#CTI# Desafios na comunicacao entre homens e seus medicos de familia #FTI# #CR# O artigo discute aspectos da comunicacao na relacao medico(a) + homem usuario no contexto de servicos com Estrategia de Saude da Familia (ESF). A presente pesquisa qualitativa foi realizada em tres fases distintas e articuladas, com triangulacao de tecnicas (entrevistas semiestruturadas e grupos focais) e com homens usuarios e medico(a)s de Familia e Comunidade (MFC) em servicos de saude em Florianopolis, SC, Brasil. As analises apontam que a busca por consulta e guiada por sintomas e/ ou pressao de familiares e pela expectativa por exames que comprovem estarem saudaveis. O(a)s MFC incentivam o autocuidado sem efetivamente convencer os usuarios. A troca frequente de medico(a) e um forte entrave para o vinculo e a comunicacao. O estudo contribui para o debate sobre a relacao medico(a) + pessoa em segmento da populacao reticente e pouco envolvido com o autocuidado e a prevencao. #FR# #CTE# Introducao A relacao homens-saude comeca a ter destaque em investigacoes internacionais na decada de 1980, especialmente a partir do reconhecimento do paradoxo no qual ao mesmo tempo que os homens detem poder e prestigio frente as mulheres na sociedade tambem apresentam sobretaxas de mortalidade para a grande maioria das causas de morte1. No campo da Saude Coletiva no Brasil, observa-se o incremento da discussao de genero e das masculinidades a partir dos anos 20002. No curso das pesquisas iniciais sobre homens e cuidado a saude no pais, aspectos relativos ao autocuidado reduzido, o reforco de comportamentos de riscos danosos a saude de si e de outros e a baixa procura e adesao a servicos de Atencao Primaria a Saude (APS) geraram interesse politico por parte do Ministerio da Saude (MS) em elaborar a Politica de Atencao Integral a saude do Homem (PNAISH), oficialmente lancada em 20093. Essa politica estabeleceu, desde sua origem, a APS como eixo central de suas acoes. A PNAISH tem enfrentado desafios e dificuldades desde sua formulacao pela escassez de recursos alocados, pelo limitado envolvimento de grupos de interesse da sociedade civil e pelas criticas oriundas de especialistas acerca da nao incorporacao das discussoes de genero, o que resultou na incorporacao do homem como objeto, ao inves de sujeito4,5. Estudos sobre a implementacao da PNAISH, como o de Leal et al.5 e de Moura et al.6, revelam que os profissionais da APS se queixam da sobrecarga das equipes, estrutura inadequada para o atendimento e falta de profissionais medicos, bem como o pouco conhecimento dos gestores sobre a propria politica. Nao obstante tais desafios, a APS se configura como a porta preferencial do sistema de saude do pais. Entretanto, no caso da populacao masculina, Boccolini e Souza Jr7 mostram que homens pobres, com menor nivel educacional e autodeclarados nao brancos tem maior probabilidade de nunca terem passado por uma consulta medica ou de dentista, nunca terem verificado sua pressao arterial ou nunca terem medido sua glicemia. Um dos aspectos que orienta a pratica da APS e a relacao entre os profissionais e as pessoas, caracterizado pela nocao de vinculo. Segundo a Politica Nacional de Atencao Basica (PNAB), o vinculo preve a construcao de relacoes de afetividade e confianca que permitem a construcao de um processo de corresponsabilizacao pelo cuidado em saude ao longo do tempo8. Vinculo, portanto, tem importancia inequivoca e necessaria para o funcionamento da APS, mas ainda precisa de maior investimento conceitual9. Diante desse quadro, a dimensao comunicacional na construcao do vinculo entre homens e profissionais de saude na APS e condicao para um cuidado adequado dessa populacao, na medida em que envolve responsabilizacao e longitudinalidade da pratica de saude9. Contudo, trata-se ainda de uma tematica pouco explorada na literatura sobre homens e cuidado a saude. Afinal, as condicoes que perpetuam o ciclo de invisibilidade do homem no sistema de saude 10 ainda estao bastante presentes na medida em que a PNAISH nao foi efetiva em capacitar os profissionais de saude a adaptarem sua linguagem e estrategias de educacao e saude para esse segmento. Em sintese, como pode se dar o vinculo com aquele que se desconhece e para o qual nao se dispoe de ferramentas para comunicacao eficaz? Goodyear-Smith e Buetow11 defendem que a relacao medico-paciente produtiva promove autonomia e responsabilidade mutua. Alem disso, com a consideracao da perspectiva dos pacientes como prioridade, alcanca-se melhores resultados. Isso implica em resgatar aspectos promotores de saude presentes no processo de comunicacao, em especial, a comunicacao afetiva (uso da empatia), transmitida de forma verbal e nao verbal no contexto clinico assistencial12. Considerando-se o referencial das masculinidades, apoiado em uma perspectiva relacional de genero13 para a compreensao da relacao homens-saude e o fato de que os servicos de APS sao fundamentais como resposta as necessidades de saude dos homens, neste artigo discutiremos a relacao medico(a) + pessoa. Adotamos a denominacao proposta por Lopes e Ribeiro14, substituindo a tradicional denominacao “relacao medico-paciente”, cuja carga simbolica vinculada a palavra “paciente” subentende passividade e pouca autonomia em uma relacao historicamente assimetrica15. Alem disso, optamos por trocar o hifen, que separa, pelo sinal de adicao para marcar o vinculo e a interacao esperada entre os membros dessa relacao. Diante do exposto, o objetivo deste artigo e explorar a comunicacao na relacao medico(a) + homem usuario no ambito das experiencias de ambos os sujeitos no cotidiano de unidades de saude vinculadas a Estrategia de Saude da Familia (ESF) a partir de aspectos relacionados as motivacoes dos homens para buscar servicos, a consulta medica e a invisibilidade de suas necessidades e demandas na APS. Metodologia Este trabalho deriva de investigacao mais ampla, na modalidade pesquisa qualitativa aplicada a saude, acerca das dimensoes comunicacionais na pratica clinica entre medico(a)s de Familia e Comunidade (MFC) e homens usuarios da APS no municipio de Florianopolis, SC, caracterizado como de porte medio, com um indice de Desenvolvimento Humano elevado e que conta com 74% de cobertura da ESF. A originalidade da metodologia na producao dos dados empiricos se deu pela abordagem qualitativa com utilizacao da triangulacao de tecnicas (entrevistas semiestruturadas e grupos focais) em tres fases temporalmente distintas. Optou-se por utilizar entrevistas semiestruturadas pela possibilidade de captar os relatos de experiencia narrados, representados e recontados pelos participantes16. A tecnica de grupos focais foi selecionada, pois permite a producao de sentidos, expressos em percepcoes e opinioes diferentes, a partir do contexto de interacao dos participantes17. A diacronia na producao dos dados ocorreu de modo articulado. Na primeira fase, foram entrevistados 18 homens adultos, que relataram suas concepcoes de saude-doenca entremeadas ao exercicio de suas masculinidades, o impacto da frequente troca de medicos na relacao com o servico, a atencao dividida do profissional entre varias atribuicoes e a dimensao da consulta que nao se limita a abordagem tecnica. Na segunda fase, foram entrevistados quatro medico(a)s, a partir de roteiro elaborado com os achados e analises da primeira fase, em temas que expressavam situacoes que afetavam a relacao medico + pessoa. Foram produzidas vinhetas (pequenos excertos de falas dos usuarios) que foram apresentadas por escrito aos entrevistado(a)s com o objetivo de explorar abordagens que pudessem mitigar os obstaculos ou barreiras da relacao medico(a) + pessoa na APS. Na terceira fase, os resultados obtidos nas entrevistas com o(a)s medico(a)s foram compartilhados em grupo focal e entrevistas semiestruturadas com os usuarios participantes da primeira fase, visando discutir a (nao) adequacao das proposicoes do(a)s medico(a)s. A pesquisa foi desenvolvida em servicos localizados em dois bairros, um da regiao central, aqui denominado Centro de Saude (CS) Acosta, com grande contingente de estudantes, acesso a diversos servicos publicos e privados e servido por densa malha de transporte publico; e outro denominado CS Bage, que atende duas areas bem distintas: uma de alto poder aquisitivo e idade populacional media acima dos 45 anos e a outra de nivel socioeconomico mais baixo, maior variacao etaria e populacao mais dependente dos servicos publicos de Saude e Educacao. Os criterios de inclusao dos servicos contemplaram: estar vinculado a um distrito no qual o pesquisador responsavel nao atuou como MFC, ter em suas equipes medicos de ambos os sexos e atender populacoes de perfis diversos. Para a participacao dos medico(a)s, utilizou-se o criterio de possuirem titulo de especialista ou residencia em MFC, atuar ha pelo menos dois anos na unidade de saude e/ou ter experiencia na preceptoria de estudantes de Medicina e residentes de MFC. Finalmente, quanto aos usuarios, foram convidados homens entre 20 e 59 anos que se consultaram nos ultimos 12 meses, visando conhecer suas experiencias na consulta medica, e homens da mesma faixa etaria que nao se consultaram nos ultimos dois anos. Ao todo, foram entrevistados 18 homens na primeira fase da pesquisa, sendo 11 do CS Acosta e sete do CS Bage. Na segunda fase, foram entrevistados dois medico(a)s de cada servico participante. Finalmente, na terceira fase, foram realizadas cinco entrevistas semiestruturadas e um grupo focal com quatro participantes da primeira fase. As entrevistas da primeira fase ocorreram entre junho de 2017 e marco de 2018, sendo que oito foram realizadas nos servicos saude, seis no domicilio e quatro em locais publicos. As entrevistas com o(a)s medico(a)s ocorreram de outubro a dezembro de 2018, sendo duas realizadas no domicilio, uma em local publico e uma no servico. A terceira fase ocorreu em marco de 2019, sendo que o grupo focal ocorreu no CS Acosta e tres entrevistas ocorreram no domicilio, uma no servico e uma em local publico. Os locais de realizacao da pesquisa empirica, nas tres fases, foram definidos segundo preferencias dos participantes. O material produzido foi gravado em audio digital, com 23 horas de entrevistas e duas horas de grupo focal. Na sequencia, o material foi transcrito na integra e foi realizada a verificacao da acuracia das transcricoes pelo pesquisador responsavel. A analise do material empirico utilizou o metodo de interpretacao de sentidos18, percorrendo os seguintes passos: leitura compreensiva, visando impregnacao, visao de conjunto e apreensao das particularidades do material da pesquisa; identificacao das categorias; identificacao e problematizacao das ideias explicitas e implicitas nos depoimentos; busca de sentidos mais amplos (socioculturais) subjacentes as falas dos sujeitos da pesquisa; dialogo entre as ideias problematizadas, informacoes provenientes de outros estudos acerca do assunto e referencial teorico do estudo; e elaboracao de sintese interpretativa, procurando articular objetivo do estudo, base teorica adotada e dados empiricos. Destaca-se que, no tocante ao grupo focal, por sua especificidade de buscar o carater coletivo da producao de sentido, a analise privilegiou tambem consensos e divergencias identificadas. Neste artigo, apresentaremos a analise de tres categorias previas relacionadas as experiencias dos homens e dos medico(a)s nos servicos de APS nas tres fases da pesquisa: motivacoes para buscar o servico e a consulta medica; invisibilidade das necessidades e demandas dos homens; e troca frequente de medico(a)s. Essas serao discutidas a partir da articulacao dos referenciais de genero (masculinidades) e comunicacao em Saude. O estudo foi conduzido apos aprovacao da Comissao de etica em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de sao Paulo e da Escola de Saude Publica da Secretaria Municipal de Saude de Florianopolis, SC (parecer n. 1.913.359). As entrevistas e o grupo focal foram realizados apos esclarecimento, leitura, verificacao da compreensao e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos participantes. Os nomes dos participantes e dos servicos de saude sao ficticios para garantir o anonimato e a confidencialidade dos participantes. Resultados e discussao Caracterizacao dos participantes A media de idade dos participantes foi de 43 anos. Dos 18, sete nasceram em Florianopolis, SC, quatro no interior do estado de Santa Catarina, cinco em outros estados e dois fora do Brasil. Quanto ao estado civil, ha oito solteiros, oito casados, um separado e um viuvo. Nove deles tem filhos. Do total, 11 trabalham, quatro estao aposentados, dois estudam e um esta afastado temporariamente por doenca. Quanto a escolaridade, quatro nao completaram o Primeiro Grau, oito completaram o Segundo Grau, um nao completou o Terceiro Grau e cinco completaram o Terceiro Grau. Em termos de autorreferencia de raca/cor, 15 sao brancos, dois pardos e um negro; e quanto a orientacao sexual referida, 14 sao heterossexuais e quatro homossexuais. Quanto ao perfil do(a)s medico(a)s, a media de idade e de 36 anos e atuam na ESF ha 5 anos, em media. Tres deles fizeram residencia em Medicina de Familia e Comunidade e um obteve titulo de especialista em MFC. O quadro 2 compara este perfil com aquele dos demais MFC da rede. As experiencias dos homens e dos medico(a)s nos servicos de APS Motivacoes para buscar o servico e a consulta medica Esta categoria visa discutir a intersecao do binomio saude e doenca e alguns aspectos do cuidado na sua interface com as masculinidades a partir das experiencias mais amplas vivenciadas na APS pelos homens e medico(a)s, como forma de discutir relacao medico(a) + pessoa. e ampla a gama de fatores que levam os homens a consulta. Apenas quatro nao se consultaram no ultimo ano. A maioria procurou o servico diante de uma necessidade presente (sintoma) ou doenca existente, aqui definidos como proativos em relacao ao autocuidado. Ainda assim, o discurso denotava temor em procurar o servico ou a consulta com medico(a) por receio de se descobrirem doentes. Entre os quatro que nao se consultaram no ano anterior, apenas angelo, 58, comerciario, assumiu ter cedido a pressao da esposa. Vilson, 57 anos, casado, demonstrou atitude proativa em seu acompanhamento regular com cardiologista e severa critica aos amigos que nao o fazem; e Vinicius, 40 anos, casado, procurou quando teve quadro sugestivo de depressao. Por fim, Vitor, 40 anos, solteiro e profissional de Saude atuando em um hospital, demonstrou amplo conhecimento teorico no tema e quanto ao sistema de Saude, mas isso nao se traduziu em se consultar: Exatamente acabo nao fazendo, de acordo com o meu protocolo. Mas e questao de tempo e tambem comodidade, no caso eu faco caminhada... entao como aparentemente estou bem de saude, acabo nao solicitando alguns exames pra fazer um check-up, ne? (Vitor) Observa-se, em muitos, uma aproximacao cautelosa ao servico e as consultas clinicas. Robertson19 caracteriza essa atitude como uma tentativa de manter a performance masculina hegemonica intacta. Alem disso, para eles, apresentar sintomas propicia a justificativa para se consultar, pois, em ultima analise, o homem ainda nao considera legitima sua presenca no consultorio quando assintomatico. Outro aspecto relacionado a cautela em busca do cuidado por meio da consulta e o receio de que venham a sofrer restricoes e ate proibicoes quanto a manter habitos que trazem prazer em seu dia a dia20. Afinal, a Medicina ainda se utiliza de tradicionais padroes da educacao sanitaria, nos quais o estimulo ao cuidado em saude passa pela ameaca de morte, na medida em que explora os medos da populacao21. Essa estrategia de comunicacao busca imobilizar o homem, a partir do conhecimento medico e que e estranho ao setting, e vai de encontro a pretensa formacao de vinculo22. Na segunda fase da investigacao, as experiencias dos homens na primeira fase foram apresentadas aos quatro MFCs em forma de vinhetas. A medica Aurora, por exemplo, reflete sobre aspectos envolvidos na tomada de decisao quanto a consulta medica por parte dos homens atendidos, em acordo com a percepcao dos usuarios: [...] alguns nao querem vir [consultar] tambem pra nao descobrirem nada, que fique dependente do servico, de ficar vindo varias vezes. Alem da questao do trabalho, que a pessoa acaba priorizando outras coisas em relacao a saude. (Aurora) Amadeu, 34 anos, operador de telemarketing, destacou na terceira fase da pesquisa o tensionamento entre a proatividade na busca da consulta e a pressao do mercado de trabalho desfavoravel, revelando que a tomada de decisao e influenciada pelo aspecto cultural (“ser homem”) e pelas contingencias socioeconomicas: [...] mas vou complementar aqui a fala da medica [Aurora]. Nao e so isso, nao e so questao cultural, tambem tem a questao estrutural... eu penso que tem essa vulnerabilidade socioeconomica que nao tem como contornar, porque a pessoa, na questao de priorizar o trabalho, precisa ter trabalho... (Amadeu) A preocupacao de Amadeu encontra ressonancia na analise de Hone et al.23 acerca do periodo de declinio economico no Brasil entre 2012 e 2016. Exacerbada pela precarizacao do trabalho, observa-se no periodo a confluencia entre recessao e excesso de mortes, sendo os homens o grupo mais atingido, especialmente os negros ou pardos, entre 30 e 59 anos de idade. Nesse sentido, o MFC Raul problematiza, a partir de sua experiencia clinica, o seu papel diante da carga que o homem se impoe ao privilegiar o trabalho em detrimento do cuidado a saude: Mas, como medico, considero o homem como vitima desse sistema, da sua dificuldade de se desvencilhar das varias obrigacoes: “tem que sustentar casa”, etc., e o restante deixa de ser importante. A gente precisa perceber na nossa vida e levar para o consultorio. O que da sentido para vida? (Raul) Na terceira fase do estudo, quando esta colocacao do medico Raul foi apresentada a Augusto (27 anos, antropologo e economista), ele demonstra ambivalencia: mostra-se proativo em relacao a busca de informacao dentro e fora da consulta para sua doenca celiaca, diagnosticada ha cinco anos, mas reproduz a postura do polo reativo quando, mesmo ciente dos riscos, coloca o trabalho acima do cuidado com sua saude. Neste caso, ve-se que o trabalho vai muito alem de garantir a subsistencia ou reconhecimento do valor do homem pela sociedade: o trabalho define a identidade, como observado no estudo de Dos Santos et al.24. e, sou obrigado, doenca celiaca e [intolerancia a] lactose, eu tenho que me alimentar bem, eu tenho que fazer minha comida, mas eu admito que principalmente a questao psicologica eu provavelmente passo demais, as vezes, do limite de trabalho, de cansaco, de estresse. Por sorte nunca me deu nada, o que me faz continuar focando no erro. (Augusto) Assim, o trabalho, enquanto dimensao de genero valorizada para a afirmacao identitaria dos homens, age como um empecilho para uma melhor relacao dos homens com o(a)s medico(a)s. Percebemos que a relacao estabelecida entre os homens e o trabalho, a partir do referencial das masculinidades, tem construido vinculos mais solidos em detrimento das estrategias de cuidado e protecao. Isto e, os homens permanecem mais proximos e arraigados as referencias sociais relacionadas ao trabalho do que as relacionadas a seu proprio cuidado. A falta de uma comunicacao mais acolhedora que reconheca as singularidades do modo de ser homem (e sua relacao com o trabalho) dificulta uma maior interacao e vinculo entre profissionais e usuarios. Dessa forma, para a promocao de um vinculo/responsabilizacao dos homens com a ideia de cuidado, os medicos e os outros profissionais de saude precisam reconhecer em suas praticas as dimensoes socioculturais de genero valorizadas pelos homens. Ou seja, parece ser necessario uma mudanca na relacao medico + homem usuario, com a reversao do modelo comunicacional em vigor nos servicos de saude25 e a incorporacao de referencias das masculinidades nas interacoes realizadas. A invisibilidade das necessidades e demandas dos homens A dimensao da invisibilidade das necessidades e demandas dos homens na APS tem sido estudada de forma extensa26,27, mas pouco problematizada quanto ao seu impacto na relacao medico(a) + pessoa. Quanto a postura dos profissionais, independentemente do sexo, estudos revelam que alguns podem se mostrar menos atentos na identificacao de problemas de saude por conta dos estereotipos de genero e que tais estereotipos retroalimentam a nao responsabilizacao dos homens usuarios quanto ao cuidado em saude28,29. O(a)s medico(a)s, quando provocados sobre a questao da invisibilidade das demandas dos homens no servico e na consulta, demostraram reconhecer a importancia da questao. Alguns, inclusive, tracam diagnosticos e buscam medidas para mitigar o problema. A medica Alice descreve como adapta sua abordagem de comunicacao conforme a idade dos homens atendidos: [...] na verdade, eu falo: “olha, nessa de ficar relaxado, ficar la fora trabalhando, entao ta ai, nao tem como depois, no futuro, ne, tem que se cuidar agora”. Entao eu vejo como um neon [alerta], quando ele chega mais velho me contando isso, na verdade, eu conforto e falo “nao, mas ainda tem tempo, vamos se cuidar agora, ne?”. (Alice) Virgilio, 36 anos, durante a fase tres da pesquisa, elogia a proposta motivacional de Alice: “[...] ela esta realmente tendo uma abordagem cuidadosa e adequando diante das circunstancias”. Entretanto, Vanderlei traz percepcao diversa: embora admita ter ouvido esse tipo de orientacao, refuta sua eficacia: Eu acho que sim, e um incentivo, ne, mas so que e aquela coisa, eu nao digo que sao todos iguais a mim, mas eu era assim eu nao ligava muito para que o medico dizia, nao prestava muito atencao, ate inclusive hoje tem muita coisa que o MFC me fala, assim, sabe, e eu digo que vou fazer e nao faco. (Vanderlei) Essa fala revela uma dimensao singular, mas nem sempre percebida pelos profissionais de Saude no contexto clinico-assistencial. Fustigados pelas diversas demandas dentro e fora do consultorio, superestimam suas prescricoes como se fossem suficientes para abarcar a complexidade do processo saude-doenca. Tal equivoco tambem ocorre em relacao as mulheres atendidas, mas provavelmente em menor proporcao pelo fato de os profissionais da saude as conhecerem ha mais tempo, alem de terem outras oportunidades de retomar o assunto na consulta de filhos ou parentes idosos. Vanderlei, que e acompanhado pelo mesmo medico de Familia ha cinco anos, reconhece a mensagem recebida, mas ressalta sua autonomia de escolha diante do adoecimento. Portanto, adoecer nao resulta de simples ignorancia, como se costuma apontar nas equipes de Saude, que rotulam os homens como dificeis, resistentes e teimosos. O adoecimento e mediado pelas circunstancias de vida, de trabalho e de escolaridade, frequentemente desfavoraveis. Como um fenomeno social complexo e multidimensional, cabe ao profissional verificar se a proposta comunicada, muitas vezes de forma pontual e alienada daquele que atende, vira a ser aceita e incorporada enquanto mudanca ou adaptacao preconizada. Relacao medico + pessoa e a troca frequente do medico A continuidade do cuidado, por meio da sequencia de consultas, propicia a formacao do vinculo, o que permanece como desafio primario no cotidiano das ESF e a ser vencido dentro da PNAISH, que tem como uma de suas diretrizes o reforco da Politica de Humanizacao do Sistema unico de Saude30. Nesse sentido, Dantas10 sintetizou o ciclo de invisibilidade masculina no sistema de saude, no qual a ausencia do homem na APS resulta no desconhecimento dos profissionais acerca das crencas dos homens sobre o processo saude-doenca, bem como suas motivacoes e possibilidades de autocuidado. No polo dos medicos, e raro que disponham e coloquem em pratica estrategias visando a efetiva comunicacao e que promovam o vinculo e a adesao a um Projeto Terapeutico Singular segundo as premissas da longitudinalidade do cuidado. O desafio para destravar esse ciclo se agiganta a medida que os servicos de APS se encontram pressionados pela alta demanda, que os empurra a funcionar em um padrao queixa-conduta, inviabilizando a reflexao no contexto da interacao de profissionais e homens atendidos. Dessa forma, os homens, embora de modo nao exclusivo, permanecem desconhecidos e alheios ao que a APS poderia proporcionar. A tentativa de quebrar esse ciclo passaria por atividades de promocao de saude nos locais frequentados pelos homens, o tem sido realizado com sucesso em diversas iniciativas no Brasil31 e na Europa32. Contudo, tais mudancas dependem de gestores sensiveis e de equipes atentas e treinadas aos exercicios de masculinidades e a sua implicacao nos cuidados de saude. Essa dimensao e exemplarmente visivel na questao da troca frequente de medico(a) no contexto dos servicos de APS e em seu impacto na relacao medico(a) + pessoa. Pertencentes a um segmento da populacao que, historicamente, frequenta os servicos de saude aquem do preconizado, principalmente na APS, os homens entrevistados se queixaram enfaticamente da questao, especialmente quando suas enfermidades ja se encontram em estagio mais avancado, contexto que nao ocorre apenas no Brasil3. Considerando-se que e ao longo do seguimento do cuidado que o vinculo se fortalece – a medida que cada um elabora e efetiva codigos e acoes visando ao engajamento terapeutico –, tempo e timing sao fatores delicados no molde e refino da relacao medico(a) + pessoa33. O tempo entremeia a sequencia dos encontros que se colocam como degraus articulados, pois envolve a construcao da confianca. O timing se aprende com o tempo ao se perceber o momento adequado de se aproximar com perguntas ou colocacoes que podem estabelecer e fortalecer o vinculo. Toda essa engrenagem que envolve aspectos tecnicos e subjetivos do cuidado pode ser desfeita quando ocorre a substituicao de medico(a)s. Nesse sentido, deve-se incluir a preocupacao com a linguagem nao verbal da comunicacao, posto que esses homens nao estao afeitos ao ritmo das consultas e as diversas demandas que interrompem seu fluxo. Esse aspecto foi enfatizado pelo MFC Rildo, que se preocupa em explicitar suas acoes aos pacientes enquanto e pressionado a responder as inumeras chamadas por parte do servico ao longo do dia, muitas das quais durante o atendimento. Andre, 37 anos, que ja havia desenvolvido familiaridade com a abordagem da MFC acompanhando sua mae nas consultas, ressalta sua experiencia na cidade, desde 2014, com a troca de profissionais: “[...] eu tive uma atencao maior nos ultimos dois anos, assim, que foi ate legal, enfermeiros supercompetentes; mas de medico eu tive varias mudancas... eu tive atendimentos com medicos que foram muito bons, mas foram poucas consultas”. Mesmo Vanderlei, 57 anos, que veio a estabelecer vinculo com seu medico de Familia apos o infarto, em uma relacao de cinco anos – algo raro entre os entrevistados –, ressalta o aviso ao medico de que nao queria ser atendido por estudantes ou medico(a)s residentes. [Medico residente em MFC] le o prontuario e dali ele comeca a me perguntar..., entao, o que acontece ai ele vai la e passa para o MFC, ai depois ele vem ou o [meu medico] vem e fala pra mim, ne? Ou entao o [meu medico] manda dizer pra mim o que eu tenho que fazer, ai ele [residente] diz assim: “[Seu medico] mandou pedir para o senhor fazer isso”. Eu nao gosto, eu nao gosto, porque eu gosto mesmo e de consultar com ele, ne, nao gosto que atrapalhem. Vanderlei conclui sobre a relacao estabelecida com seu medico: “Sim, e assim eu e o [meu medico] a gente, sei la, a gente se entende bem pra caramba, tanto que ele uma vez eu estava meio atrapalhado, ai ele me aconselhou um monte. Entao ele e o medico, meu conselheiro, ele e tudo...”. Diante desses relatos produzidos na primeira fase da pesquisa, Rildo, que trabalhou por cinco anos no mesmo CS, comenta: “[...] a troca representa prejuizo enorme para os pacientes. Eu estou perdendo quatro anos e meio de trabalho, “eu sou seu medico, eu sou a pessoa que cuida de voce, confia em mim pra criar esse vinculo’, ne?”. Como sintese interpretativa, destaca-se a contradicao, reconhecida por homens usuarios e medico(a)s, entre o atributo da longitudinalidade do cuidado na APS33 versus a rotatividade de medicos. A APS tem como seus atributos essenciais a atencao ao primeiro contato, a integralidade, a coordenacao do cuidado e a longitudinalidade30, sendo esta ultima considerada caracteristica central e exclusiva da APS34. A importancia da continuidade, reconhecida por homens usuarios e medico(a)s, da-se em um processo nao linear e muito menos livre de obstaculos, na medida em que a sequencia de consultas fomenta o vinculo, base para tecer a construcao da relacao e, com isso, a adesao a um plano de cuidado. Por outro lado, a queixa recorrente quanto a essa rotatividade35 tem sido percebida como fator debilitante na busca da integralidade visando a consolidacao de uma APS qualificada36. A troca frequente de profissionais guarda relacao direta com o que e explicito nas falas dos usuarios: a impossibilidade de estabelecer confianca, fundamental para a boa comunicacao e para a relacao medico(a) + pessoa. Thom e Campbell37 e Mikesell38, ao definirem a confianca como a crenca de que o medico(a) ira fazer aquilo que e melhor para o paciente, mostram que esta e fundamental para a satisfacao dos usuarios e relevantes na conducao da conversacao medico(a) + pessoa. Aspectos como compreensao da experiencia individual do paciente, expressao de afeto, comunicacao clara e completa, construcao de parceria, demonstracao de respeito e honestidade com o paciente se fazem presentes como modelos ideais nas proposicoes da Clinica Ampliada e Compartilhada39 e do Metodo Clinico Centrado na Pessoa (MCCP)40. Apesar de amplamente defendida como abordagem da MFC11, estas ainda sao pouco incorporadas na pratica, dadas as dificuldades e limitacoes do contexto em que usuarios e medico(a) estao inseridos. Consideracoes finais O presente estudo, ao triangular tecnicas de producao de dados qualitativos e se utilizar de desenho metodologico em fases temporais distintas e articuladas com homens usuarios e medico(a)s de MFC, mostra a complexidade de aspectos envolvidos na comunicacao e na relacao medico(a) + pessoa (homem) no contexto da APS em Florianopolis, SC. A compreensao das falas e dos lugares sociais dos participantes da investigacao perpassa temores pessoais, experiencias previas e a assimetria dos sujeitos em relacao. Considerando tais dimensoes, a partir da discussao de tres categorias, amplamente presentes na literatura que trata da relacao masculinidades-saude, mas pouco exploradas na dimensao comunicacional e na da relacao medico(a) + pessoa, o trabalho buscou aproximar as duas extremidades (profissionais e usuarios) que pouco se tocam e se encaram, apesar de lidarem com inumeras questoes intimas e preciosas, ja que o sofrimento e as necessidades de saude, expressos no adoecimento e na vida, estao em constante (re)producao. Os homens, em sua diversidade, ainda sao um vasto dominio a ser conhecido e integrado no cuidado a saude proposto pela APS. Nesse sentido, os resultados e discussoes apresentados reforcam que os estereotipos de genero relativos a masculinidade tem sido nocivos para a aproximacao dos homens aos servicos; para o conhecimento mutuo de medico(a)s e usuarios; e para a efetiva comunicacao entre estes e os profissionais da assistencia. A invisibilidade de suas necessidades e demandas ainda e presente, mas ganhou cara e contornos que podem ser descritos e aprimorados. A quebra desse ciclo dentro do sistema conta com a politica nacional voltada para o seu cuidado, que tem sido instrumental para alcancar algumas melhorias, mesmo reconhecendo suas limitacoes; alem da proatividade de alguns medico(a)s genuinamente interessado(a)s em estabelecer um cuidado centrado na pessoa e culturalmente informado. As dimensoes do cuidado longitudinal e do vinculo se mostraram estrategicas, especialmente quando se considera que historicamente os homens se colocam distantes das Unidades de Saude, desconhecendo, portanto, os codigos subjacentes a dinamica dos servicos. Somado a isso, dificuldades na comunicacao de diversas ordens criam barreiras para o acolhimento adequado de suas demandas, resultando em maior empecilho para o estabelecimento de uma relacao que se pretende solida. Nos casos de rotatividade e afastamento do profissional medico, observou-se a quebra do vinculo, o que contribui para perpetuar o modelo biomedico no qual o medico(a) e a doenca se tornam centrais, enquanto a pessoa e suas necessidades de saude se tornam secundarias. Portanto, para que se evite tais perdas e se alcance a producao de cuidado, como proposto pela ESF, cabe aos profissionais e gestores orientarem suas acoes e reflexoes em torno do respeito e comprometimento frente a seus principios. Em suma, a pratica da MFC privilegia a excelencia da relacao medico + pessoa para alcancar tal objetivo. Para tanto, necessita da atencao integral e dedicacao de seus profissionais. e uma pratica artesanal e forjada na rotina e no conhecimento adquirido sobre as pessoas, seus familiares, vizinhos e comunidade, o que catalisa a formacao do vinculo ao longo do tempo. A falta de acolhimento, demanda excessiva ou pouca clareza sobre as prioridades e possibilidades de resposta as outras demandas do servico, que se intensificam a medida que ocorre a troca frequente de medico(a)s, dificultam o alcance dos objetivos aos quais a ESF se destina. Considerando-se que a discussao empreendida tambem contribui para o debate sobre o exercicio da pratica clinica e a relacao medico(a) + pessoa em um segmento da populacao reticente e pouco envolvido com o autocuidado e a prevencao, o estudo avanca em termos da producao de conhecimento sobre a relacao homens-saude-doenca-cuidado. Nao obstante, ainda sao enormes os desafios que visam desfazer preconceitos e distanciamentos mutuos entre homens e medico(a)s, para que efetivamente estes possam, dia a dia, discutir e construir essa relacao. #FTE#