II. Formação histórica da língua portuguesa

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Curso: FLC0114 - Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa I (Maria Clara, 2019, 19:30)
Livro: II. Formação histórica da língua portuguesa
Impresso por: Usuário visitante
Data: terça-feira, 7 mai. 2024, 19:38

Descrição

Leal conselheiro

Introdução

Preparação para o trabalho no tópico


Nesta parte do curso estaremos explorando a Formação Histórica da Língua Portuguesa entre o século XIII e o XVI, tópico que separarei em quatro pontos:

  1. Formação do português no espaço 'românico'
  2. O 'Português Arcaico' (das origens a 1250)
  3. O 'Português Arcaico' (1250-1500)

Exploraremos estes pontos por meio da leitura e discussão de quatro textos fundamentais: Teyssier (2002[1984], capítulos 1 a 3);  Castro (2004); Mattos e Silva (2006, parte introdutória); e Ilari e Basso (2009, capítulo 1) - cf. referências completas abaixo. Esses títulos abordam cada um dos pontos acima com diferentes graus de profundidade e em diferentes partes de cada livro; assim, para cada ponto dentro do tópico, irei sugerir previamente uma sequência de leitura (veja no menu ao lado o exemplo inicial para o ponto 1. Formação do português no espaço 'românico'). 

Para começar a entrar no tema, leremos juntos em sala, antes de qualquer outra coisa, o pequeno trecho do livro O Português Arcaico, de Rosa Virgínia Mattos e Silva onde ela explica, de modo bem resumido e muito pertinente para nós, justamente 'por que estudar o Português Arcaico?' (Mattos e Silva, 2006, páginas 15-17). Junto com isso, rediscutiremos ainda alguns pontos abordados no texto da mesma autora que já lemos para o Tema 1, Diversidade e unidade: a aventura linguística do português (Mattos e Silva, 2002[1987]).

Entretanto, é importante notar que, em todo este percurso pela história da língua portuguesa, estarei partindo, necessariamente, de um ponto de vista teórico sobre a 'história das línguas' - ao menos, de algum ponto de vista sobre sua pertinência no campo dos estudos da linguagem e sobre as principais questões epistemológicas e problemas metodológicos envolvidos no seu estudo. Ao longo das aulas procurarei esclarecer minha abordagem do assunto; mas para quem quiser ter uma visão mais aprofundada dos conceitos com que trabalharemos, recomendo a leitura (complementar aos textos fundamentais) do meu texto de 2006, Linguística Histórica (Paixão de Sousa, 2006). Ainda como leituras complementares, sugiro o Curso de História da Língua Portuguesa (Castro, 1999), que aprofunda muitos pontos tratados mais resumidamente em Castro (2004), e a totalidade do livro O Português Arcaico (Mattos e Silva, 2006), para aqueles que tiverem especial interesse no tema da formação do português.

Por fim, as leituras recomendadas em torno do tema da 'formação da língua' pressupõem conhecimentos em fonética e fonologia do português aos quais vocês serão apresentados mais tarde no curso, por exemplo na disciplina Fonética e fonologia do português, da grade de Língua portuguesa no terceiro semestre. Em sala, em preparação para o tema e ao longo das demais aulas, iremos discutir os principais pontos teóricos da mudança fonética pertinentes à história da língua - tanto na passagem do latim ao português, como ao longo do português arcaico, como na formação do português brasileiro. Nesses momentos, tentarei esclarecer alguns aspectos básicos de fonética e fonologia da língua - e, complementarmente, buscarei discutir a razão por trás do lugar proeminente que as mudanças fonéticas ocupam na literatura sobre a história da língua (o que, como veremos, está fundamentalmente ligado à formação da própria disciplina 'Linguística Histórica', remetendo à minha recomendação da leitura complementar de Paixão de Sousa, 2006).

Ainda assim, para acompanhar as leituras pode ser interessante vocês terem à mão, para consulta, alguns textos introdutórios de fonética e fonologia, em particular para esclarecer alguns aspectos terminológicos, e outros materiais que podem ajudar a esclarecer essa terminologia. Sugiro abaixo alguns títulos bons nesse sentido, e um material digital interativo muito bem-feito. Alguns quadros e ilustrações retirados desses manuais especialmente esclarecedores quanto à terminologia encontrada nos textos deste tópico são reproduzidos também mais abaixo.

Seguem portanto as referências para os textos fundamentais, a leitura complementar, e as leituras e materiais de apoio.

Textos fundamentais


Leituras complementares


Leituras e material de apoio:
noções de fonética e fonologia


  • Silva, Taís Cristófaro. Fonética e fonologia do português: roteiro de estudos e guia de exercícios. São Paulo: Contexto; 1999. [p. 23-108].
  • Seara, Izabel Christine; Nunes, Vanessa Gonzaga; Lazzaroto-Volcão, Cristiane. Fonética e Fonologia do Português Brasileiro. Florianópolis: LLV/CCE/UFSC; 2011. [Unidade A, p. 9-64].
  • Projeto Sonoridade em Artes, Saúde e Tecnologia. Fonética articulatória. Página web. UFMG; 2008. http://fonologia.org/fonetica_articulatoria.php


Diagramas


Aparelho Fonador
1. Esquema detalhado dos órgãos articulatórios ativos e passivos do aparelho fonador humano. Fonte: Seara et al., 2011.


Cavidade Oral
2. Esquema ressaltando os alvéolos, o ápice e lâmina da língua e a úvula. Fonte: Silva, 1999.


Quadro fonético geral consoantes
3. Quadro fonético sonoro baseado no Quadro Fonético Internacional
 (IPA, 2005) - Consoantes com mecanismo de corrente de ar pulmonar. Os fones em verde são presentes no português brasileiro. Fonte: http://fonologia.org/quadro_fonetico.php

Quadro das vogais
4. Diagrama vocálico com a terminologia pertinente a cada zona. Fonte: Silva, 1999.


Quadro Vogais
5. Diagrama vocálico com a localização das vogais mais comuns do PB com exemplos. Fonte: Seara et al., 2011.


Tabela Vogais Tônicas
6. As vogais tônicas no português. Fonte: Silva, 1999.


Tabela Consoantes
7. Símbolos fonéticos consonantais relevantes para transcrição do português. Fonte: Silva, 1999.


Tabela Símbolos Concorrentes
8. Símbolos IPA x Símbolos concorrentes. Fonte: Silva, 1999.


Quadro de consoantes, latim

Quadro consoantes português
9. Quadro consonantal do latim versus quadro consonantal do português - acompanhamento do texto em Mattos e Silva 2006:74. Fonte: minha elaboração.

1. Formação do português no espaço 'românico'

 

Preparação

Textos fundamentais - sequência sugerida de leitura:

  1. Ilari e Basso (2009), Capítulo 1 (parcial) [p. 13-21]
  2. Teyssier (2014[1982]), Capítulo 1 [p. 6-19]
  3. Castro (2004), Capítulo II [p. 53-81]
Textos complementares pertinentes:

  • Castro (1991), Capítulo 3 [p. 66-161]
  • Ilari (1992)

Além do texto complementar acima, segue válida a sugestão do material de apoio de leitura (manuais de fonética).



Anotações


Textos citados nas anotações a seguir:

  • Castro, Ivo. Introdução à História do Português. Lisboa: Edições Colibri, 2004. 2a ed, 2006.
  • Ilari, Rodolfo. Lingüística Românica. São Paulo: Ática, 1992.
  • Eliot, Simon ; Rose, Jonathan (Eds.). A Companion to the histroy of the book. Oxford : Balckwell, 2007.
  • Maurer Jr, Teodoro. A Unidade da România Ocidental. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, 1952.
  • Teyssier P. História da língua portuguesa; 2014[1982]. 



1.1 Noção de Romania

ano 300

Mapa: Domínios romanos em 300dc. Fonte: Projeto Euratlas, “Digital Cartography, Historical GIS Maps and Antique Maps of Europe”, http://www.euratlas.net/history/europe/300/index.html

 

 

Linguas romanicas

Mapa: Línguas românicas modernas - Europa. Fonte: Wikipedia, https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Romance_languages.png

  

1.1.1 Fatores de unidade na ‘România’, durante o império e ao longo da Idade Média

 

“(...) o Império sobreviveu como um ideal de ordem política durante toda a Idade Média; a unidade lingüística e cultural dos territórios romanizados não impressionou menos os antigos, romanos ou bárbaros. Para denominar esta unidade lingüística e cultural, emprega-se o termo Romania [séc. V].

Romania deriva de romanus, e este foi o termo a que naturalmente recorreram os povos latinizados, para distinguir-se das culturas barbáricas circunstantes: assim, os habitantes da Dácia, isolados entre os povos eslavos, autodenominaram-se romîni, e os réticos se autodenominaram romauntsch, para distinguir-se dos povos germânicos que os haviam empurrado contra a vertente norte dos Alpes suíços. 

Sobre romanus formou-se o advérbio romanica, 'à maneira romana', 'segundo o costume romano', e a expressão romanice loqui se fixou para indicar as falas vulgares de origem latina, em oposição a barbarice loqui, que indicava as línguas não românicas dos bárbaros, e a latine loqui, que se aplicava ao latim culto da escola. Do advérbio romanice, derivou o substantivo romance, que na origem se aplicava a qualquer composição escrita em uma das línguas vulgares”. (Ilari, 1992:50, meus grifos)

 

"Falar latim era latine ou romane loqui no latim clássico, mas no fim do Império apareceram as expressões romanice parabolare e romanice fabulare, 'falar à moda de Roma, nem exactamente em latim nem em língua de bárbaros'. Isso corresponde à situação de transição que se viveu na Europa Ocidental no período que medeia entre o Império e os estados medievais. Quando estes se constituíram e adquiriram nomes próprios, a designação geral de România foi perdendo parte da sua razão de ser". (Castro 2006:54, meus grifos)



Fatores da manutenção do Latim na porção centro-ocidental do antigo império

1) O Latim como língua de escrita
2) O cristianismo como fator de união cultural
3) Os “Estados Bárbaros”: “Reinos Romanos”

 

scriptoria

Manuscript culture persisted in its essentials across the whole medieval millennium from 500 to 1500: the use of parchment, the privileging of the clergy, the use of the Latin language and of Latin alphabetical script (even for writing vernacular languages), the practice of illumination, the form of the codex itself – all these features persisted, though in varied forms”. (Clanchy, In Eliot e Rose, 2007:194, meus grifos)



Imagem: Full-page miniature of St Dunstan at work, from Smaragdus of St Mihiel’s Expositio in Reglam S Benedicti, England (Canterbury), c. 1170 – c. 1180, Royal MS 10 A XIII, f. 2v – Fonte: http://britishlibrary.typepad.co.uk/digitisedmanuscripts/2014/06/the-burden-of-writing-scribes-in-medieval-manuscripts.html


 




A unidade lingüística da România para além da cultura de escrita: o “Latim Vulgar”

- Modalidade do Latim (Sócio-dialetal)?
- Estágio Histórico do Latim ?

 “...a grande diferença entre as duas variedades do latim não é cronológica (o latim vulgar não sucede ao latim clássico), nem ligada à escrita, senão social. As duas variedades refletem duas culturas que conviveram em Roma: de um lado uma sociedade fechada, conservadora e aristocrática, cujo primeiro núcleo seria constituído pelo patriciado; de outro, uma classe social aberta a todas as influências, sempre acrescida de elementos alienígenas, a partir do primitivo núcleo da plebe”. (Ilari, 1992:61, meus grifos)

o ministro das finanças é o veneno

Cucuta a rationibus Neronis Augusti
O ministro das finanças de Nero Augusto é o veneno

Imagem: Grafiti em muro de Pompéia. Fonte: FUNARI, P. Paulo. A vida quotidiana na Roma Antiga. Editora Annablume, 2003.



Em contraste: fatores da não-manutenção do Latim em porções do antigo Império

(cf. Ilari, 1992):

- Romanização Superficial (Germânia, Britânia, Caledônia)
- ‘Superioridade Cultural’ dos Vencidos (Grécia, Mediterrâneo Oriental)
- Superposição Maciça de Populações não-Românicas (África, Península Ibérica)


 

1.1.2 Fatores de diversificação do ‘Romance’, durante o império e ao longo da Idade Média

 

É comum entre os romanistas admitir que à relativa uniformidade que o latim apresentou durante o período imperial foi-se substituindo no período românico uma forte tendência à diversificação regional.

 Como resultado dessa tendência, no final do primeiro milênio, a România apresentava-se fragmentada numa quantidade de dialetos de origem latina e foi nesse panorama de diversificação que, em seguida, alguns dialetos, projetados pelo prestígio político, econômico ou cultural da região em que eram falados, se impuseram aos dialetos vizinhos, transformando-se com o tempo em línguas nacionais.

 Como se explica a dialetação do latim vulgar? Em termos muito gerais, vale a explicação de que a variação no tempo e no espaço é inerente à língua, a qual é parecida sob esse aspecto com as demais instituições sociais. Premidos pela necessidade de tornar sua fala mais exata ou mais expressiva, os falantes criam o tempo todo palavras e construções sintáticas novas com os materiais disponíveis em sua própria língua; mudanças fônicas surgem pelas tensões paradigmáticás que ocõrrem no interior do sistema e pelas tensões sintagmáticas que ocorrem entre sons contíguos na fala; em grau menor, alterações de todo tipo podem resultar de fatores “ externos” , isto é, do contacto entre línguas diferentes.” (Ilari, 1982:135, meus grifos)

 

“Fatores externos”: as noções de ‘substrato’ e ‘superstrato’

  • Línguas de 'substrato', na romanística, são as línguas (autóctones ou não) faladas nas diferentes partes do império romano antes da romanização, e que são abandonadas em favor do latim.

Península Itálica e Ilhas:

Umbro, Osco

Grego, Celta

Etrusco, Lígure

Fenício (Ilhas)

Indo-Europeu (r. Itálico)

Indo-Europeu (r. Ilírico)

Não Indo-Eupropéias

Semita

Províncias Ocidentais

ex. Ibéria:

Ibero

Vascão

Celtibero

Não Indo-Europeu

Não Indo-Europeu

Indo-Europeu

 

  • Línguas de 'superstrato', na romanística, são as línguas originalmente faladas pelos diferentes povos que passam a habitar as diferentes partes do império romano depois do fim da unidade política romana, mas que não se estabelecem nessas partes como 'línguas-alvo'.

 

400

Mapa: A Europa em 400dc. Fonte: Projeto Euratlas, “Digital Cartography, Historical GIS Maps and Antique Maps of Europe”, http://www.euratlas.net/history/europe/300/index.html

 

 

1.1.3 Dos "Romances" às "Línguas Românicas"

 Linguas Romanicas


 

1.1.3 Mas nem tudo é o que parece...


A "Fragmentação" do Antigo Império Romano e a "Unidade da România Ocidental"

Teodoro Maurer Jr. A Unidade da România Ocidental,1952.

 

"[A] notável semelhança das línguas românicas do Ocidente - desde Portugal até a Itália - não se deve apenas à sua origem comum no latim vulgar do Império Romano, como tantas vezes se parece acreditar, mas é o resultado de uma unidade contínua de contacto ininterrupto entre todas as línguas da família, de modo que muitas inovações posteriores à destruição do Império pela invasão dos bárbaros se disseminaram por toda a România Ocidental, enriquecendo o seu léxico e alterando a cultura e, às vezes, a própria morfologia das línguas que a constituem" (Maurer Jr., 1952:9, meu grifo)

 

"A unidade da România Ocidental é uma ilustração magnífica da importância dos fatores sociais na formação das línguas" (Maurer Jr., 1952:10, meu grifo)

 

1.1.4 Cronologias: do latim às línguas românicas

 

A partir de Maurer Jr., 1952

cronologia Maurer

 

A partir de Ilari, 1992

(i. Adaptação do Quadro em Ilari, 1992:64 [*])

cronologia Ilari



1.2 Romanização da Península Ibérica


1.2.1 O período pré-românico

(Ou: a questão dos substratos)


povos pre-romanicos

Figura: Povos e línguas pré-românicas na Península Ibérica (200 ac). Fonte: da Silva, Luís Fraga, 2004; Associação Campo Arqueológico de Tavira, http://geohistorica.net/arkeotavira.com//Mapas/Iberia/Populi.htm


400

Figura: A Península Ibérica em 400dc. Fonte: Projeto Euratlas, “Digital Cartography, Historical GIS Maps and Antique Maps of Europe”, http://www.euratlas.net/history/europe


1.2.2 Etapas da romanização e o contraste norte(noroeste)/sul(sudeste)

"Os romanos desembarcam na Península no ano 218 a.C. A sua chegada constitui um dos episódios da Segunda Guerra Púnica. Dão cabo dos cartagineses no ano de 209 e empreendem, então, a conquista do país. Todos os povos da Península, com exceção dos bascos, adotam o latim como língua e, mais tarde, todos abraçarão o cristianismo. (…)

A Península é inicialmente dividida em duas províncias (ver mapa 1), a Hispânia Citerior (a região nordeste) e a Hispânia Ulterior (a região sudoeste). No ano 27 a.C., Augusto divide a Hispânia Ulterior em duas províncias: a Lusitânia, ao norte do Guadiana, e a Bética, ao sul. Posteriormente, entre 7 a.C. e 2 a.C., a parte da Lusitânia situada ao norte do Douro, chamada Gallaecia, é anexada à província tarraconense (a antiga Hispânia Citerior). Cada província subdivide-se num determinado número de circunscrições judiciárias chamadas conventus. (...)

Nesse território, assim definido, a romanização fez-se de maneira mais rápida e completa no Sul do que no Norte. Os gallaeci, em particular, que habitavam a zona mais setentrional, se comparados aos outros povos, conservaram por mais tempo elementos da sua própria cultura.

(Teyssier, 1982, meus grifos)

administracao romana

Figura: Divisões administrativas romanas da Hispania, 220ac-19dc. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Conquista_Hispania-pt.svg


1.2.3 O processo de "desromanização" (?) da Península

(Ou: a questão dos superstratos)


"Em 409, invasores germânicos — vândalos, suevos e alanos — afluem ao sul dos Pireneus, seguidos, mais tarde, pelos visigodos. Assim começa um dos períodos mais obscuros da história peninsular, que terminará em 711, com a invasão muçulmana. Os alanos foram rapidamente aniquilados. Os vândalos passaram para a África do Norte. Os suevos, em compensação, conseguiram implantar-se e, por muito tempo, resistiram aos visigodos, que tentavam reunificar a Península a seu favor. No século V o reino suevo era muito extenso, mas por volta de 570 reduziu-se à Gallaecia e aos dois bispados lusitanos de Viseu e Conímbriga. Em 585, esse território foi conquistado pelos visigodos e incorporado ao seu Estado". (Teyssier, 1980, meus grifos)

500

Figura: A Península Ibérica em 500dc. Fonte: Projeto Euratlas, “Digital Cartography, Historical GIS Maps and Antique Maps of Europe”, http://www.euratlas.net/history/europe


800
Figura: A Península Ibérica em 800dc. Fonte: Projeto Euratlas, “Digital Cartography, Historical GIS Maps and Antique Maps of Europe”, http://www.euratlas.net/history/europe


2. O 'Português Arcaico' (das origens a 1250)


Textos fundamentais - sequência sugerida de leitura:

  1. Ilari e Basso (2009):
    Capítulo 1 ('Um pouco de história: origens e expansão do português') [p. 22-94]

  2. Matos e Silva (2006):
    Introdução [p. 13-48].

  3. Teyssier (2014[1982]):
    Capítulo 2 ('O galego-português') [p. 20-30]

  4. Castro (2004):
    Capítulo II ('Origens do português no quadro românico'), seção 6 ('Formação de um espaço nacional para a língua portuguesa') [p. 68-82];
    Capítulo III ('Português Antigo'), seção 7 ('Periodização') [p. 83-86]
Textos complementares pertinentes:

  • Castro (1991), Capítulo 3 [p. 66-161]

Além do texto complementar acima, segue válida a sugestão do material de apoio de leitura (manuais de fonética).


2. O 'Português Arcaico' (das origens a 1250) - Anotações


2.1 Formação de um espaço nacional para a língua portuguesa


2.1.1 Relembrando a história das ocupações na Península Ibérica


2.1.1.0 Resumo 'animado'

  

  
Vídeo: A Península Ibérica, -300 a 2015 - animação. Fonte: Villanueva, Fernando Díaz. Animación en mapas de la historia de España desde el año 300 antes de Cristo hasta la actualidad. Música: W. A. Mozart: Divertimento K131 by Kevin McLeod. Published under CC BY 3.0 license. Publicado em 28/12/2014. Disponível em https: // youtu.be/dQxTxCGyN3s


2.1.1.1 O ocidente setentrional: particularidades históricas da área originária do galego-português 

Galaecia

Figura: 'Camadas' na história do noroeste da Península Ibérica


2.1.1.2 O ocidente meridional: particularidades históricas da região centro-sul de Portugal


O Andaluz

Figura:  O Andaluz no século XI. Fonte: Mapa do al-Ândalus até meados do séc. XI (segundo M. Barrucand/A. Bednorz), em Ferreira, Manuel dos Santos da Cerveira Pinto. O Douro no Garb Al-Ândalus: a Região de Lamego durante a presença árabe. Tese de doutoramento, Universidade do Minho, 2004. http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/3001

Mapa-mundi de Al-Idrisi
Figura: Mapa-múndi de Al-Idrisi, ou Tabula Rogeriana (1154). Fonte: Wikimedia Commons, https://en.wikipedia.org/wiki/File:TabulaRogeriana_upside-down.jpg


Dinar, face Dinar, verso

Figura: Moeda “espanhola-andaluz” do século VIII (frente e verso). Fonte: “Dinar bilingüe, con el anverso en árabe y el reverso en latín”, Museu Prasa, Córdoba. https://numismaticamedieval.wordpress.com/category/monedas-hispanoarabes/ 


Transcrição dos dizeres na moeda:

Face

na borda:

FERITOSSOLIINSPANANXCI
(Soldo cunhado na Espanha no ano 98) 

(*98HD - 716 AD)

no centro:
estrela

Verso

na borda:

ضرب هذا الدينر بالأندلس سنة ثمان وتسعين
(Dinar cunhado em al-Andaluz no ano 98)
(Dinar cunhado em al-Andaluz no ano 98)

no centro:

سول الله     محمد ر  
(Maomé é o mensageiro de Deus)
(Maomé é o mensageiro de Deus)


poema de yussuf
Imagem: Poema de Yussuf, ou Poema de José - Exemplo de aljamia. Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes

http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/poema-de-jose--0/html/01972b58-82b2-11df-acc7-002185ce6064_2.htm

Transcrição (da mesma fonte):

Loamiento ad Alláh: el alto es e verdadero,
Honrado e complido, sennor dereiturero,
Franco e poderoso, ordenador sertero.
Grande es su poder, todo el mundo abarca;
Non se le encubre cosa que en el mundo nasca,
Siquiera en la mar ni en toda la comarca,
Ni en la tierra priera ni en la blanca. (...)

Exemplo de uma Jarcha

Yehuda Halevi (c. 1075-c.1140), Jarcha 4
(cf. Menéndez Pidal 1951:244):

Garid vos, ay yermaniellas,                              (Decid vosotras, ¡ay hermanillas!,
com' contener a mieu male                             ¡cómo resistir a mi pena!
sin el habib non vivréyu,                                 Sin el amigo no podré vivir;
advolarei demandari.                                       volaré en su busca)

(Menéndez Pidal, Ramón. Cantos románicos andalusíes: continuadores de una lírica latina vulgar. Boletín de la Real Academia Española, [s.l.], v. 94, n. 310, p. 445-530; 2015. [com fac-simile do Boletín de 1951]. Disponível em: http://revistas.rae.es/brae/article/view/87/145)

2.1.1.3 A formação do território ‘Português’ no contexto da 'Reconquista'


2.1.1.3.1 Etapas da 'Reconquista' Ibérica

Etapas da reconquista ibérica

Imagem: Fonte: EdMaps, https://www.edmaps.com/html/spain_and_portugal.html


2.1.1.3.2 Etapas da 'Reconquista' portuguesa


Etapas da 'reconquista' portuguesa (Teyssier)

Figura: Etapas da 'reconquista' portuguesa, segundo P. Teyssier. Fonte: Teyssier, 1982 (Mapa 2, p. 9).


2.1.1.3.3 Fundação do Reino de Portugal


Manifestis Probatum
Figura: Manifestis Probatum. Bula papal, Alexandre III, 1179. Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, PT-TT-BUL/16/20

Excerto:

Sabemos por evidentes sucessos que como bom filho e príncipe católico
tendes feito vários serviços à sacrossanta Igreja, vossa mãe,
 destruindo valorosamente os inimigos do nome cristão,
dilatando a fé católica por muitos trabalhos de guerra e empresas militares
[…]

Por isso nós concedemos à tua excelência e autoridade, e confirmamos por autoridade
o Reino de Portugal com a integridade das honras e a dignidade de Reino que aos reis pertence,
e também todas as terras que, com auxílio da graça celeste, arrebatares das mãos dos Sarracenos
[…].

(Tradução de Frei António Brandão, em Crónica de D. Afonso Henriques. Fonte: http://dgarq.gov.pt/files/2011/08/Bula-Manifestis-Probatum.pdf)


2.2 Do latim ao português: pontos introdutórios de fonética histórica


2.2.1 Do latim aos 'romances'


2.2.1.1 Principais mudanças fonéticas comuns aos ambientes românicos


  • Mudanças no acento tônico

    Latim clássico:

    sapere

    [sápere]

    ‘saborear, sentir o sabor’

     

     

     

     

    português:

    saber

    [sabér]

    ‘saber’, 'to know'

    castelhano:

    saber

    [sabér]

    francês:

    savoir

    [savóir]

    italiano:

    sapere

    [sapére]



  • Perda das oposições por quantidade (vogais)
    vogais tonicas lat port

  • 'Palatalização'

    a. palatalização das consoantes velares

palatalizacao velares
   Palatalização de /k/. Fonte: Ilari (1992:79)

b. surgimento de consoante palatal a partir de /i/ semivogal

lat. vulg.

sardo

rom.

it.

fr.

esp.

port.

iugu

juu

[j]

jug

[dƷ]

giogo

[dƷ]

joug

[Ʒ]

yugo

[j]

jugo

[Ʒ]

Adaptado de Ilari (1992:81)

2.2.1.2 Principais mudanças fonéticas comuns e caracterizadoras do romance ibérico


  • Mudanças no grupo consonantal <cl> medial
    cl medial
          Fonte: Teyssier (2014:13)

  • Mudanças no grupo consonantal <ct> medial
    ct medial
        Fonte: Teyssier (2014:13)


  • Mudanças nos grupos consonantais <cl>, <pl>, <fl> iniciais
    cl pl fl iniciais
         Fonte: Teyssier (2014:15)


2.2.2 Os romances ibéricos: as fronteiras norte/sul e as fronteiras ocidente/oriente 


Pontos mais importantes a debater:

  • Na dialetologia ibérica observam-se dois tipos principais de fronteiras dialetais: fronteiras que separam os dialetos ao longo de linhas marcadas do oriente para o ocidente da Península (ou seja, do leste para o oeste) e fronteiras que separam dialetos em camadas graduais do norte para o sul da Península:

    • As fronteiras latitudinais podem ser associadas a processos mais antigos de dialetação, ligados ao processo de romanização nas diferentes regiões. 
    • As fronteiras longitudinais podem ser associadas a processos posteriores de dialetação, ligados às subsequentes etapas de ocupação dos territórios ao sul de cada reino medieval, na chamada 'Reconquista' ibérica. 
    • Por conta dessas contingências históricas, podemos notar que as fronteiras dialetais latitudinais são mais marcadas, e correspondem, em larga medida, à divisão da Península em 'línguas nacionais'; em contraste, as fronteiras dialetais longitudinais podem ser mais graduais, e, em larga medida, têm o estatuto de fronteiras dialetais no interior de cada 'língua nacional'.

Distribución de idiomas en la Península. Fonte: Echeverría, L. Martín. Geografia de España. Labor: Barcelona; 1928. p. 134.

Imagem: Distribución de idiomas en la Península. Fonte: Echeverría, L. Martín. Geografia de España. Labor: Barcelona; 1928. p. 134.


    • Na dialetologia portuguesa, essas características da distribuição longitudinal/latitudinal das áreas dialetais se agudizam, de modo que a fronteira mais marcada separa os dialetos do 'galego-português' de norte a sul de modo a corresponder quase exatamente à fronteira nacional entre Portugal e o centro-oriente da Península (à exceção do extremo noroeste dessa área dialetal, que fica fora da fronteira nacional, pois corresponde ao território da Galícia, atual região autônoma da Espanha), e as fronteiras dialetais 'internas' se configuram como 'camadas' de norte a sul do território, correspondentes às diferentes etapas da 'Reconquista portuguesa' - ou seja, às diferentes etapas da ocupação do território ao sul do reino de Portugal original.


    2.2.3 Pontos relevantes na dialetologia portuguesa (uma introdução)


    2.2.3.1 Fronteiras mais importantes entre a área dialetal do galego-português e as demais áreas dialetais da Península


    - Supressão do /l/ e /n/ latinos intervocálicos 

    exs. (lat > port):
    malu > maufilu > fiodolore > dor, colore > cor,  
    coron> coroalun> lua, manu > mão 


    - Manutenção das vogais breves latinas sem ditongação ('fronteira da ditongação')

    exs (port  vs. esp):
    - terra (vs. tierra), pedra ( vs. piedra), dente (vs. diente)
    - cova (vs. cueva), morte (vs. muerte), nove (vs. nueve)

    Fronteira dos dialetos galego-portugueses
    Figura: Alguns traços fonéticos diferenciadores dos dialetos galego-portugueses.  Fonte: Cintra, Luís Filipe Lindley. Nova proposta de classificação dos dialectos Galego-portugueses. Boletim de Filologia, vol. XXII: 81-116; 1970. Edição digital do Instituto Camões disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/hlp/biblioteca/novaproposta.pdf ('Mapa 1', p.16)


    2.2.3.2 Fronteiras mais importantes no interior da áreas dialetal do galego-português


    Classificação dos dialetos galego-portugueses

    Figura: Classificação dos dialetos galego-portugueses.  Fonte: Cintra, Luís Filipe Lindley. Nova proposta de classificação dos dialectos Galego-portugueses. Boletim de Filologia, vol. XXII: 81-116; 1970. Edição digital do Instituto Camões disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/hlp/biblioteca/novaproposta.pdf ('Mapa 2', p.17)


    Exemplo de diferenciação dialetal importante no eixo norte-sul, na área dialetal do galego-português - as sibilantes

    Quadro: A pronúncia das sibilantes na área dialetal do galego-portuguêsAs sibilantes no galego-português


    Pronúncia das sibilantes, destacadas no Mapa 2 de Cintra (1970)

    Figura: Pronúncia das sibilantes, destacada no Mapa 2 de Cintra (1970).



    2.3 A produção "primitiva" em português


    2.3.1 "Essa titubeante invenção de escrever português": a Notícia de torto


    NT1

    Imagem: Fac-simile: Notícia de Torto. [c. 1214-1216?]. Fonte: Portugal, Torre do Tombo, Ordem de São Bento, Mosteiro do Salvador de Vairão, mç. 2, doc. 40. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, http://digitarq.arquivos.pt/details?id=1461698

    https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4609343/mod_book/chapter/21810/PT-TT-MSV-003-0002-00040_m0002.jpg

     

    Transcição e análise:
    cf. Notícia de Torto: Edição (Moodle do curso de Filologia Portuguesa)
    cf. Notícia de Torto: Comentário linguístico (Moodle do curso de Filologia Portuguesa)


    Ivo Castro,  (2004:22 e ss), meus grifos:

    "... embora na chancelaria real portuguesa ainda continuasse durante mais meio século a ser observado o costume de escrever em latim os documentos formais, destinados a assumir carácter oficial e a perdurar no tempo (costume quebrado no caso do testamento de 1214, por razões que os historiadores um dia encontrarão), já era uso, no início do séc. XIII, escrever em português certos textos de carácter efémero, tais como apontamentos, mensagens pessoais, rascunhos, minutas, que pela sua natureza muito poucas possibilidades tinham de sobreviver, ou de carácter informal, como a notícia, que  mesmo quando sobrevive é difícil de situar cronologicamente. Em tais exercícios se adestraram os escribas da casa real para escrever em português. Aqui abre-se uma perspectiva aliciante, que não tenho possibilidade de explorar neste trabalho: a caracterização da "ortografia individual" de cada escriba talvez permita vislumbrar a proveniência do seu aprendizado e determinar se aprenderam a escrever romance em ambientes de influência castelhana ou leonesa. (...)

    Um desses textos informais ou efémeros, contudo, chegou até nós. A Notícia de Torto tem sido considerada pela maioria dos autores uma minuta portuguesa de documento que, em forma limpa e final (mundum), seria escrita em latim. Por acidente histórico não explicado, foi a minuta que sobreviveu e não o produto final, se esse chegou a existir". (...)

     "... o escriba era mais um leitor que um profissional da escrita e não tinha, para todos os problemas, soluções gráficas adquiridas e enraizadas, ao contrário dos seus contemporâneos da chancelaria real. Deixava-se guiar pela análise que caso a caso ia fazendo do que ouvia, do que lhe era ditado.  Daí grande parte do seu interesse para o linguista, porque a espontaneidade e a hesitação da sua mão deixam entrever factos da língua oral que um escriba habitual e formal teria filtrado e que se tornam, assim, naqueles momentos raros em que vemos ‚falar um documento antigo. O seu recurso às grafias de /d[/, por exemplo, constitui um precioso testemunho de que este fonema ainda existia no português de inícios do séc. XIII"

    "Esta caracterização não  deveria  surpreender:  o escriba da  Notícia de Torto não trabalhava para o rei de Portugal, nem para um comendador da ordem do Templo, mas para um fidalgo arruinado do Minho,  Lourenço Fernandes da Cunha, que não possuía chancelaria, nem escriba decente ou profissional, mas apenas aquilo a que hoje chamamos uma ‚mão inábil. Essa titubeante invenção do escrever português, essa escrita não totalmente formada e adquirida, é fascinante em si mesma e, por contraste, põe em destaque quanto a prática dos copistas da corte era adquirida, longa e hábil"


    2.4 Um bom resumo deste ponto:


    "O ciclo da Formação [da língua portuguesa] desenrola-se a partir da introdução de algumas mudanças muito extensas na língua falada no território inicial da Galécia Magna, língua que, entre os sécs. V-VII, era ainda uma variedade de latim oral. Simplificando, diremos que duas consoantes muito frequentes iniciam um processo de apagamento quando se encontram em posição intervocálica, o que teve como consequência que todas as palavras que as possuíam mudaram drasticamente de aspecto sonoro. (...) Estes dois fenómenos semelhantes produziram-se apenas na Galécia Magna e afectaram o latim aí falado, que passou assim a distinguir-se tanto do latim falado no centro da Península, que daria origem ao castelhano e ao leonês, como do latim falado a sul, na Lusitânia., a que, por respeito pela área em que ocorreu, se pode chamar galego-português. Essa diferença entre a língua da Galécia Magna e as suas vizinhas mais chegadas talvez tenham sido o acto de nascimento da nossa língua". 

    (Castro, 2004:85).


    3. O 'Português Arcaico' (1250-1500)


    Textos fundamentais - sequência sugerida de leitura:

    1. Ilari e Basso (2009):
      Capítulo 1 ('Um pouco de história: origens e expansão do português') [p. 22-94]

    2. Matos e Silva (2006):
      Introdução [p. 13-48].

    3. Teyssier (2014[1982]):
      Capítulo 2 ('O galego-português') [p. 20-30]

    4. Castro (2004):
      Capítulo II ('Origens do português no quadro românico'), seção 6 ('Formação de um espaço nacional para a língua portuguesa') [p. 68-82];
      Capítulo III ('Português Antigo'), seção 7 ('Periodização') [p. 83-86]
    Textos complementares pertinentes:

    • Castro (1991), Capítulo 3 [p. 66-161]

    Além do texto complementar acima, segue válida a sugestão do material de apoio de leitura (manuais de fonética).


    3.1 Da produção primitiva à corte de D. Duarte 


    Leal Conselheiro

    D. Duarte I. Leal conseelheiro, Livro da enssynança de bem cavalgar toda sela. Manuscrito; 1401. Facsímile digital, Bibliothèque nationale de France. Fl. 3r. Disponível em:  https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b60004002/f15.image


    Quadro: Marcos históricos e ciclos da produção escrita no período medieval

    Quadro produção escrita PA

    "A produção frequente de documentos em português é conhecida a partir da segunda metade do séc. XIII: em 1255 começam a ser escritos em português alguns dos documentos saídos da chancelaria de Afonso III, embora uma parte se mantenha em latim, e é só em 1279, com D. Dinis, que se torna sistemático o uso do português como língua dos documentos emanados da corte, uso que progressivamente é imitado pelos restantes centros produtores". (…)

    "Ou seja: na verdade é apenas nos dez últimos anos do reinado de Afonso III, e precedendo a sua oficialização no reinado seguinte, que se alarga e consolida o uso escrito da língua portuguesa nos documentos do governo, após experiências que têm de ser consideradas como esporádicas. Como, afinal, todas as outras experiências anteriores de que temos tido conhecimento". (Castro, 2004) 

    "D. Dinis teve um longo reinado e uma chancelaria muito produtiva. Não dispomos de números absolutos que nos permitam apresentar os quantitativos de atos redigidos pela chancelaria deste soberano. O Livro II da sua chancelaria, já mencionado, arrolando atos sobremodo para os anos de 1291 a 1295, posto que com alguns diplomas de anos anteriores e posteriores, compila um total de 542 diplomas. Bernardo Sá Nogueira referenciou um corpo documental dionisino, nos livros de registo da chancelaria deste monarca, composto por 2950 atos. O mesmo autor contabilizou 1343 apresentações de clérigos em igrejas de padroado real para os anos de 1279 a 1321. No antigo cartório do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, hoje na Torre do Tombo, de todos os reis medievais portugueses, é D. Dinis o que mais se documenta em número de diplomas subsistentes". (Gomes, 2013)

    "O reinado dionisino foi suficientemente longo para que o monarca português pudesse concretizar uma sequência de iniciativas e de actos políticos que permitiram fizar e institucionalizar alguns dos aspectos fundamentais do país nos 700 anos seguintes. Em termos de política externa há que destacar a assinatura do Tratado de Alcanices em 1279; em termos de política interna, o impulso dado a aspectos do desenvolvimento económico do reino, a criação dos Estudos Gerais em 1290, a nacionalização das Ordens militares, com a criação da Ordem de Cristo, o lançamento das bases de uma verdadeira administração interna contextualizada pela difusão crescente da influência do direito romano, que será factor funcamental para a estruturação do Estado e para o progressivo afastamento de uma configuração estritamente senhorial, como se tornará mais evidente no séc. XV". (...)

    "Este movimento deve ser visto na sua sequência histórica. D. Afonso III seguira uma estratégia de domesticação da fidalguia, favorecendo uma nobreza de corte, submissa e fiel, aspecto com que de certeza se devem relacionar tanto o impulso dado ao cultivo da poesia galego-portuguesa, agora cada vez mais acolhida na corte do rei, ao invés do que sucedera até então, como a tradução para português da Demanda do Santo Graal, toda ela imbuída de dimensões doutrinais das quais a menor não terá sido certamente o exemplo da corte arturiana, onde o rei aparecia servido por uma aristocracia guerreira submissa. Mas o interessante é notar que, se em 1319 [?] o infante D. Afonso incuía no seu grupo de apoiadores elementos da fidalguia de corte, da segunda ou terceira nobreza e sobretudo filhos segundos ou bastardos, nomeadamente da área a norte do Mondego, D. Dinis aparece-nos buscando o apoio dos concelhos por um lado e, por outro, de alguns elementos de uma fidalguia menor, mas que tem a característica de se centrar na área de Lisboa".  (Osório, 1993)

    Textos complementares citados:  

    GOMES, Saul António. A chancelaria régia de D. Dinis: breves observações diplomáticas. In Fragmenta Historica:  História, Paleografia e Diplomática, Centro de Estudos Históticos/FCT, 2013.

    OSÓRIO, Jorge A. D. Dinis: o rei, a língua, e o reino. Máthesis 2, 1993.


    3.2 A questão da "elaboração da língua"


    Duarte Nunes de Leão, Origens da Lingua Portuguesa, 1606:


    “VI. A Língua que se hoje fala em Portugal donde teve origem,
    e porque se chama Romance”

    “Temos dito atrás, como pelas muitas e desvairadas gentes que a Espanha vieram povoar e negociar, estava a terra toda dividida em muitos reinos e senhorios, e assim havia muitas diferenças de linguagens e costumes. Pelo que vindo os Romanos a lançar de Espanha aos Cartagineses que ocupavam grande parte dela, foi-lhes fácil haver o universal senhorio de todos, e reduzir Espanha em forma de província como fizeram, dos quais como de vencedores não somente os espanhóis tomaram o jugo da obediência mas as leis, os costumes, e a língua Latina, que naqueles tempos se falou pura como em Roma, e no mesmo Lácio, até a vinda dos Vândalos, Alanos, Godos e Suevos, e outros bárbaros que aos Romanos sucederam, e corromperam a língua Latina com a sua, e a misturaram de muitos vocábulos assim seus como de outras nações bárbaras que consigo trouxeram, de que se veio fazer a língua que hoje falamos, que por ser língua que tem fundamentos da Romana, ainda que corrupta lhe chamamos hoje Romance. Desta introdução da língua Latina, que os Romanos fizeram em Espanha, e como de muitas nações e vários costumes, se vieram a conformar, e parecer tudo um povo de Romanos, é testemunha a mesma língua que hoje falamos, ainda que corrupta”. 

    (Lião 1606:26, minha edição)


    “Vindo pelos tempos, como é natural, haver mudança nos estados, e declinar o Império Romano, veio à Espanha a inundação dos Godos, Vândalos, e Sitingos, e de outras gentes bárbaras, que devastaram Itália, e as Gálias, e dominaram Espanha, e com sua bárbara língua corromperam a Latina, e a misturaram com a sua da maneira que se vê nos livros e escrituras antigas; que pelo tempo foi esta língua fazendo diferença nas Províncias de Espanha, segundo as gentes a vieram habitar. Depois desta barbária que se introduziu, veio a perdição de toda Espanha, que os Mouros assolaram, e destruíram, entre os quais ficaram os Espanhóis uns cativos, e outros tributários por partidos que de si fizeram, para lhes lavrarem as terras como seus ascrípticos, e inquilinos. E vivendo entre eles, corromperam ainda mais a língua meio Gótica e meio latina que falavam, tomando outros vocábulos dos Mouros, que ainda hoje nos duram. Depois deste cativeiro, vindo-se recuperar muitos lugares de poder dos Mouros, pelas relíquias dos Cristãos que da destruição dos Mouros escaparam nas terras altas de Viscaia, Astúrias e Galiza. E fazendo cabeças de alguns senhorios ficou aquela língua Gótica, que era comum a toda Espanha, fazendo alguma divisão e mudança entre si, cada um em sua região, segundo era a gente com que tratavam, como os de Catalunha que por àquela parte vir el Rei Pipino de França com os seus ficou naquela província sabor da língua Francesa, e se apartou lhes ficou notável diferença entre ela, e a língua de Castella, e das de Galiza e Portugal, as quais ambas eram antigamente quase uma mesma, nas palavras, e nos ditongos e pronunciação que as outras partes de Espanha não tem.

    Da qual língua Galega a Portuguesa se avantajou tanto, quanto na cópia e na elegância dela vemos. O que se causou por em Portugal haver Reis, e corte que é a oficina onde os vocábulos se forjam, e pulem, e donde manam para outros homens, o que nunca houve em Galiza.

    Era a língua Portuguesa na saída daquele cativeiro dos Mouros mui rude, e mui curta, & falta de palavras, e cousas, por o mísero estado, em que a terra estivera: o que lhe conveio tomar de outras gentes, como fez. Polo que sua meninice foi no tempo del Rei dom Afonso VI, de Castela, e no do Conde dom Henrique até o del Rei dom Dinis de Portugal que teve alguma policia, e foi o primeiro que pos as leis em ordem, e mandou fazer compilação delas, e compôs muitas cousas em metro à imitação dos Poetas Provençais, como se melhorou a língua Castelhana em tempo del Rei dom Afonso o sábio seu avô, que mandou escrever a crônica geral de Espanha, e compilar as sete partidas das leis de Castela, obra grave, e mui honrada, posto que rude nas palavras, como também mandou traladar muitos autores da língua latina na Castelhana.

    E assi se foram ornando ambas as línguas, Portuguesa e Castelhana até a policia em que agora estão.” 

    (Lião, 1606:30-33; minha edição, meus grifos)




    "Discute-se se o galego e o português fizeram caminho juntos durante muito ou pouco tempo. (...)

    Como seria na Idade Média? Os trovadores - galegos, portugueses e castelhanos - escreviam todos na mesma língua, mas era uma língua artificial e não necessariamente a língua que cada um falava. Nessa língua literária, (...), não se observam traços que apontem para uma separação regional, mas dificilmente os poetas, ao falar, usariam dessa língua unificada. Pode ser que o galego e o português já estivessem a se separar.

    De qualquer forma, a sua separação definitiva ocorreu no final do ciclo em exame, através de um episódio intercalar de elaboração da língua, processo coincidente e decerto relacionado com as grandes alterações sociais e políticas já referidas. (...)

    Enquanto o centro-sul se torna cada vez mais influente, o norte de Portugal perde o estatuto de berço do reino e passa a ser visto como uma província distante. E a Galiza, com a qual tem as maiores afinidades, torna-se ainda mais distante. As transformações que o português então sofre afastam-no da matriz medieval galego-portuguesa (...).

    Na soma dessas mudanças reconhece-se um processo de elaboração linguísticaum acto de recusa das origens com o qual a língua portuguesa atinge o fim do seu período de formação e de crescimento, que precede um pouco o final da Idade Média". (Castro, 2004:86-87, grifo meu)


    3.3 Resumo do "ciclo de formação da língua" (cf. Castro, 2004)

    Ivo Castro afirma que a história da língua portuguesa é fundamentalmente marcada por sucessivos ciclos de expansão que refletem “a história da ocupação do território, a formação do estado e os grandes movimentos da nação”:

    "O primeiro movimento a considerar pode ser apresentado como uma transplantação inicial da língua, que parte de sua área inicial na Galecia Magna para se derramar pelo resto do território europeu, onde se sobrepõe ao árabe que as populações reconquistadas falavam. O segundo movimento, igualmente para o sul, consiste em um salto para fora da Europa. Com as Descobertas, a língua instala-se em ilhas atlânticas desabitadas, nos litorais africano e asiático que ofereciam suporte às rotas marítimas, e ainda no litoral brasileiro".(...)

    "Estes dois movimentos sucessivos de crescimento da língua portuguesa permitem-nos reconhecer a presença e a acção de dois ciclos evolutivos, separados por uma cesura no séc. XV:

    a)  ciclo da Formação da Língua, que decorre entre os sécs. IX e XV na esteira da Reconquista do território dos árabes; os povos do norte transplantaram a sua língua para o sul, onde ela se transformou pelo contacto com a língua local e ganhou, a partir do séc. XV, ascendente sobre os dialectos do norte, tornando-se base de uma norma culta de características meridionais, que seria vista como a língua nacional;

    b)  o segundo ciclo é o da Expansão da Língua: o período do séc. XV a inícios do séc. XVI é aquele em que a língua mais radicalmente se transfigura. Enquanto se reestruturava e consolidava dentro de portas, a língua portuguesa começa a expandir-se para fora da Europa, pelo que, a partir de então, é preciso distinguir entre português europeu e português extra-europeu.

    ciclo da Formação desenrola-se a partir da introdução de algumas mudanças muito extensas na língua falada no território inicial da Galécia Magna, língua que, entre os sécs. V-VII, era ainda uma variedade de latim oral. Simplificando, diremos que duas consoantes muito frequentes iniciam um processo de apagamento quando se encontram em posição intervocálica, o que teve como consequência que todas as palavras que as possuíam mudaram drasticamente de aspecto sonoro. (...) Estes dois fenómenos semelhantes produziram-se apenas na Galécia Magna e afectaram o latim aí falado, que passou assim a distinguir-se tanto do latim falado no centro da Península, que daria origem ao castelhano e ao leonês, como do latim falado a sul, na Lusitânia., a que, por respeito pela área em que ocorreu, se pode chamar galego-português. Essa diferença entre a língua da Galécia Magna e as suas vizinhas mais chegadas talvez tenham sido o acto de nascimento da nossa língua". 

    (Castro, 2004:84-85).