III. Português do Brasil: História social

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Curso: FLC0114 - Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa I (Maria Clara, 2019, 19:30)
Livro: III. Português do Brasil: História social
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Data: quarta-feira, 26 jun. 2024, 02:03

Descrição

Português do Brasil: História social

Gravura em Gandavo, 1576 – Cap. IX: Do monstro marinho que se matou na capitania de Sam Vicente no anno de 1564

Autor desconhecido. Do monstro marinho que se matou na capitania de Sam Vicente no anno de 1564. Gravura em Gandavo, P. M. de. História da prouincia Sãcta Cruz que vulgarme[n]te chamamos Brasil. Em Lisboa: na officina de António Gonsaluez: vendense em casa de Ioão Lopez, 1576. Cap. IX. Facsímile digital, Biblioteca Nacional de Portugal. Disponível em:  http://purl.pt/121.

Introdução

Preparação para o trabalho no tópico


Nesta parte do curso estaremos explorando a História Social do Português do Brasil, tópico que separarei em três pontos:

  1. Panorama social e linguístico de Portugal e das Américas no início da Idade Moderna
  2. Fatores sócio-históricos na implementação do português na América (séculos XVI e XVII) 
  3. Fatores sócio-históricos na consolidação do português no Brasil (séculos XVIII, XIX e XX)

Exploraremos estes pontos por meio da leitura e discussão de quatro textos fundamentais: Câmara Jr. (1975); Castilho (2010, Cap. 3); Ilari e Basso (2009, Cap. 2); e Teyssier (2014, Cap. 4). Como enriquecimentos, trabalharemos com os seguintes itens da bibliografia complementar: Boxer (2002[1969]), Castilho (1992), Galves (2007), Lucchesi (2001; 2004), Lobo (2015), Oliveira e Lobo (2009). Para começar a entrar no tema, analisaremos juntos em sala, os primeiros 15 minutos do filme Desmundo (Fresnot, 2002). Seguem mais abaixo as referências e ligações para os textos fundamentais, a leitura complementar, e as leituras e materiais de apoio. 



'Desmundo'

  Direção de Alain Fresnot,
  Roteiro de Sabina Anzuategui 

   

   

Fresnot A, diretor; Anzuategui S, roteirista. Desmundo. [filme]. Rio de Janeiro: AF Cinema e Vídeo; 2002.


Trechos para análise e debate: 

  1. 03:16 (-1.35.00): "... a falta que nesta terra há de mulheres com que os homens casem e vivam em servício de Nosso Senhor"
  2. 04:38 (-1.34.00): "Me pesa ler, vou dar ao principal"
  3. 04:52 (-1:33:44): "Não vejo nem migalha de donas"
  4. 05:10 (-1:33:25): "São bem de saúde?"
  5. 06:30 (-1:32:00): "Onde são minhas frores? Ah... são fremosas!"
  6. 09:35 (-1:29:02): "Roga ao padre que me torne ao convento"
  7. 10:12 (-1:28:26): "Seêncio! São aquestos os negros tupinambás? Os tales que aprisionaram os blancos?"
  8. 12:03 (-1:26:34): "Melhor era se el-Rei nos mandara armas para nossa defensão"
  9. 14:00 (-1:24:40): "Dona Oribela de Covilhã!"


Carta de Manoel da Nóbrega ao Rei  (1552)

A EL-REI D. JOÃO
(1552)

JESUS
Nosso Senhor Jesus Christo dê muita graça e consolação a
Vossa Alteza sempre. Amen.
(...)

Já que escrevi a Vossa Alteza a falta que nesta terra ha de
mulheres, com quem os homens casem e vivam em serviço de Nosso
Senhor, apartados dos peccados, em que agora vivem, mande
Vossa Alteza muitas orphãs, e si não houver muitas, venham de
mistura dellas e quaesquer, porque são tão desejadas as mulheres
brancas cá, que quaesquer farão cá muito bem á terra, e ellas se
ganharão, e os homens de cá apartar-se-hão do peccado.

Esta terra é tão pobre ainda agora, que dará muito desgosto
aos officiaes de Vossa Alteza que lá tem com terem muito gasto,
e pouco proveito ir de cá, maiormente aquelles, que desejam mais
irem de cá muitos navios carregados de ouro, que para o Ceu,
muitas almas para Christo; si se não remediar em parte, com Vossa
Alteza mandar moradores que rompam e queiram bem á terra,
e com tirar officiaes tantos e de tantos ordenados, os quaes não querem
mais que acabar seu tempo e ganhar seus ordenados, e terem
alguma acção de irem importunar a Vossa Alteza; e como este é
seu fim principal, não querem bem á terra, pois têm sua affeição
em Portugal; nem trabalham tanto para favorecer como por se
aproveitarem de qualquer maneira que puderem; isto é geral, posto
que entre elles haverá alguns fora desta regra


(Fonte: Nóbrega, Manuel da. A El-rei D. João. In: Cartas Avulsas, 1550-1568. Edição de Alfredo do Valle Cabral. Rio de Janeiro: Officina Industrial Gráfica/Academia Brasileira, 1931).



Textos fundamentais

Leituras e outros materiais complementares

1 Panorama social e linguístico de Portugal e das Américas no início da Idade Moderna


1.1 Portugal no início da Idade Moderna


O Cerco de Lisboa e a 'Revolução de Avis' - consequências

cerco de Lisboa

Imagem: Batalha de Aljubarrota, 1384. Fonte: Anciennes et nouvelles chroniques d'Angleterre, c 1470-c 1480. British Library, Royal MS 14 E -  IV. http://www.bl.uk/manuscripts/Viewer.aspx?ref=royal_ms_14_e_iv_f001r


A Dinastia de Avis (1385-1580)


D. João I (1357-1433), o da Boa Memória, Mestre de Avis (r. 1385 - 1433)
D. Duarte (1391-1438), o Eloquente[nota 1] (r-1433 - 1438)
D. Afonso V (1432-1481), o Africano (r. 1438 - 1481)
D. João II (1455-1495), o Príncipe Perfeito (r. 1481 - 1495)
D. Manuel I (1469-1521), o Venturoso e o Felicíssimo (r. 1495 - 1521)
D. João III (1502-1557), o Piedoso (r. 1521 - 1557)
D. Sebastião I (1554-1578), o Desejado (r. 1557 - 1578)
D. Henrique (1512-1580), o Casto (r. 1578 - 1580)
D. António (1531-1595), o Prior do Crato (r. 1580 - 1581)


D Sebastiao

Figura: D. Sebastião, o Desejado - XVI rei de Portugal; reinou entre 1557 e 1578. Fonte: http://www.arqnet.pt/portal/portugal/temashistoria/sebastiao.html


avis

Figura: Emblema da 'Ordem de Avis' (Ordem Militar de São Bento de Avis), fundada em 1146.

cristo

Figura: Emblema da 'Ordem de Cristo' ( Ordem dos Cavaleiros de Nosso Senhor Jesus Cristo), fundada em 1319 e herdeira, em Portugal, dos privilégios da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão (conhecidos como 'Templários')


Panorama e cronologia dos empreendimentos marítimos portugueses (1336-1542)

Mapa mar portugues


Situação social e demográfica em Portugal em fins da Idade Média

Charles Boxer, (1981[1969]):


BOXER 28

Cf. Boxer, (1969[1981]), p. 28.


1.2 O 'Brasil' em 1500


Estimativas da população indígena no território brasileiro no início do séc. XVI


...qualquer estimativa da população global [indígena] de 1500 terá de levar em conta fatores históricos, tais como os efeitos diferenciados das doenças sobre povos distintos e os movimentos espaciais de grupos indígenas em decorrência do contato, entre outros. 
As estimativas mais ponderadas, que oscilam entre dois e quatro milhões para o território brasileiro, cometem sério enganos ao transportar cálculos referentes aos séculos XVII, XVIII ou XIX ao marco zero de 1500. 

(MONTEIRO, John. A Dança dos Números, in Tempo e Presença, São Paulo: CEDI, ano 16, n. 273, 1994; meus grifos.)
(ver também: MONTEIRO, John. Tupis, Tapuias e historiadores: estudos de história indígena e de indigenismo. Tese de Livre-docência. Universidade Estadual de Campinas, 2001. Disponível em http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Amonteiro-2001/Monteiro_2001_Tupis_tapuias_historiadores.pdf)


As estimativas sobre os contingentes populacionais dos povos que habitavam a região que agora denominamos Brasil variam mais de acordo com os interesses políticos de seus autores do que com relação à metodologia adotada. (...) Alguns autores estimam a população indígena no século XVI entre 2 e 4 milhões de pessoas, pertencentes a mais de 1.000 povos diferentes; Darcy Ribeiro afirma que desapareceram mais de 80 povos indígenas somente na primeira metade do século XX, sendo que a população total teria diminuído, de acordo com esse autor, de 1.000.000 para 200.000 pessoas(1). O extermínio de muitos povos indígenas no Brasil por conflitos armados, as epidemias, a desorganização social e cultural são processos de depopulação que não podem ser tratados sem uma análise das características internas e da história de cada uma dessas sociedades. Estudos sobre os diferentes impactos que uma mesma epidemia teve sobre diferentes povos ainda estão por surgir; as relações entre esses povos e diferentes agências indigenistas ou frentes de colonização e seus impactos na dinâmica demográfica de suas populações também não foram ainda estudadas.

(AZEVEDO, Marta. Quantos eram, quantos serão? Instituto Sócio-ambiental. [Internet]. https://pib.socioambiental.org/pt/Quantos_eram%3F_Quantos_ser%C3%A3o%3F; meus grifos.)


Panorama linguístico do território brasileiro no início do séc. XVI


Aryon Rodrigues, 2005: 

A única estimativa de que dispomos sobre a diversidade das línguas indígenas existentes no Brasil há 500 anos, antes do início da colonização desta parte da América do Sul pelos europeus, é a que foi apresentada, em 1992, na Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (Rodrigues, 1993a, 1993b). Segundo essa estimativa, teria sido de cerca de 1,2 mil o número de diferentes línguas faladas em nosso atual território pelos povos indígenas. O ponto de partida para essa estimativa foi uma relação de 76 povos indígenas que se encontravam numa estreita faixa paralela à costa leste, desde o rio São Francisco, ao norte, até o Rio de Janeiro, ao sul, feita pelo padre jesuíta Fernão Cardim no século XVI (Cardim, 1978 [manuscrito de 1584]). Nessa lista, Cardim referiu-se explicitamente à identidade ou à diferença das línguas faladas por esses povos, deixando claro que, ao todo, se tratava de 65 línguas distintas entre si e distintas da língua dos índios da costa, que eram os tupinambás (que incluem os tupiniquins, caetés, potiguaras, tamoios etc.), com os quais os portugueses mantinham contacto. Como alguns nomes na lista estão claramente na língua dos tupinambás – a mesma que hoje também é chamada de tupi antigo e que no século XVII foi denominada língua brasílica – e os demais estão grafados à maneira como os jesuítas escreviam essa língua, pode-se supor que as fontes de informação tenham sido os índios tupinambás e que aquela enumeração representasse o conhecimento destes sobre seus vizinhos mais imediatos. Ela deve ser bastante representativa para a área coberta, embora possa não ser exaustiva. Apesar da grande diversidade de povos nativos no interior mais imediato à costa atlântica, uma característica da colonização européia do Brasil, não só da portuguesa, mas também das tentativas francesas, foi a de privilegiar o conhecimento do idioma dos tupinambás que era, como já no fim do século XVI foi consignado no título da gramática feita por José de Anchieta, “a língua mais usada na costa do Brasil” (Anchieta, 1595). Para a comunicação com os outros povos recorria-se a intérpretes indígenas.

(...)

A redução de 1200 para 180 línguas indígenas nos últimos 500 anos foi o efeito de um processo colonizador extremamente violento e continuado, o qual ainda perdura, não tendo sido interrompido nem com a independência política do país no início do século XIX, nem com a instauração do regime republicano no final desse mesmo século, nem ainda com a promulgação da “Constituição Cidadã” de 1988. Embora esta tenha sido a primeira carta magna a reconhecer direitos fundamentais dos povos indígenas, inclusive direitos lingüísticos, as relações entre a sociedade majoritária e as minorias indígenas pouco mudou. Graças à Constituição em vigor está havendo diversos desenvolvimentos importantes para muitas dessas minorias em vários planos, inclusive no acesso a projetos de educação mais específicos e com consideração de suas línguas nativas. Entretanto, ainda são grandes a hostilidade e a violência, alimentadas não só por ambições de natureza econômica, mas também pela desinformação sobre a diversidade cultural do país, sobre a importância dessa diversidade para a nação e para a humanidade e sobre os direitos fundamentais das minorias.

(RODRIGUES, Aryon Dall'Igna. Sobre as línguas indígenas e sua pesquisa no Brasil. Ciência e Cultura,  São Paulo , 2005,  v. 57, n. 2, p. 35-38, http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v57n2/a18v57n2.pdf; meus grifos.)


fausto

Figura: "Mapa da distribuição dos tipos culturais da América do Sul segundo Julian Steward", Mapa 1 em FAUSTO, Carlos. Os Índios antes do Brasil. 6a ed. São paulo: Zahar; 2010.


História dos habitantes da costa brasileira
(ou: a questão da 'Rota dos Tupinambá)


rota1

Figura: Rotas de expansão dos povos Tupi, conforme Brochado (1984), em NOELLI, Francisco. Rotas de expansão dos Tupi. Revista de Antropologia, 1996, v. 39, n. 2.


rota2

Figura: "Mapa sobre as rotas migratórias tupinambá e guarani nos séculos XVI e XVII", em PEREIRA, César. e PRATES, Maria Paula. Nas margens da estrada e da história Juruá. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 97-136, jul./dez. 2012.


tupi na costa

Figura: Presença indígena na costa, em PEREIRA, César. e PRATES, Maria Paula. Nas margens da estrada e da história Juruá. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 97-136, jul./dez. 2012.


Representações europeias dos 'Tupinambás' 

ou


Das terríveis histórias e descrições dos povos
selvagens, nus, e cruéis comedores de gentes
do Novo Mundo


Staden 1

Gravura: “Dois Chefes Tupinambás com os Corpos Adornados por Plumas” (em Staden, Hans: Warhaftige Historia vnd beschreibung eyner Landtschafft der Wilden, Nacketen, Grimmigen Menschfresser Leuthen, in der Newenwelt America, 1557).

Staden 2

Gravura: “Figura das cabanas” (em Staden, Hans: Warhaftige Historia vnd beschreibung eyner Landtschafft der Wilden, Nacketen, Grimmigen Menschfresser Leuthen, in der Newenwelt America, 1557).


Staden 3

Gravura: “Como fazem fogo” (em Staden, Hans: Warhaftige Historia vnd beschreibung eyner Landtschafft der Wilden, Nacketen, Grimmigen Menschfresser Leuthen, in der Newenwelt America, 1557).


Staden 4

Gravura: “Onde dormem” (em Staden, Hans: Warhaftige Historia vnd beschreibung eyner Landtschafft der Wilden, Nacketen, Grimmigen Menschfresser Leuthen, in der Newenwelt America, 1557).


Staden 5

Gravura: “Como dançaram comigo em frente às cabanas” (em Staden, Hans: Warhaftige Historia vnd beschreibung eyner Landtschafft der Wilden, Nacketen, Grimmigen Menschfresser Leuthen, in der Newenwelt America, 1557).


Staden 6

Gravura: “Execução de um Prisioneiro que Está Preso à Mussurana” (em Staden, Hans: Warhaftige Historia vnd beschreibung eyner Landtschafft der Wilden, Nacketen, Grimmigen Menschfresser Leuthen, in der Newenwelt America, 1557).


Staden 7

Gravura: “Assando os Pedaços do Corpo do Prisioneiro” (em Staden, Hans: Warhaftige Historia vnd beschreibung eyner Landtschafft der Wilden, Nacketen, Grimmigen Menschfresser Leuthen, in der Newenwelt America, 1557).


America tertia pars

Gravura: "His dictis, simul clauam occipiti impingit tanto impetu, vt cerebrum dispergatur. Adsunt quamprimum mulieres, cadauer abripiunt, flammis vtsulat, hinc cutem circumquaque deradunt , vt truncus totus niteat, tum ligno inferiorem gutturem obturant, ne quid inter tractandum amittat forte". em Americae tertia pars : memorabile provinciæ Brasiliæ historiam contines, 1592


1.3 "Americen Americus retexit, et semel vocauit inde semper excitam"

America

Figura: América, Jan Van der Straet (Johannes Stradanus). Gravura, 1587-89. 




2. Fatores sócio-históricos na implementação do português na América (séculos XVI e XVII)

Bibliografia principal:


2.1 "Grandes territórios desconhecidos"

Os grandes territórios desconhecidos da história sociolingüística do Brasil (cf. Lucchesi, 2004):

1. A participação do elemento autóctone na formação do português brasileiro;
2. O componente africano na formação da população e da cultura brasileira;
3. O papel desempenhado pelos imigrantes europeus e asiáticos.


2.2 A evolução demográfica no Brasil desde o século XVI (esboços)


Demografia - tabela


Demografia - grafico


Ainda Lucchesi, 2004:

"Consideramos que os principais fatores que impediram a ocorrência, na história lingüística do Brasil, de um processo de crioulização do português, em níveis socialmente representativos e com uma duração significativa, são os seguintes: 

(i) a proporção entre a população de origem africana e branca, que permitia um nível de acesso maior à língua alvo do que o observado nas situações típicas de crioulização; 

(ii) a ausência de vida social e familiar entre as populações de escravos, provocada pelas condições sub-humanas de sua exploração, pela alta taxa de mortalidade e pelos sucessivos deslocamentos; 

(iii) o uso de línguas francas africanas como instrumento de interação dos escravos segregados e foragidos; 

(iv) o incentivo à proficiência em português; 

(v) a maior integração social dos escravos urbanos, domésticos e das zonas mineradoras; 

(vi) a miscigenação racial. 

Esses fatores podem explicar por que não se constituiu de forma estável e representativa uma língua crioula no Brasil, apesar da forte presença africana em sua história."


3. O "Ultramar", ou "Por que o Português Brasileiro é como é?"

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