Simon Schwartzman
Resenha de Richard M. Morse, O Espelho de Próspero. Publicado em Novos Estudos CEBRAP, 22, outubro de 1988, pp 185-192, como "O Espelho de Morse", e Novos Estudos CEBRAP vol 25, outubro de 1989 pp. 191-203. Incluído em A Redescoberta da Cultura, São Paulo. EDUSP, 1997.Próspero Morse se olha no espelho da América Ibérica, e pouco a pouco a imagem refletida vai entrando em foco. Por trás da nuvem espessa de estados nacionais frustrados, etnias e sociedades desgarradas, caudilhos grotescos e trágicos, insurreições que terminam em sangue e desespero, projetos abortados de modernização e industrialização, parece ser possível vislumbrar uma realidade mais sólida, uma verdade mais profunda, e, ao mesmo tempo, a razão do equívoco do espelho: a América Ibérica está desfocada porque ela se contempla no espelho da próspera América inglesa e, na busca inútil da imitação do outro, perde sua própria essência. Os latinos não percebem que o liberalismo, a democracia representativa, o racionalismo, o empirismo científico, o pragmatismo, todos estes ideais alardeados pelos ricos irmãos do Norte não só são incompatíveis com a realidade mais profunda da América Ibérica, como também marcam a decadência e a falta de sentido da própria sociedade capitalista e burguesa que os criou."Importantes executivos, decanos universitários, subsecretários e até mesmo presidente são traídos por uma pele facial manchada ou azulada, pelo cabelo quase imperceptivelmente tingido, por uma vitalidade tão semelhante à vida quanto a de um cadáver maquiado" (Richard Morse, O Espelho de Próspero, São Paulo, Editora Schwarcz, 1988, p. 126)."Eles estão convencidos que nós temos o segredo da vida" (dito por uma latinoamericana sobre a fascinação que ela exercia sobre os homens europeus e norteamericanos)
A turbulência da India desta vez não vem da invasão estrangeira ou da conquista, mas é gerada de dentro. A India não pode responder da forma antiga, pela volta ao arcaísmo. Suas instituições emprestadas funcionaram como instituições emprestadas; mas a India arcáica não tem substitutos para a imprensa, o parlamento e as cortes. A crise da India não é só política e econômica. É uma crise maior de uma antiga civilização ferida que finalmente está tomando consciência de suas inadequações, mas não encontra os meios intelectuais necessários para ir adiante(9).E, ao final:
Nos textos antigos os homens olhavam para o passado e falavam da atual Idade das Trevas; hoje eles olham para os dias de Gandhi e da luta contra os ingleses, e vêm tudo que ocorreu depois como um desvio, antes que uma evolução da história. Enquanto a India tratar de voltar a seu passado, ela não conquistará este passado, nem será por ele enriquecida. O passado só pode se conquistado, agora, pela pesquisa e scholarship, pela disciplina intelectual, e não pela via espiritual. O passado deve ser visto como morto; senão, o passado matará (p. 174).Não existe volta ao passado, nem sequer um passado para voltar, na India como na América Latina. Correndo de novo o risco de ser acusado de "positivista pombalino do século XVIII", ou de idealizar os Ph.D.'s com os heróis do mundo moderno, eu reafirmaria que existe uma agenda fundamental a ser cumprida na América Latina, em alguns países de forma mais dramática do que em outros, que recoloca as questões da educação em todos os níveis (popular, média, superior, continuada) e da ciência e tecnologia como uma das preocupações fundamentais. Não é possível participar de forma adequada no mundo de hoje, e principalmente no de amanhã, sem uma população minimamente capaz de conviver de forma ativa e produtiva com as novas formas de comunicação, produção e interação social que estão se generalizando. Esta agenda intelectual e cultural não substitui, mas é homóloga, à do estabelecimento de novas formas de organização e participação social e instituições políticas modernas, como os partidos, o parlamento, o poder judiciário e um serviço público competente. As tradições autoritárias de alto a baixo de nossas sociedades, o fracasso dos projetos modernizadores do passado, o vazio e a burocratização de nossa educação básica, o corporativismo e a baixa qualidade de nosso ensino superior, o provincianismo dos horizontes intelectuais de nossas elites, tudo isto torna nossos problemas extremamente difíceis, mas não permitem a postura cômoda de declarar que a agenda da modernidade já teve seu tempo, e que agora é chegada a hora de abandoná-la como lixo inútil. E tampouco que se diga, de quem se preocupa com estas questões, de ser um "ardente defensor do statu quo".
É a revolta contra a memorização e disciplina, contra as ideologias do sucesso e do poder, contra o excesso e a superficialidade dos conhecimentos que nos impingem nas escolas, contra o intelectualismo e a auto-suficiência dos literatos, contra a grande metrópole e o anti-natural, contra o materialismo e o ceticismo, contra o poder do dinheiro e do prestígio, contra a especialização e o mandonismo, contra o peso sufocante da tradição e o evolucionismo historicista... Além disto, existe uma profunda revolução intelectual dentro do mundo acadêmico que ainda não foi devidamente notada. A necessidade de síntese, sistema, visão de mundo, organização e juízos de valor é extraordinária. A matematização e a mecanização de toda a filosofia européia desde Galileu e Descartes é vista com crescente ceticismo... Nas disciplinas históricas e culturais, as pessoas se defendem contra a tirania dos conceitos evolutivos, contra as compilações e as avaliações críticas(10).Uma parte importante desta "revolução" foi a chamada "filosofia da vida", que, como tudo no ambiente acadêmico alemão daqueles anos, ia do mais sofisticado e complexo, como por exemplo em Dilthey, ao mais simplista e vulgar. Ringer descreve desta forma a "filosofia da vida", a partir do trabalho de Ludwig Klages, autor de uma obra alentada e já esquecida sobre "Geist como o inimigo da alma":
Em um sentido muito geral, a filosofia da vida era a doutrina segundo a qual a vida, em sua forma mais imediata, é a realidade primária do homem. Esta idéia podia ser interpretada de muitas formas diferentes. Ela podia ser tratada como verdade metafísica, em cujo caso liberdade, criatividade, "totalidade" na experiência, e coisas semelhantes, surgiam como as características mais gerais da realidade. Klages aparentemente defendia algumas destas teorias. Ele também se expandia a respeito de temas tais como a vivência, a compreensão, Einfühlung (empatia), e Anschauung (percepção, intuição), para sugerir uma bateria de maneiras superiores ao "meramente conceitual" para chegar à realidade imediata da vida. A 'experiência imediata ' de Dilthey adquiria as características de um procedimento místico na filosofia da vida. Na pedagogia, 'vivenciar' [experiencing] assumia as vezes o sentido de aprendizagem ativa, pela participação direta [acting out] em uma seqüencia de eventos e reações. Em um sentido mais amplo, o ato de vivenciar involvia a imaginação e a emoção do sujeito, e não somente seu intelecto. Tanto quanto "empatia" e "percepção", o conceito de vivência (Erleben) sugeria que as impressões individidas da experiência ingênua são menos enganosas, de muitas maneiras, do que o material que nos chega pelo filtro da abstração analítica e da classificação científica. Em algumas variedades da filosofia da vida, todo conhecimento conceitual e o próprio Geist eram descritos como obstáculos ou inimigos da vida" (p. 337)(11).Conforme relata Ringer, Troeltsch "se impressionava por esta 'revolução intelectual', mas não confiava totalmente nela. Preocupava-se com suas tendências nihilistas. Advertia quanto ao perigo de descartar 'os métodos críticos e exatos, o rigor do pensamento e da pesquisa, que haviam sido estabelecidos por várias gerações de estudiosos'. As alternativas que propunha, ligadas a uma tentantiva de reconstrução racional da cultura alemã, são demasiado complexas e historicamente datadas para serem descritas aqui. Mais atual, acredito, é a forma que o debate assumiu com Max Weber e um obscuro crítico e oponente, Ernst Krieck.
"Weber não hesitou em desafiar a grita geral contra a especialização. Nas condições modernas, dizia, era impossível fazer contribuições genuínas ao conhecimento sem pesquisas detalhadas em um campo delimitado de estudo. "Inspiração" (Eingabe) não era menos nem mais necessária no trabalho acadêmico do que em qualquer outra atividade; mas só poderia surgir como resultado do trabalho persistente. Intuições brilhantes eram de qualquer forma praticamente inúteis, a não ser que alguém fosse capaz de explorá-las e substanciá-las de forma metódica. (...) Ele se espantava com o culto da intuição e da 'experiência' (Erleben) imediatas. Estava cansado de ouvir que o scholar tinha que ter personalidade. Admitia que o artista poderia ter a esperança de criar coisas de valor permanente. Mas o pesquisador não poderia ter esta esperança; todas suas contribuições estavam destinadas a ser superadas mais cedo ou mais tarde. Pesquisar era simplesmente participar do processo de "intelectualização" que, por milhares de anos, vinha abrindo caminho contra as interpretações mágicas da realidade. Este processo parecia não ter fim, e suas conseqüências nem sempre eram agradáveis." (Ringer, p. 352).Resumindo a posição de Weber, Ringer ressalta sua militância nas questões políticas de seu tempo, e observa que, "ao propor a separação entre Wissenschaft e juízos de valor, Weber na realidade buscava limpar o terreno para políticas públicas mais progressistas. Ele parecia limitar o âmbito de competência do trabalho acadêmico, mas lhe reservava três importantes funções: confrontar os "fatos", pesar suas conseqüências, e avaliar a consistência interna das políticas públicas. Na prática, este programa reduzia muito pouco o escopo do discurso acadêmico e científico, seja em política, em ética ou em qualquer outro campo. Tudo o que excluía era a busca de valores últimos da filosofia cultural dos idealistas alemães. Weber não era tampouco um positivista, propriamente falando. Na atmosfera da revolução espiritual, suas recomendações metodológicas poderiam parecer vagamente cautelosas e ultrapassadas. Na realidade, ele de fato incluía as explorações mais grosseiras da falácia do sentido comum entre as ilusões de uma época já ultrapassada" (Ringer, p. 356).
A Alemanha tinha perdido seu sentido de grandeza. Não haviam idéias suficientemente fortes para guiá-la, e ela caía vítima da democracia e do marxismo. As grandes tradições haviam sido esquecidas; a sociedade se dissolvia em átomos; a nação tinha perdido sua alma; a crise cultural se aproximava. Como não havia espírito comunitário, os indivíduos se sentiam sem poder e isolados; prevalecia um fatalismo sem esperanças; a literatura era pobre, e a arte sem estilo. Um renascimento religioso poderia ser de alguma ajuda, mas não poderia se dar nas igrejas estabelecidas, que haviam se tornado totalmente decadentes. Uma espiritualidade esotérica também seria inútil, porque não poderia produzir aquele espírito de solidariedade nacional que era tão urgentemente necessário. Só uma religião nacional comum poderia produzir uma nova sensação de unidade moral e renovação de propósitos, elevando o estado acima do nível de uma máquina utilitária. (...)Não havia lugar para intelectuais desenraizados na nova sociedade de Krieck. Ele propunha desmantelar todo o establishment acadêmico, a não ser que ele pudesse justificar sua existência contribuindo para a vida espiritual da Nação. A pose da objetividade, a recusa em emitir juízos de valor, pareciam para ele fraquezas e vícios. A vida acadêmica alemã havia se transformado em um mecanismo sem sentido, preocupado somente em se perpetuar a si mesmo. Excessivamente especializada e esotérica, era uma espécie de sinecura para uma clique cansada de pesquisadores. Seus métodos, da mesma forma, eram irrecuperavelmente estéreis. O historicismo tinha sido fatal para as ciências sociais, impedindo que o passado influenciasse o presente. Um racionalismo empobrecido havia se espalhado das ciências naturais para as humanidades. Quando os economistas declaravam que não fariam julgamentos de valor, eles entregavam o futuro de seu país aos políticos dos partidos. Na filosofia, o livre arbítrio era consistentemente desenfatizado, como que pedindo aos alemães que se resignassem à impotência nacional.
Em princípio, os mandarins tinham tanto desprezo pelos demagogos nacionalistas quanto pelos parlamentaristas e líderes partidários do liberalismo democrático. Tudo que eles diziam sobre Geist e sobre política, eles o diziam como intelectuais, como porta-vozes da minoria dos homens cultos, e não como representantes dos interesses industriais ou agrários, e certamente não como propagandistas das políticas de massas do nacional socialismo. Não tomar isto em consideração é não entender nada de toda a intenção e as tendências das ideologias dos mandarins.E no entanto, depois de tomarmos em conta todas as sutís diferenças de intenção, todos os diferentes níveis de vulgaridade intelectual, e todas as nuances de opinião baseadas em diferenças de classe e status, permanece ainda uma similaridade residual entre os pontos de vista dos professores e dos estudantes nas universidades alemãs. O 'idealismo' dos movimentos chauvinistas e volkish acompanharam o idealismo dos mandarins como um eco ligeiramente distorcido; a anti-modernidade do Geist projetava sua sombra na anti-modernidade do Volk. Insistir que não havia nenhuma conexão entre os dois seria dizer que professores não influenciam seus alunos. Os mandarins seriam os últimos a aceitar tal julgamento" (Ringer, p. 252).