A Redescoberta da Cultura

O Espelho de Morse

Simon Schwartzman

Resenha de Richard M. Morse, O Espelho de Próspero. Publicado em Novos Estudos CEBRAP, 22, outubro de 1988, pp 185-192, como "O Espelho de Morse", e Novos Estudos CEBRAP vol 25, outubro de 1989 pp. 191-203. Incluído em A Redescoberta da Cultura, São Paulo. EDUSP, 1997.
"Importantes executivos, decanos universitários, subsecretários e até mesmo presidente são traídos por uma pele facial manchada ou azulada, pelo cabelo quase imperceptivelmente tingido, por uma vitalidade tão semelhante à vida quanto a de um cadáver maquiado" (Richard Morse, O Espelho de Próspero, São Paulo, Editora Schwarcz, 1988, p. 126).

"Eles estão convencidos que nós temos o segredo da vida" (dito por uma latinoamericana sobre a fascinação que ela exercia sobre os homens europeus e norteamericanos)

Próspero Morse se olha no espelho da América Ibérica, e pouco a pouco a imagem refletida vai entrando em foco. Por trás da nuvem espessa de estados nacionais frustrados, etnias e sociedades desgarradas, caudilhos grotescos e trágicos, insurreições que terminam em sangue e desespero, projetos abortados de modernização e industrialização, parece ser possível vislumbrar uma realidade mais sólida, uma verdade mais profunda, e, ao mesmo tempo, a razão do equívoco do espelho: a América Ibérica está desfocada porque ela se contempla no espelho da próspera América inglesa e, na busca inútil da imitação do outro, perde sua própria essência. Os latinos não percebem que o liberalismo, a democracia representativa, o racionalismo, o empirismo científico, o pragmatismo, todos estes ideais alardeados pelos ricos irmãos do Norte não só são incompatíveis com a realidade mais profunda da América Ibérica, como também marcam a decadência e a falta de sentido da própria sociedade capitalista e burguesa que os criou.

Se os latinos olhassem melhor, no entanto, talvez vissem que existe um outra imagem do mundo próspero, a imagem daqueles que, como Morse, se desesperam e conseguem até zombar das aflições e mesquinharias de seus compatriotas, de sua obsessão com as coisas miúdas e materiais, e transcender sua falta de sentido histórico, seu desprezo pelas questões de espírito e sua aridez. Eles talvez se espantassem ao perceber que este outro próspero encontra sua redenção na contemplação do mundo latino, ou mais precisamente, na busca quase heróica de sua essência perdida. É na tradição ibérica, nos diz Morse, pela sua fidelidade à busca de uma visão abrangente e unificadora do mundo, pela crença profunda, mesmo que inconsciente, em uma realidade social que transcende o indivíduo e é mais que o somatório dos interesses individuais e suas servidões, que se poderia encontrar uma resposta adequada à crise moral e existencial do mundo anglo-saxão, e, por reflexo, da América Latina. Não haveria, no entanto, razões para espanto, porque disto se trata, afinal, no jogo de espelhos: de buscar constituir a própria imagem na contemplação do outro, e dar ao outro, ao mesmo tempo, a ilusão de que, porque ele se percebe no primeiro, ele também existe.

É fácil deixar-se fascinar pela inteligência, erudição, elegância e agudeza deste livro, fruto de um trabalho de scholarship dificilmente encontrável fora dos circuitos acadêmicos do Norte. É difícil também não deixar-se seduzir pela mensagem que nos transmite este espelho, que confirma aquilo que sempre pensamos, ou ansiamos, no recôndito de nossas almas: apesar de nossa pobreza, de nossas tragédias, de nossos horizontes truncados, e da riqueza e segurança de si que "eles" exibem todo o tempo, nós somos superiores, temos o segredo da vida e do futuro. Agora, finalmente, eles reconhecem. Não importa que toda a evidência empírica, toda a vivência do dia a dia, sugiram o contrário; que é o empírico, afinal, senão o aspecto mais superficial da realidade, "um mosquito" que pode até nos ser inacessível e nos importunar, mas que é indigno do "rolo compressor" de nossa atenção (p.115)?

E no entanto, é preciso não cair na tentação deste jogo de espelhos traiçoeiro, e dizer, com todas as letras, de que se trata de um livro profundamente equivocado e potencialmente danoso em suas implicações. Não é uma tarefa fácil, para quem não dispõe da erudição e da facilidade expressiva de Morse. Mas não é uma tarefa impossível, e acredito que deve ser tentada.

O primeiro movimento do Espelho de Próspero é a pré-história das Américas, quando Morse trata, em grandes pinceladas, de construir uma visão idealizada da "escolha" política espanhola na constituição do que ele denomina de "Grande Desígnio Ocidental", um projeto milenar hegeliano cujo sentido profundo caberia ao historiador decifrar. Este "grande desígnio" consistiria na liberação das forças da "ciência" e da "consciência" - do conhecimento empírico e do conhecimento ético e filosófico - para a constituição do mundo moderno. A virtude hispânica teria consistido, essencialmente, em sua capacidade em manter-se fiel à noção medieval de um Estado vinculado à Igreja e, por isto, dotado de conteúdo moral e ético, e que servia como ponto de referência externo e firme para os indivíduos. Traços que hoje seriam usualmente considerados totalitários são recuperados com sinais positivos. As universidades eram integradas aos propósitos gerais do Estado; o humanismo castelhano era nacionalista e monárquico; a incorporação do tomismo era um sinal de modernidade do Estado espanhol, abrindo o campo para a especulação e a controvérsia na filosofia política, moral e natural (p. 43). Dentro de seus limites, esta teria sido uma sociedade livre, tolerante e progressista, e mesmo a tristemente famosa Inquisição teria tido "conotação muito menos negativa" (p. 38) do que aquela provocada pela liberação das forças do mercado na Inglaterra. Mais tarde, os espanhóis - como também os portugueses - tratariam de transpor para a América a preocupação com a implantação de uma ordem política transcendente aos indivíduos, fundada na ética e na religião, preocupação que não teria como existir ao Norte, dada a opção individualista, subjetivista e contratualista que caracterizou a "escolha" inglesa.

Não importa que a realidade ibérica tivesse sido menos harmônica, que a Inquisição não tivesse nada de benigna para suas vítimas, que as civilizações ameríndias tivessem sido exterminadas, e que o homem comum daqueles anos não compartilhasse, a não ser pelo terror ou pela subserviência, os valores que compunham a justificação doutrinária do estado despótico. Os ingleses não eram melhores, e a realidade empírica, de qualquer forma, é irrelevante: "o que está em jogo", diz Morse, "são os princípios organizadores do corpo político, não os resultados: uma sociedade baseada no pacto [a inglesa] em contraste com uma sociedade orgânica, um princípio nivelador ou individualista em contraste com um princípio arquitetônico" (p. 49-50). Morse não esconde sua simpatia pela cultura política baseada no princípio arquitetônico, na hierarquia, na existência de uma Gemeinschaft que precede aos indivíduos e lhes dá identidade e pertencimento, em contraste com as alienações e o vazio das sociedades industrializadas do norte, descritas através de antigos textos mais pessimistas (e hoje já bastante superados) de Horkheimer e Adorno. Nem o percurso trágico seguido pela Alemanha da Gemeinschaft nacionalista ao nazismo, nem a ressurreição macabra dos princípios integristas espanhóis no regime franquista (a história se refazendo em tragédia), nem a transformação do hegelianismo marxista em stalinismo, parecem ser suficientes para colocar em dúvida esta nostalgia pela totalidade e pelo transcendente.

Seria um equívoco e uma injustiça, no entanto, identificar a Morse com os tradicionalistas da "Tradição, Família e Propriedade", para os quais o mundo teria entrado em decadência com a revolução industrial e científica, e só voltaria a se redimir com a restauração da ordem medieval. Ele não para no tempo, e em "história", a segunda parte do livro, ele examina como o projeto civilizatório espanhol se desmonta com a independência dos países latinoamericanos, e como este continente lida com as três grandes influências culturais que lhe chegam do Norte, o liberalismo, a democracia política e o marxismo.

A crise, na realidade, já se iniciara antes, na dificuldade que teriam tido os espanhóis em conciliar os princípios de uma ordem política arquitetônica e fundada na ética cristã com os imperativos da política quotidiana, onde prevalece a virtu maquiavélica e a razão de estado. A acrobacia requerida para esta conciliação explicaria a constituição da "monarquia barroca" espanhola no século XVIII; com a independência das colônias, só restariam os escombros do edifício, e o maquiavelismo oportunista, liberado, correria solto, desprovido de qualquer sustentação moral. Os novos países hispanoamericanos poderiam absorver, como absorveram, algumas das idéias e mecanismos do liberalismo econômico, assim como alguns dos princípios formais da organização política democrática; mas jamais os incorporariam como valores, como fundamentos éticos de sua constituição como nação. Havia, certamente, razões poderosas de ordem econômica e social que dificultavam a incorporação destas modalidades de organização social, a começar pela heterogeneidade étnica das populações, e incluindo os padrões de colonização e organização da atividade econômica (fatores, diga-se de passagem, que estiveram também presentes, e com conseqüências semelhantes, nas colônias inglesas ao sul da América do Norte e no Caribe). Para Morse, porém, o maior impedimento era o cultural, a barreira que a tradição da "dialética entre cálculo do poder e bem comum" interpunha à emergência da nova dialética entre liberdade e ordem (p. 89). Com o agravante de que, desfeito o edifício imperial, a antiga sociedade hierarquizada, integrada e comunitária só existia agora no inconsciente coletivo, ressurgindo em explosões como a Guerra de Canudos, na palavra da mulher brasileira do interior que ainda achava que Cabral era o presidente do Brasil, ou, finalmente, na intuição genial do marxista Mariátegui e dos escritores do realismo fantástico latinoamericanos, que teriam o dom de, pela intuição e a experiência estética, entrar em contato direto com a alma profunda de nossa latinidade.

Chama a atenção, nesta versão das coisas, a ausência de uma reflexão mais aprofundada sobre algumas das grandes contradições que marcaram o desenvolvimento de nossos países, e que acredito que devam fazer parte de qualquer interpretação efetivamente dialética de sua formação política e ideológica. A primeira é a da tensão secular entre Igreja e Estado, que atingiu seu clímax no período colonial com a expulsão dos jesuítas dos impérios ibéricos, no século XIX com a questão religiosa no Brasil, e no século XX com o anti-clericalismo virulento da revolução mexicana. O estado teocrático idealizado pelo pensamento conservador provavelmente nunca existiu, quando não seja pelo fato, denunciado por Marx na "Questão Judáica", de que "o chamado estado Cristão é um estado imperfeito, para qual o cristianismo serve como suplemento e santificação de sua imperfeição. Assim, a religião se torna, necessariamente, um de seus meios; este é, pois, um estado hipócrita"(1). Duas conseqüências importantes decorrem desta hipocrisia congênita da religião estatizada. A primeira é que, usada como instrumento de legitimação e controle social, a religião não desenvolve sua potencialidade como fundamentação efetiva de uma ética do comportamento quotidiano, e contribui para a manutenção de mentalidades que oscilam entre o terror da punição e o gozo irresponsável dos pequenos e clandestinos pecados, sem jamais assumirem valores alternativos que lhes sejam próprios. Isto explica, sem dúvida, o solo fértil que a América Latina tem sido para as religiões fundamentalistas, que oferecem a alternativa de uma ética para a vida quotidiana, o mesmo valendo para o revivalismo católico das últimas décadas como teologia da libertação. A segunda dimensão da dialética Igreja-Estado tem sido o desenvolvimento de uma liderança política leiga e iluminista no mundo hispano-americano, que, em diversos momentos, expulsou os jesuítas, colocou D. Vital na cadeia, e proibiu aos padres mexicanos de andarem de batina. Não há dúvida que estas reações ao estado clerical nunca chegaram a constituir uma ordem social semelhante à do Norte ou à dos países europeus, mas não acredito que elas possam ser vistas como, simplesmente, frustradas, ou movimentos que, "no fundo", buscam uma volta à Gemeinschaft perdida da sociedade integral. Parte da dificuldade em sair desta antinomia vem do fato de que freqüentemente nos esquecemos (e Morse nos induz a isto) que a Europa continental representa uma alternativa ao "grande desígnio ocidental" que não se reduz à experiência anglo-saxã, e que sempre teve uma influência muito maior sobre a América Latina do que a inglesa ou norte-americana. O que a Europa continental tem de significativo é que, lá, o conceito de Estado nunca chegou a desaparecer, a ordem política e econômica jamais deixou-se dissolver integralmente no jogo imediatista das conveniências individuais, e a história esteve sempre presente - mas com o pano de fundo clerical definitivamente expurgado ou posto sob controle pela herança da Reforma. A busca de uma alternativa "européia", muito mais do que anglo-americana, tem sido desde o início um elemento constitutivo da cultura política da América Latina, e um de seus elementos dinâmicos centrais.

A segunda contradição que marca muitos países da América Latina, e principalmente o Brasil, é entre suas estruturas burocrático-patrimoniais e a alternativa racional-legal de modernização política, que procurei dramatizar, no caso brasileiro, com o contraste entre São Paulo e o Estado Nacional(2). É uma contradição que antecede a expansão do café, tendo suas origens no próprio padrão contraditório de colonização estabelecido pelos portugueses no nosso continente, que abria espaço para uma sociedade de base contratual; e que se consolidou e se expandiu com a industrialização e o surto migratório deste século, freqüentemente em conflito com o centro hierarquizado. Esta antinomia faz parte indiscutível da cultura política brasileira, e como tal tem sido objeto de uma extensa reflexão na historiografia e no pensamento político do país, sem, no entanto, chegar a comover a um dos principais historiadores da metrópole paulista. O relativo fracasso político e ideológico da alternativa racional-legal na história brasileira, que parece reafirmar-se com intensidade na Assembléia Constituinte de 1988, não significa que esta alternativa não continue presente, tanto na vida política quanto no mundo das representações ideológicas, expressas, tanto uma quanto a outra, no contraste cada vez mais forte entre o dinamismo da sociedade moderna paulista e "sua licenciosa rival, o Rio de Janeiro" (p. 136).

O que Morse ressalta sobre São Paulo, em sua discussão de Mário de Andrade, no entanto, não é o contraste, mas a semelhança com o Rio de Janeiro, e a exorcização andradeana da nascente burguesia paulista, "personagens farsescos e secundários, sem penetração hegemônica no mundo social" (p. 136). Por entrar em contato com o autêntico e vivo da realidade paulista, com sua natureza ainda misteriosa, não anestesiada, Mário de Andrade seria o precursor, não de uma literatura moderna e urbana, que a América Latina nunca chegou a ter, mas do realismo mágico que, saltando os obstáculos do pensamento pretensamente racional e "científico", tocaria diretamente a essência mais profunda da cultura hispanoamericana, mantida latente no inconsciente coletivo desde a decadência do império colonial.

Mais farsescos e secundários do que os burgueses são, para Morse, os pretensos intelectuais do sul que tratam de macaquear as decadentes universidades do norte, e desenvolver, pela via da profissionalização acadêmica, um conhecimento mais aprofundado e rico de suas realidades. A condenação à morte dos cientistas sociais latinoamericanos, suas instituições, suas pesquisas, seus dados, suas metodologias empíricas e comparadas, seus congressos acadêmicos e revistas científicas, não decorre da simples inautenticidade da cópia, mas da própria inadequação do modelo que se trata, inutilmente, de implantar, dada a decadência que Morse percebe no ambiente acadêmico de seu país(3). Se em Mariátegui as sensibilidades estética e científica ainda estavam unidas, elas se cindiriam completamente a partir então, e só aos poetas, romancistas e artistas restaria a tarefa de expressar seu mundo "como centro e não como periferia" (p. 137). A eles e, talvez, a uns poucos intelectuais que, aqui e lá, conseguem transcender a mesmice da burocratização e da banalidade da vida acadêmica e entrar em contato com a profundidade do pensamento filosófico e a sensibilidade da experiência estética, e, assim, vivenciar diretamente a essência de sua civilização superior.

A valorização que faz Morse do pensamento marxista e revolucionário de Mariátegui poderia induzir à idéia de que sua proposta é, afinal, mais progressista do que estes comentários sugerem. O que Morse valoriza em Mariátegui, no entanto, é a dimensão mitológica e soreliana de suas teses, a tentativa de fundar um populismo místico baseado no apelo direto a um "direito natural normativo" que se vincularia às fontes históricas mais profundas e inconscientes da tradição hispânica, a esta altura impregnado, não se sabe bem como, por um forte componente indígena, e tendo sua barroca arquitetura reduzida ao chão de uma comunidade rousseauniana. É claro que este caminho não serve para países como Brasil, México ou Argentina, que já avançaram demais na rota da incorporação bastarda dos modelos do Norte; mas ele se ajustaria como uma luva aos países pequenos "com regimes brutais e instituições imprestáveis", que seriam, por isto mesmo, aqueles onde os ideais rousseaunianos de Mariátegui têm maior chance de se desenvolver, levando, ao mesclar-se com a cultura política ibérica, à plena realização do Grande Desígnio Ocidental que o Norte já não pode mais pretender (p. 111). Em outras palavras, quanto pior, melhor.

Há que dizer que o jogo de espelhos que nos propõe Morse, apesar de brilhante e sedutor, é tão ilusório quanto qualquer outro. É claro que existem problemas graves nas sociedades ocidentais, vinculados, entre outras coisas, ao esgotamento dos valores evolucionistas do iluminismo, ao crescimento descontrolado do conhecimento como técnica e à cultura de massas.. As críticas e denúncias dos textos frankfurtianos mais antigos às sociedades ocidentais, no entanto, pecavam pela generalização excessiva, pela incapacidade de perceber a potencialidade de inovação e mudança que estas sociedades possuem, e, acima de tudo, pelo irracionalismo e elitismo que apresentavam como alternativas implícitas ou explícitas à suposta vulgaridade e pobreza mental do mundo burguês, e que também perpassa o Espelho de Próspero(4). Talvez seja necessário tomar distância de Washington para perceber que, como um todo, estas sociedades ainda preservam um repertório de criatividade, pluralismo e capacidade de compromisso moral e ético incomparáveis, por exemplo, com o provincianismo e corporativismo sem horizontes que assolam a América Latina, com o esgotamento precoce a que chegaram os regimes socialistas, ou com os horrores que presenciamos como decorrência dos novos fundamentalismos. É um dinamismo que se funda no pluralismo, que faz com que os processos de massificação sejam compensados pelo surgimento constante de novos grupos capazes de refletir criticamente sobre si mesmos e suas sociedades, sem comprometer, e freqüentemente consolidando, sua capacidade de manter e expandir a qualidade de vida para suas populações, e preservar os mecanismos institucionais que asseguram as liberdades e os direitos individuais. O desenvolvimento do conhecimento técnico e científico, apoiado em sistemas educacionais de massas, tem significado não só a garantia do padrão de vida das pessoas, e o gradual controle da agressão ao meio ambiente, como um processo efetivo de democratização do saber. Tudo isto, a começar pelo controle das doenças e da fome, passando pela monotonia do igualitarismo democrático, e culminando na produção em massa de Ph.D.'s, poucos dos quais (mas na realidade não tão poucos) com o brilho e o poder iconoclástico de Richard Morse, pode parecer inútil e moribundo para quem busca vivências mais intensas. Para nós, porém, que ainda não chegamos perto destas conquistas, talvez não seja aconselhável instaurarmos desde já nossa revolução cultural, buscando o contato direto com as massas (cuja contrapartida, de Sorel a Mao, é culto ao Chefe)(5) e renunciando de vez ao racionalismo e às pesquisas sociais, fechando nossas universidades e programas de pós-graduação, desmantelando nossas indústrias incipientes, desmontando nossos precários sistemas democráticos e seus nascentes partidos modernos, e colocando toda nossa esperança na última versão do milenarismo soreliano que nos bata à porta, estimulado e legitimado, quem sabe, pela intuição genial de intelectuais criativos do norte, em nome do reencontro de nossa essência milenar perdida.

O futuro próspero da América Latina, se existir, dificilmente estará nos senderos luminosos ou em outros movimentos milenaristas que surgem nas regiões mais atrasadas ou sob os governos mais tiranos do continente, e cuja pureza e contato imediato com a "essência" ameríndia geralmente só existe para quem os contempla de longe. Ele depende, para ser construído, do encaminhamento de um processo histórico que está sendo forjado por homens e mulheres de carne e osso, onde se busca a resolução adequada das contradições que hoje vivemos entre as servidões da herança colonial e periférica e os esforços de abrir lugar para a racionalidade e a modernidade. Ele deverá incluir, necessariamente, valores comunitários, processos de reafirmação étnica, religiosa, lingüística e regional, heranças hispânica, africanas, indígenas e européias, em uma realidade pluralista que não tem por que ser incompatível com os valores iluministas e os que venham a emergir em seu lugar. Não é um caminho fácil. Basta olhar com olhos abertos para o resto do mundo para termos a certeza de não temos a chave secreta do futuro, e que as próximas décadas não serão, ainda, da América Latina. Mas ainda é possível manter a esperança, e não ser alijados de todo para limbo da história, se conseguirmos manter de pé nossos compromissos com os valores iluministas e com o uso da razão, sem sucumbir ao canto de sereia da contemplação estética de nossos umbigos.

* * *

A resposta de Richard More a esta crítica(6), tanto quanto o próprio livro, refletem uma preocupação que todos compartimos, que é a da possível incompatibilidade entre uma agenda de modernidade e o que se poderia denominar, para usar alguma expressão, de "tradições culturais latinoamericanas". A "questão cultural", que no passado vinha envolta em especulações mais ou menos brilhantes sobre "caráter nacional", "identidade cultural" ou "personalidade básica" de povos e sociedades, cobrou nova notoriedade com o aparente fracasso dos projetos modernizadores e democratizantes da maior parte dos países do terceiro mundo e o ressurgimento do nacionalismo em todas as suas formas, assim como do novo fundamentalismo islâmico. Em um primeiro momento, esta preocupação fazia parte de uma pergunta mal respondida sobre a capacidade de determinadas sociedades em incorporar de maneira adequada as instituições e valores das sociedades ocidentais. Depois, ela evoluiu para um questionamento destas instituições e valores: se o ocidente não é nenhuma maravilha, porque querer que todos os povos se assemelhem a ele? Será que outras sociedades e culturas não apresentariam, ainda que perdidas e dormentes, formas culturais superiores, ou de qualquer forma distintas, das ocidentais?

A redescoberta da questão cultural traz uma contribuição benéfica para as ciências sociais, ao questionar o etnocentrismo ocidental que as caracterizam em grande parte, e chama a atenção, também, para o fato de que ainda não sabemos como lidar com esta questão de forma realmente satisfatória, abrindo assim novos horizontes para a pesquisa, e uma nova fronteira para a teoria. Ela traz também, no entanto, velhos equívocos que pareciam haver sido sepultados nas últimas décadas: o do "etnocentrismo às avessas", que começa pelo reconhecimento e valorização das diferenças culturais, e pode terminar com noções como as de que talvez não tenha sentido, por exemplo, pretender que os países latinoamericanos queiram se modernizar e sejam democráticos, dada sua tradição e cultura autoritárias; e a ressurreição dos velhos fantasmas da identidade e do caráter nacional, acompanhados de toda sua parafernália anti-intelectual, irracionalista e freqüentemente totalitária. O que começa com um gesto de genuíno respeito e reconhecimento da cultura alheia (veja como estes índios têm uma cultura tão rica e autêntica, superior à nossa!) termina com uma atitude de discriminação (só são bons índios os que não tentam imitar os brancos)(7).

Morse discute a questão da tradição vs. modernidade, em sua resposta, ao se perguntar sobre os eventuais substitutos, na América Latina, da reforma protestante e do movimento operário, elementos centrais na constituição da cultura racionalista e democrática européias, e inclusive na universalização da educação básica no velho continente. Ele assinala que estes movimentos não chegaram a ter impacto similar na região, o que é verdade, apesar da óbvia importância das tradições sindicais da Argentina, Chile, México e São Paulo, que ele não chega a considerar. O fato, de qualquer forma, é que a reforma protestante e os movimentos operários perderam sua vitalidade como focos de mobilização e aglutinação moral e social inclusive nos países onde sua presença foi mais forte, na Europa ocidental; e não foram substituídos de forma satisfatória nem pelo pragmatismo esperado pelos teóricos do "fim das ideologias", nem pelos novos movimentos sociais que são objeto de atenção dos teóricos do pós-modernismo. Neste sentido, a questão das formas de sustentação ética, emotiva e simbólica da civilização pós-industrial não é um problema somente latinoamericano, mas universal, tanto quanto o das formas que esta civilização irá tomar.

Minha discordância com Morse não é quanto à importância desta questão, mas com a resposta que ele oferece -- a volta a uma "verdadeira comunidade" perdida nas penumbras do passado -- e com a forma em que ele justifica esta resposta. Ao tratar com desprezo as modernas ciências sociais e tudo aquilo que lhe parece associado ao racionalismo empobrecido das academias ocidentais e seus imitadores, Morse termina por olhar a realidade latinoamericana de forma extremamente simplificada e maniqueísta, apesar de adornada por proclamações de sutileza, complexidade e sentido de humor. Não há nada em sua resposta que refute o argumento principal de meu comentário, em relação aos equívocos de sua tentativa de buscar, em um utópico passado ibérico, as fontes para uma civilização latinoamericana que mostraria sua profunda superioridade em relação ao ocidente em decadência. Em compensação, tenho agora a oportunidade de expandir a discussão sobre os temas do "atraso" e da modernidade, e sobre a natureza e a responsabilidade no trabalho intelectual.

É necessário não confundir minhas objeções às propostas de Morse com uma eventual incapacidade de perceber a importância dos problemas da cultura. Não há nada na "questão cultural" que a torne particularmente intratável pelas ciências sociais contemporâneas, desde que a livremos da penumbra das "tradições culturais" qualitativamente irredutíveis entre si, e aceitemos que os fenômenos de identificação, integração coletiva e referenciais éticos podem mudar com grande velocidade, por mecanismos que seguramente não conhecemos bem, mas que estão sem dúvida associados a certos momentos de transição histórica mais significativos. José Joaquin Brunner, que tem tratado estas questões com bastante propriedade, identifica em Octávio Paz a fonte principal da tentativa de voltar às fontes primitivas da latinidade hispânica, e expressa com clareza tudo aquilo que eu gostaria de poder dizer a respeito. Diz Brunner que a América Latina é tributária e parte da cultura ocidental, acima de tudo, por sua incorporação à experiência traumática da modernidade.

Por sua busca contraditória, desigual, cem vezes fracassada mas cem vezes retomada, da modernização e do modernismo, não mais apenas como fenômeno de intelectuais e tecnocratas, mas como processo de massas cujo imaginário chegou a se expressar e a se esgotar quase que completamente nas figuras fugazes de modernidade que vêm do norte. Por isto se pode dizer que a América Latina é parte desta cultura menos pelo seu passado, ainda que também por causa dele, do que pelo seu presente e seu futuro: como projeto. Existem os que discordam desta forma de abordar as coisas latinoamericanas. Para os quais, com efeito, é mais importante a religião trazida pelos espanhóis e portugueses a estas terras do que a utopia modernizadora, que teve muito mais que ver, certamente, com a França, Inglaterra e os Estados Unidos. Para os quais subsiste, ainda hoje, uma América Latina profunda, real-mágica, mestiça e ancestral; que se sacrifica e cumpre seus ritos e que assume a modernidade como uma mentira sociológica, algo espúrio, uma casca imposta, um produto fantasmagórico da razão que percorre o continente sacrificando-o às exigências de sua utopia. Octávio Paz, a quem não fazemos justiça com estas breves referências, o disse de maneira gráfica: "o povo mexicano, depois de mais de dois séculos de experimentos e fracassos, não crê senão na Virgem de Guadalupe e na Loteria Nacional(8).

Brunner não acredita, no entanto - como eu também não - que esta volta ao passado seja possível. "Os homens e mulheres [da América Latina] estão envolvidos, de maneiras diversas e conflitivas, com maior ou menor consciência, nas aventuras de modernização do continente, nas pugnas em torno de sua direção política e de sua organização sócio-econômica. Neste processo multiforme eles refletem, nas contradições de sua identidade e de seu contexto vital, os problemas de uma modernidade cuja significação tem estado e continua estando referida para fora; inevitavelmente para o norte" (p. 196-7).

II

Em seu novo texto, Richard Morse faz minha caricatura como a de um empirista primitivo e empedernido, que não reconhece lugar para a literatura nem de nada além da "montagem metódica de conhecimentos verificáveis"; um reacionário, que tem medo do povo e de suas manifestações espontâneas e criativas; um racionalista ingênuo, que acredita que os Ph.D.'s resolverão os problemas do mundo; e um defensor encarniçado do statu quo acadêmico. O mesmo simplismo maniqueísta, surpreendente para quem se declara atraído pelas "explorações lúdicas da percepção humana", e capaz de captar, pela empatia, as camadas mais profundas da história, como "carregada de persistências, ressonâncias, novidades, surpresas e resultados inesperados", surge em sua visão da América Latina, assim como da atividade intelectual de uma maneira geral. De um lado, estão "as elites", que falharam miseravelmente em sua agenda modernizadora, e às quais estão associados os cientistas sociais que "nos traíram" (é difícil não perguntar: a "nós", quem, cara-pálida?), junto com todos aqueles que se apoiam nas ciências empíricas para fazer previsões históricas de curto prazo, de acordo com suas preferências subjetivas; de outro está a América Latina autêntica (que exclui, entre outras coisas, os imigrantes e a industrialização), que tem suas raízes no passado hierárquico e monolítico da Espanha antiga, e se volta hoje à busca da "verdadeira comunidade", através das manifestações espontâneas e vivas que vão "dos Tupamaros aos cultos de Umbanda, da teologia da libertação às associações de vizinhança, dos revolucionários que se declaram marxistas aos invasores de terra" (cuja relação com o passado ibérico realmente me escapa). Tudo isto teria um sentido único e profundo, inacessível aos comuns mortais e intelectuais domesticados pelas universidades ocidentais que só conseguem pensar a curto prazo; mas claramente inteligível, como tendência a longo prazo, para os literatos e intelectuais indômitos capazes de "empatia com as camadas profundas da mudança social, e dispostos a aceitar indicadores metafóricos e analógicos, além dos mensuráveis". Estes intelectuais e literatos, presumivelmente, não fazem parte daquelas elites que "nos traíram", e contribuem positivamente para a marcha da história na conquista da "comunidade verdadeira". Enquanto isto não se dá, eles podem, confortavelmente, se valer dos benefícios e do prestígio que nossos sistemas acadêmicos, apesar de irremediavelmente ultrapassados e estéreis (ou, quem sabe, exatamente por isto), ainda proporcionam aos que melhor expressam os modismos intelectuais correntes, do desconstrutivismo às versões locais do populismo intelectual.

Richard Morse tirou do contexto uma frase em que eu dizia que "talvez não seja aconselhável instaurarmos desde já nossa revolução cultural, buscando o contato direto com as massas" para dizer que eu penso que as massas devem esperar o fim do projeto iluminista (como, no tempo do governo militar, se dizia que era necessário fazer o bolo crescer antes de dividí-lo), e que cabe aos intelectuais universitários comandar e domesticar as diversas formas de participação popular e comunitária no processo político em que vivemos e no qual continuaremos a viver. Minha frase sobre o "contato com massas", acompanhada pela referência à revolução cultural chinesa e ao estudo clássico de Bendix sobre o autoritarismo no sistema industrial da Alemanha Oriental na década de 50, deveria ter sido suficiente para deixar claro que não proponho este tipo de "contato" nem agora nem nunca. No caso da Alemanha Oriental, a consigna partidária do "contato com as massas" funcionava como uma forma de reforçar a autoridade do poder central sobre as organizações de produção econômica, e forçar os operários a se submeter às diretrizes do partido, único intérprete aceito, afinal, do que "as massas" realmente queriam ou pretendiam ser. Em relação à "revolução cultural", creio que já existe bastante consenso sobre o que ela significou como período de centralização política extrema, terrorismo e retrocesso político, econômico e cultural.

Chamar a atenção para a associação íntima e freqüente entre os apelos ao "contato com as massas" e as formas mais abjetas de autoritarismo não é o mesmo que ser contra as diferentes formas de organização e ação popular, que extravazam os marcos institucionais estabelecidos e trazem para nossas sociedades novas fontes potenciais de dinamismo e renovação. Para quem tem a perspectiva do milênio, talvez não valha a pena perder tempo com separar uma coisa da outra. Afinal, se o Terror fez parte da revolução francesa, o Gulag da revolução soviética, se o militarismo japonês precedeu sua entrada triunfante no mundo do capitalismo moderno e da alta tecnologia, se o próprio nazismo, dialeticamente, purificou a Alemanha de seu nacionalismo xenófobo e fez dela, depois da guerra, uma democracia exemplar, porque se preocupar com as bombas dos Tupamaros, os assassinatos do Sendero Luminoso ou o populismo demagógico de um ou outro político mais inescrupuloso? Pode ser que, em relação a esta atitude, o lugar aonde moramos e vivemos faça alguma diferença.

Penso que a atitude de Morse em relação às ciências sociais, sua visão dogmática e simplificada da América Latina, e até mesmo a caricatura que tenta fazer de meus pontos de vista, decorram da função praticamente exclusiva que ele atribui ao trabalho intelectual, que seria a da elaboração de uma ideologia capaz de sacudir e mobilizar o continente latinoamericano, e daí, que sabe, o mundo. Exemplo disto é a tese da superioridade dos novelistas sobre os cientistas sociais, reforçada pelo uso abundante de referências, imagens e licenças literárias. Ninguém negaria, evidentemente, a importância de muitos novelistas latinoamericanos na crítica e desvendamento de aspectos e dimensões insuspeitas de nossa realidade; poucos negariam, também, a possível riqueza de uma exploração da realidade dentro das tradições da crítica literária, tal como proposto por Clifford Geertz. No entanto, o que Morse espera é que estes escritores possam "ajudar a renovar o discurso de uma ideologia obsoleta", e nisto residiria sua superioridade sobre os cientistas sociais. Além da obsessão com a ideologia (de minha parte, eu diria que a desmitificação das ideologias é ainda uma dos grandes propósitos das ciências sociais, sem que para isto seja necessário retornar à ingenuidade da "ciência neutra"), surpreende que haja quem acredite que autores tão herméticos e quase incompreensíveis como Cortázar, Borges ou Guimarães Rosa possam ter algum papel na constituição de novas ideologias de alcance popular. A falsa polarização entre "novelistas" e "cientistas sociais" que Morse introduz só pode produzir efeitos no mundo restrito dos círculos acadêmicos de elite, para consumo dos quais, afinal, ela parece ter sido feita.

III

Morse se espanta por eu dizer que alguns países são mais atrasados do que outros. E no entanto, não é difícil definir o que seja um país ou uma região "atrasada": é onde as pessoas passam fome e morrem prematuramente, onde não existem sistemas educacionais minimamente satisfatórios, onde os governos não funcionam com um mínimo de competência, onde os direitos humanos não têm vigência. Existem países latinoamericanos mais e menos atrasados, e estas diferenças refletem, em grande parte, a capacidade que tiveram de incorporar não somente os malefícios e as deformações que acompanham a modernidade, mas também algumas de suas instituições e valores mais centrais, como as instituições democráticas, os sistemas educacionais de massas e de elite, e as formas modernas de organização da atividade econômica.

Não é preciso ser um evolucionista ingênuo para entender isto. Quem viu "Bye Bye Brasil" sabe que o atraso no mundo de hoje não se caracteriza pela permanência de valores e formas de comportamento ditos tradicionais, mas pela incorporação distorcida e caótica dos produtos mais aparentes e assimiláveis das modernas tecnologias: a televisão, os automóveis, os meios de comunicação e de transporte, as estruturas de dominação e de poder, e as armas de fogo, não tão modernas assim. Reagir aos efeitos devastadores desta modernidade pela volta ao primitivo, ao popular, à alma da civilização perdida, no entanto, é um caminho sem saída. Viajando anos atrás pelo interior da Guatemala, fiquei impressionado pelas vestes dos indígenas, seus panos coloridos, padrões diferentes para cada aldeia, e sua aparente capacidade de preservar suas culturas e tradições. Depois aprendi que estas roupas, e as cores diferentes, haviam sido impostas pelos espanhóis nos tempos coloniais, como forma de separar os índios entre as diferentes "encomiendas", que os mantinham em regime de servidão. Para quando, ou onde, estas populações deveriam voltar?

V. S. Naipaul, escrevendo sobre a India independente e suas perplexidades ante o artificialismo da modernização ocidental e a busca do passado perdido, observava dez anos atrás que
A turbulência da India desta vez não vem da invasão estrangeira ou da conquista, mas é gerada de dentro. A India não pode responder da forma antiga, pela volta ao arcaísmo. Suas instituições emprestadas funcionaram como instituições emprestadas; mas a India arcáica não tem substitutos para a imprensa, o parlamento e as cortes. A crise da India não é só política e econômica. É uma crise maior de uma antiga civilização ferida que finalmente está tomando consciência de suas inadequações, mas não encontra os meios intelectuais necessários para ir adiante(9).
E, ao final:
Nos textos antigos os homens olhavam para o passado e falavam da atual Idade das Trevas; hoje eles olham para os dias de Gandhi e da luta contra os ingleses, e vêm tudo que ocorreu depois como um desvio, antes que uma evolução da história. Enquanto a India tratar de voltar a seu passado, ela não conquistará este passado, nem será por ele enriquecida. O passado só pode se conquistado, agora, pela pesquisa e scholarship, pela disciplina intelectual, e não pela via espiritual. O passado deve ser visto como morto; senão, o passado matará (p. 174).
Não existe volta ao passado, nem sequer um passado para voltar, na India como na América Latina. Correndo de novo o risco de ser acusado de "positivista pombalino do século XVIII", ou de idealizar os Ph.D.'s com os heróis do mundo moderno, eu reafirmaria que existe uma agenda fundamental a ser cumprida na América Latina, em alguns países de forma mais dramática do que em outros, que recoloca as questões da educação em todos os níveis (popular, média, superior, continuada) e da ciência e tecnologia como uma das preocupações fundamentais. Não é possível participar de forma adequada no mundo de hoje, e principalmente no de amanhã, sem uma população minimamente capaz de conviver de forma ativa e produtiva com as novas formas de comunicação, produção e interação social que estão se generalizando. Esta agenda intelectual e cultural não substitui, mas é homóloga, à do estabelecimento de novas formas de organização e participação social e instituições políticas modernas, como os partidos, o parlamento, o poder judiciário e um serviço público competente. As tradições autoritárias de alto a baixo de nossas sociedades, o fracasso dos projetos modernizadores do passado, o vazio e a burocratização de nossa educação básica, o corporativismo e a baixa qualidade de nosso ensino superior, o provincianismo dos horizontes intelectuais de nossas elites, tudo isto torna nossos problemas extremamente difíceis, mas não permitem a postura cômoda de declarar que a agenda da modernidade já teve seu tempo, e que agora é chegada a hora de abandoná-la como lixo inútil. E tampouco que se diga, de quem se preocupa com estas questões, de ser um "ardente defensor do statu quo".

IV

Porque eu disse que seu livro era "potencialmente danoso em suas implicações", Morse me acusa que querer jogá-lo na fogueira. E no entanto, se idéias não tivessem conseqüências que mereçam ser avaliadas, nem eu nem ele poderíamos justificar nossos salários no fim do mês. O princípio da liberdade de expressão, uma das grandes conquistas da tradição liberal, não supõe que as idéias sejam inconseqüentes. Ao contrário, a suposição é que elas são tão importantes que vale a pena garantir sua manifestação, mesmo que muitas vezes elas produzam resultados que não agradem a uns ou outros. Acredito que esta liberdade, da qual todos nos beneficiamos, deve ter como contrapartida que as idéias possam ser livremente criticadas, inclusive em suas conseqüências, e que não tratemos de escapar da responsabilidade pelas implicações do que dizemos ou propomos.

É difícil dizer, no entanto, que poder é este que as idéias têm. Como bem lembra Morse, esta é uma questão que se tornou clássica a partir do tema espinhoso da responsabilidade dos intelectuais alemães pelo surgimento do nazismo; e a lembrança é tanto mais oportuna quanto os grandes temas do debate intelectual alemão na virada deste século, que se intensificou nos anos da República de Weimar, têm muito em comum com aqueles levantados por Morse: a crítica da ciência formal, em nome da intuição e da vida; a busca de interpretações globais do sentido profundo da história e da natureza das civilizações e das culturas, mais além do que poderia ser captado pela mera empiria; a valorização do popular e do comunitário, em detrimento das construções artificiais da civilização; a obsessão com a ideologia, que é vista como a única razão de ser do trabalho intelectual e cultural.

Vale a pena descrever algo deste debate, para desfazer de uma vez por todas a idéia de que Morse está propondo algo de novo, ou que minhas críticas tenham, por sua vez, muita originalidade. A batalha entre a vida e a esterilidade, a intuição criativa e o empirismo obsessivo, a intuição profunda do sentido das coisas e o acúmulo gradual de pequenos cadáveres de evidência dissecados pela razão analítica, a ideologia e a ciência, foi disputada à exaustão mais de meio século atrás, e hoje já conhecemos bastante bem tanto as limitações do positivismo e academicismo ingênuos quanto aonde podem chegar os delírios do intuicionismo e do vitalismo. Fritz Ringer, autor de um estudo clássico sobre o mandarinato intelectual alemão do século XIX até o período do Nazismo, usa uma citação de Ernst Troeltsch, colega e contemporâneo de Max Weber, para caracterizar a força da crítica ao positivismo e ao establishment universitário em seu tempo:
É a revolta contra a memorização e disciplina, contra as ideologias do sucesso e do poder, contra o excesso e a superficialidade dos conhecimentos que nos impingem nas escolas, contra o intelectualismo e a auto-suficiência dos literatos, contra a grande metrópole e o anti-natural, contra o materialismo e o ceticismo, contra o poder do dinheiro e do prestígio, contra a especialização e o mandonismo, contra o peso sufocante da tradição e o evolucionismo historicista... Além disto, existe uma profunda revolução intelectual dentro do mundo acadêmico que ainda não foi devidamente notada. A necessidade de síntese, sistema, visão de mundo, organização e juízos de valor é extraordinária. A matematização e a mecanização de toda a filosofia européia desde Galileu e Descartes é vista com crescente ceticismo... Nas disciplinas históricas e culturais, as pessoas se defendem contra a tirania dos conceitos evolutivos, contra as compilações e as avaliações críticas(10).
Uma parte importante desta "revolução" foi a chamada "filosofia da vida", que, como tudo no ambiente acadêmico alemão daqueles anos, ia do mais sofisticado e complexo, como por exemplo em Dilthey, ao mais simplista e vulgar. Ringer descreve desta forma a "filosofia da vida", a partir do trabalho de Ludwig Klages, autor de uma obra alentada e já esquecida sobre "Geist como o inimigo da alma":
Em um sentido muito geral, a filosofia da vida era a doutrina segundo a qual a vida, em sua forma mais imediata, é a realidade primária do homem. Esta idéia podia ser interpretada de muitas formas diferentes. Ela podia ser tratada como verdade metafísica, em cujo caso liberdade, criatividade, "totalidade" na experiência, e coisas semelhantes, surgiam como as características mais gerais da realidade. Klages aparentemente defendia algumas destas teorias. Ele também se expandia a respeito de temas tais como a vivência, a compreensão, Einfühlung (empatia), e Anschauung (percepção, intuição), para sugerir uma bateria de maneiras superiores ao "meramente conceitual" para chegar à realidade imediata da vida. A 'experiência imediata ' de Dilthey adquiria as características de um procedimento místico na filosofia da vida. Na pedagogia, 'vivenciar' [experiencing] assumia as vezes o sentido de aprendizagem ativa, pela participação direta [acting out] em uma seqüencia de eventos e reações. Em um sentido mais amplo, o ato de vivenciar involvia a imaginação e a emoção do sujeito, e não somente seu intelecto. Tanto quanto "empatia" e "percepção", o conceito de vivência (Erleben) sugeria que as impressões individidas da experiência ingênua são menos enganosas, de muitas maneiras, do que o material que nos chega pelo filtro da abstração analítica e da classificação científica. Em algumas variedades da filosofia da vida, todo conhecimento conceitual e o próprio Geist eram descritos como obstáculos ou inimigos da vida" (p. 337)(11).
Conforme relata Ringer, Troeltsch "se impressionava por esta 'revolução intelectual', mas não confiava totalmente nela. Preocupava-se com suas tendências nihilistas. Advertia quanto ao perigo de descartar 'os métodos críticos e exatos, o rigor do pensamento e da pesquisa, que haviam sido estabelecidos por várias gerações de estudiosos'. As alternativas que propunha, ligadas a uma tentantiva de reconstrução racional da cultura alemã, são demasiado complexas e historicamente datadas para serem descritas aqui. Mais atual, acredito, é a forma que o debate assumiu com Max Weber e um obscuro crítico e oponente, Ernst Krieck.

A principal referência, aqui, é a famosa conferência de Weber de 1919, sobre "Wissenschaft [erroneamente traduzido por 'ciência'] como Vocação". Na síntese de Ringer,
"Weber não hesitou em desafiar a grita geral contra a especialização. Nas condições modernas, dizia, era impossível fazer contribuições genuínas ao conhecimento sem pesquisas detalhadas em um campo delimitado de estudo. "Inspiração" (Eingabe) não era menos nem mais necessária no trabalho acadêmico do que em qualquer outra atividade; mas só poderia surgir como resultado do trabalho persistente. Intuições brilhantes eram de qualquer forma praticamente inúteis, a não ser que alguém fosse capaz de explorá-las e substanciá-las de forma metódica. (...) Ele se espantava com o culto da intuição e da 'experiência' (Erleben) imediatas. Estava cansado de ouvir que o scholar tinha que ter personalidade. Admitia que o artista poderia ter a esperança de criar coisas de valor permanente. Mas o pesquisador não poderia ter esta esperança; todas suas contribuições estavam destinadas a ser superadas mais cedo ou mais tarde. Pesquisar era simplesmente participar do processo de "intelectualização" que, por milhares de anos, vinha abrindo caminho contra as interpretações mágicas da realidade. Este processo parecia não ter fim, e suas conseqüências nem sempre eram agradáveis." (Ringer, p. 352).
Resumindo a posição de Weber, Ringer ressalta sua militância nas questões políticas de seu tempo, e observa que, "ao propor a separação entre Wissenschaft e juízos de valor, Weber na realidade buscava limpar o terreno para políticas públicas mais progressistas. Ele parecia limitar o âmbito de competência do trabalho acadêmico, mas lhe reservava três importantes funções: confrontar os "fatos", pesar suas conseqüências, e avaliar a consistência interna das políticas públicas. Na prática, este programa reduzia muito pouco o escopo do discurso acadêmico e científico, seja em política, em ética ou em qualquer outro campo. Tudo o que excluía era a busca de valores últimos da filosofia cultural dos idealistas alemães. Weber não era tampouco um positivista, propriamente falando. Na atmosfera da revolução espiritual, suas recomendações metodológicas poderiam parecer vagamente cautelosas e ultrapassadas. Na realidade, ele de fato incluía as explorações mais grosseiras da falácia do sentido comum entre as ilusões de uma época já ultrapassada" (Ringer, p. 356).

Ringer contrasta as posições de Weber com a de Ernst Krieck, personagem que não deixaria memória, a não ser pelo extremismo de suas posições e sua ulterior adesão ao nazismo. Eis o que dizia Krieck in Die Revolution der Wissenschaft, em 1920:
A Alemanha tinha perdido seu sentido de grandeza. Não haviam idéias suficientemente fortes para guiá-la, e ela caía vítima da democracia e do marxismo. As grandes tradições haviam sido esquecidas; a sociedade se dissolvia em átomos; a nação tinha perdido sua alma; a crise cultural se aproximava. Como não havia espírito comunitário, os indivíduos se sentiam sem poder e isolados; prevalecia um fatalismo sem esperanças; a literatura era pobre, e a arte sem estilo. Um renascimento religioso poderia ser de alguma ajuda, mas não poderia se dar nas igrejas estabelecidas, que haviam se tornado totalmente decadentes. Uma espiritualidade esotérica também seria inútil, porque não poderia produzir aquele espírito de solidariedade nacional que era tão urgentemente necessário. Só uma religião nacional comum poderia produzir uma nova sensação de unidade moral e renovação de propósitos, elevando o estado acima do nível de uma máquina utilitária. (...)
Não havia lugar para intelectuais desenraizados na nova sociedade de Krieck. Ele propunha desmantelar todo o establishment acadêmico, a não ser que ele pudesse justificar sua existência contribuindo para a vida espiritual da Nação. A pose da objetividade, a recusa em emitir juízos de valor, pareciam para ele fraquezas e vícios. A vida acadêmica alemã havia se transformado em um mecanismo sem sentido, preocupado somente em se perpetuar a si mesmo. Excessivamente especializada e esotérica, era uma espécie de sinecura para uma clique cansada de pesquisadores. Seus métodos, da mesma forma, eram irrecuperavelmente estéreis. O historicismo tinha sido fatal para as ciências sociais, impedindo que o passado influenciasse o presente. Um racionalismo empobrecido havia se espalhado das ciências naturais para as humanidades. Quando os economistas declaravam que não fariam julgamentos de valor, eles entregavam o futuro de seu país aos políticos dos partidos. Na filosofia, o livre arbítrio era consistentemente desenfatizado, como que pedindo aos alemães que se resignassem à impotência nacional.

Na base destes argumentos, Krieck propunha uma revolução no trabalho intelectual. Suas propostas seguiam uma linha previsível. A atitude passiva da objetividade deveria ser abandonada. Deveria haver esforços de combinar pedaços de informação em perspectivas totais. Ao olhar para o passado da nação, os historiadores deveriam descobrir seu caráter, e conseqüentemente seu futuro. Clamava por mais ênfase nas verdades fundamentais da vida e do espírito. (...) Era dever dos acadêmicos se elevar acima das estreitas doutrinas de classe e partido; mas acima disto, os acadêmicos deveriam recuperar suas raízes na comunidade nacional. Só desta maneira eles poderiam se salvar tanto das perspectivas partidárias quanto do ecletismo estéril" (Ringer, pp. 357-358).

A história mostraria o triunfo político das idéias de Krieck, e o fracasso de Weber e de Troeltsch. Que responsabilidade tiveram os vitoriosos pelo que aconteceu a seguir? É assim que Ringer trata a questão da responsabilidade:
Em princípio, os mandarins tinham tanto desprezo pelos demagogos nacionalistas quanto pelos parlamentaristas e líderes partidários do liberalismo democrático. Tudo que eles diziam sobre Geist e sobre política, eles o diziam como intelectuais, como porta-vozes da minoria dos homens cultos, e não como representantes dos interesses industriais ou agrários, e certamente não como propagandistas das políticas de massas do nacional socialismo. Não tomar isto em consideração é não entender nada de toda a intenção e as tendências das ideologias dos mandarins.
E no entanto, depois de tomarmos em conta todas as sutís diferenças de intenção, todos os diferentes níveis de vulgaridade intelectual, e todas as nuances de opinião baseadas em diferenças de classe e status, permanece ainda uma similaridade residual entre os pontos de vista dos professores e dos estudantes nas universidades alemãs. O 'idealismo' dos movimentos chauvinistas e volkish acompanharam o idealismo dos mandarins como um eco ligeiramente distorcido; a anti-modernidade do Geist projetava sua sombra na anti-modernidade do Volk. Insistir que não havia nenhuma conexão entre os dois seria dizer que professores não influenciam seus alunos. Os mandarins seriam os últimos a aceitar tal julgamento" (Ringer, p. 252).

Em que medida, no entanto, a América Latina de hoje se assemelha à Alemanha do pré-guerra, para que este paralelo possa ser feito? Não existem sinais claros de que marchemos para o fascismo, e, se isto ocorrer, não será provavelmente por culpa de intelectuais e escritores. Estamos vivendo, no entanto, em meio a uma batalha quase perdida pela modernidade em nossas sociedades, que tem como uma de suas arenas principais nossos sistemas educacionais, culturais e científicos. Tal como na Alemanha, o anti-intelectualismo e irracionalismo ocupam espaço em nossas universidades, seja pela demanda por resultados práticos e imediatos, seja pelo repúdio ao trabalho acadêmico e sistemático de longo prazo. Tal como na Alemanha, o ataque à mediocridade da educação formal é feito ao mesmo tempo em nome do "povo", e pela utilização das formas mais extremas de elitismo intelectual, que substitui a clareza das idéias pelo abuso dos jogos semânticos, frases enigmáticas e uso de expressões e citações da moda, que alguns privilegiados dizem entender e dominar, e os demais, simplesmente, admiram; tal como lá, em nome do complexo e do profundo, visões simplistas da realidade ameaçam predominar sobre as mais complexas, que encontram cada vez menos espaço e condições de se manifestar. Talvez seja impossível reverter esta tendência; no entanto, acho que faz parte da responsabilidade do trabalho intelectual não esquecer os equívocos do passado, e não voltar a embarcar neles com tanta facilidade e gosto.

Notas

1. Traduzido do inglês de "Bruno Bauer, 'Die Judenfrage' ", em T. B. Bottomore, ed., Karl Marx Early Writings, p. 17.

2. S. Schwartzman, São Paulo e o Estado Nacional, São Paulo, Difel, 1973, revisto e republicado como Bases do Autoritarismo Brasileiro, Rio de Janeiro, ed. Campus, 1982 e 1988.

3. Nesta crítica generalizada, entra tanto o empirismo mais grosseiro quanto a tradição historicista comparativa de inspiração weberiana, que, como sabemos, comparava a India, a China e a Palestina antiga com o Ocidente. Para uma visão mais complexa dos contrastes entre a as ciências sociais positivistas e historicistas, e da contraposição entre elas e o irracionalismo, veja Reinhard Bendix,. Force, Fate & Freedom: On Historical Sociology, Berkeley, University of California Press, 1984.

4. Para uma visão crítica do pensamento irracionalista contemporâneo e seu impacto pernicioso em nosso meio, veja os ensaios de Sérgio Paulo Rouanet em As Razões do Iluminismo, Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1987.

5. Veja, sobre os paradoxos inerentes à busca do "contato com as massas" em regimes totalitários, a análise clássica de Reinhard Bendix em Work and Authority in Industry (New York, Wiley, 1956), um exemplo de análise histórica comparada entre a Inglaterra, a Rússia, os Estados Unidos e Alemanha, em períodos históricos distintos. Vale lembrar ainda que, no Brasil, o principal leitor e divulgador das idéias de Sorel tenha sido Francisco Campos.

6. "A Miopia de Schwartzman", Novos Estudos CEBRAP 24, julho de 1989, pp. 166-178.

7. Já tive a ocasião de discutir esta mesma postura, em relação à questão do corporativismo, em outra ocasião. Veja. "As Dificuldades do Antietnocentrismo", Dados - Revista de Ciências Sociais (Rio de Janeiro) 25, 2, 1982.

8. José Joaquin Brunner, Un espejo trizado - ensayos sobre cultura y políticas culturales, Santiago, FLACSO, 1988, p. 198. A referência é a Octávio Paz, El ogro filantrópico, Joaquin Mortiz, México, 1989.

9. A Wounded Civilization, Penguin, 1979, p. 18.

10. Ernst Troeltsch, "Die geistige Revolution", 1921, citado por F. Ringer, The Decline of the German Mandarins, Harvard University Press, 1969, p. 346).

11. É claro que a validade destas concepções não poderia ser medida, simplesmente, por suas conseqüências como munição ideológica para a batalha do irracionalismo que ia ganhando forma. No entanto, também não seria o caso de ignorar este aspecto. A este respeito, diz Ringer que "as doutrinas do movimento [da filosofia da vida] não podem ser atribuídas com segurança a ninguém em particular, mas elas certamente tiveram uma certa influência. Na verdade, a filosofia da vida popular tinha muito em comum com boa parte da literatura populista [volkish], anti-semita e neo-conservadora da anti-modernidade. Ambos surgiram na periferia do mundo acadêmico ou fora dele; ambos exageraram as atitudes que existiam entre os próprios mandarins intelectuais; e ambos ameaçavam superar os professores em sua disputa pela atenção dos semi-educados e dos jovens" (p. 337).