 Principais mudanças fonéticas comuns e caracterizadoras do romance ibérico


  • Mudanças no grupo consonantal <cl> medial
    cl medial
          Fonte: Teyssier (2014:13)

  • Mudanças no grupo consonantal <ct> medial
    ct medial
        Fonte: Teyssier (2014:13)


  • Mudanças nos grupos consonantais <cl>, <pl>, <fl> iniciais
    cl pl fl iniciais
         Fonte: Teyssier (2014:15)


2.2.2 Os romances ibéricos: as fronteiras norte/sul e as fronteiras ocidente/oriente 


Pontos mais importantes a debater:

  • Na dialetologia ibérica observam-se dois tipos principais de fronteiras dialetais: fronteiras que separam os dialetos ao longo de linhas marcadas do oriente para o ocidente da Península (ou seja, do leste para o oeste) e fronteiras que separam dialetos em camadas graduais do norte para o sul da Península:

    • As fronteiras latitudinais podem ser associadas a processos mais antigos de dialetação, ligados ao processo de romanização nas diferentes regiões. 
    • As fronteiras longitudinais podem ser associadas a processos posteriores de dialetação, ligados às subsequentes etapas de ocupação dos territórios ao sul de cada reino medieval, na chamada 'Reconquista' ibérica. 
    • Por conta dessas contingências históricas, podemos notar que as fronteiras dialetais latitudinais são mais marcadas, e correspondem, em larga medida, à divisão da Península em 'línguas nacionais'; em contraste, as fronteiras dialetais longitudinais podem ser mais graduais, e, em larga medida, têm o estatuto de fronteiras dialetais no interior de cada 'língua nacional'.

Distribución de idiomas en la Península. Fonte: Echeverría, L. Martín. Geografia de España. Labor: Barcelona; 1928. p. 134.

Imagem: Distribución de idiomas en la Península. Fonte: Echeverría, L. Martín. Geografia de España. Labor: Barcelona; 1928. p. 134.


    • Na dialetologia portuguesa, essas características da distribuição longitudinal/latitudinal das áreas dialetais se agudizam, de modo que a fronteira mais marcada separa os dialetos do 'galego-português' de norte a sul de modo a corresponder quase exatamente à fronteira nacional entre Portugal e o centro-oriente da Península (à exceção do extremo noroeste dessa área dialetal, que fica fora da fronteira nacional, pois corresponde ao território da Galícia, atual região autônoma da Espanha), e as fronteiras dialetais 'internas' se configuram como 'camadas' de norte a sul do território, correspondentes às diferentes etapas da 'Reconquista portuguesa' - ou seja, às diferentes etapas da ocupação do território ao sul do reino de Portugal original.


    2.2.3 Pontos relevantes na dialetologia portuguesa (uma introdução)


    2.2.3.1 Fronteiras mais importantes entre a área dialetal do galego-português e as demais áreas dialetais da Península


    - Supressão do /l/ e /n/ latinos intervocálicos 

    exs. (lat > port):
    malu > maufilu > fiodolore > dor, colore > cor,  
    coron> coroalun> lua, manu > mão 


    - Manutenção das vogais breves latinas sem ditongação ('fronteira da ditongação')

    exs (port  vs. esp):
    - terra (vs. tierra), pedra ( vs. piedra), dente (vs. diente)
    - cova (vs. cueva), morte (vs. muerte), nove (vs. nueve)

    Fronteira dos dialetos galego-portugueses
    Figura: Alguns traços fonéticos diferenciadores dos dialetos galego-portugueses.  Fonte: Cintra, Luís Filipe Lindley. Nova proposta de classificação dos dialectos Galego-portugueses. Boletim de Filologia, vol. XXII: 81-116; 1970. Edição digital do Instituto Camões disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/hlp/biblioteca/novaproposta.pdf ('Mapa 1', p.16)


    2.2.3.2 Fronteiras mais importantes no interior da áreas dialetal do galego-português


    Classificação dos dialetos galego-portugueses

    Figura: Classificação dos dialetos galego-portugueses.  Fonte: Cintra, Luís Filipe Lindley. Nova proposta de classificação dos dialectos Galego-portugueses. Boletim de Filologia, vol. XXII: 81-116; 1970. Edição digital do Instituto Camões disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/hlp/biblioteca/novaproposta.pdf ('Mapa 2', p.17)


    Exemplo de diferenciação dialetal importante no eixo norte-sul, na área dialetal do galego-português - as sibilantes

    Quadro: A pronúncia das sibilantes na área dialetal do galego-portuguêsAs sibilantes no galego-português


    Pronúncia das sibilantes, destacadas no Mapa 2 de Cintra (1970)

    Figura: Pronúncia das sibilantes, destacada no Mapa 2 de Cintra (1970).



    2.3 A produção "primitiva" em português


    2.3.1 "Essa titubeante invenção de escrever português": a Notícia de torto


    NT1

    Imagem: Fac-simile: Notícia de Torto. [c. 1214-1216?]. Fonte: Portugal, Torre do Tombo, Ordem de São Bento, Mosteiro do Salvador de Vairão, mç. 2, doc. 40. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, http://digitarq.arquivos.pt/details?id=1461698

    https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4637366/mod_book/chapter/21817/PT-TT-MSV-003-0002-00040_m0002.jpg

     

    Transcição e análise:
    cf. Notícia de Torto: Edição (Moodle do curso de Filologia Portuguesa)
    cf. Notícia de Torto: Comentário linguístico (Moodle do curso de Filologia Portuguesa)


    Ivo Castro,  (2004:22 e ss), meus grifos:

    "... embora na chancelaria real portuguesa ainda continuasse durante mais meio século a ser observado o costume de escrever em latim os documentos formais, destinados a assumir carácter oficial e a perdurar no tempo (costume quebrado no caso do testamento de 1214, por razões que os historiadores um dia encontrarão), já era uso, no início do séc. XIII, escrever em português certos textos de carácter efémero, tais como apontamentos, mensagens pessoais, rascunhos, minutas, que pela sua natureza muito poucas possibilidades tinham de sobreviver, ou de carácter informal, como a notícia, que  mesmo quando sobrevive é difícil de situar cronologicamente. Em tais exercícios se adestraram os escribas da casa real para escrever em português. Aqui abre-se uma perspectiva aliciante, que não tenho possibilidade de explorar neste trabalho: a caracterização da "ortografia individual" de cada escriba talvez permita vislumbrar a proveniência do seu aprendizado e determinar se aprenderam a escrever romance em ambientes de influência castelhana ou leonesa. (...)

    Um desses textos informais ou efémeros, contudo, chegou até nós. A Notícia de Torto tem sido considerada pela maioria dos autores uma minuta portuguesa de documento que, em forma limpa e final (mundum), seria escrita em latim. Por acidente histórico não explicado, foi a minuta que sobreviveu e não o produto final, se esse chegou a existir". (...)

     "... o escriba era mais um leitor que um profissional da escrita e não tinha, para todos os problemas, soluções gráficas adquiridas e enraizadas, ao contrário dos seus contemporâneos da chancelaria real. Deixava-se guiar pela análise que caso a caso ia fazendo do que ouvia, do que lhe era ditado.  Daí grande parte do seu interesse para o linguista, porque a espontaneidade e a hesitação da sua mão deixam entrever factos da língua oral que um escriba habitual e formal teria filtrado e que se tornam, assim, naqueles momentos raros em que vemos ‚falar um documento antigo. O seu recurso às grafias de /d[/, por exemplo, constitui um precioso testemunho de que este fonema ainda existia no português de inícios do séc. XIII"

    "Esta caracterização não  deveria  surpreender:  o escriba da  Notícia de Torto não trabalhava para o rei de Portugal, nem para um comendador da ordem do Templo, mas para um fidalgo arruinado do Minho,  Lourenço Fernandes da Cunha, que não possuía chancelaria, nem escriba decente ou profissional, mas apenas aquilo a que hoje chamamos uma ‚mão inábil. Essa titubeante invenção do escrever português, essa escrita não totalmente formada e adquirida, é fascinante em si mesma e, por contraste, põe em destaque quanto a prática dos copistas da corte era adquirida, longa e hábil"


    2.4 Um bom resumo deste ponto:


    "O ciclo da Formação [da língua portuguesa] desenrola-se a partir da introdução de algumas mudanças muito extensas na língua falada no território inicial da Galécia Magna, língua que, entre os sécs. V-VII, era ainda uma variedade de latim oral. Simplificando, diremos que duas consoantes muito frequentes iniciam um processo de apagamento quando se encontram em posição intervocálica, o que teve como consequência que todas as palavras que as possuíam mudaram drasticamente de aspecto sonoro. (...) Estes dois fenómenos semelhantes produziram-se apenas na Galécia Magna e afectaram o latim aí falado, que passou assim a distinguir-se tanto do latim falado no centro da Península, que daria origem ao castelhano e ao leonês, como do latim falado a sul, na Lusitânia., a que, por respeito pela área em que ocorreu, se pode chamar galego-português. Essa diferença entre a língua da Galécia Magna e as suas vizinhas mais chegadas talvez tenham sido o acto de nascimento da nossa língua". 

    (Castro, 2004:85).