I. Presença da língua portuguesa no mundo

Site: Moodle USP: e-Disciplinas
Curso: FLC0114 - Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa I (Maria Clara, 2019, 21:00)
Livro: I. Presença da língua portuguesa no mundo
Impresso por: Usuário visitante
Data: domingo, 22 dez. 2024, 03:03

Descrição

Planisferio de Cantino

Anotações sobre o Tópico I do curso


1. Introdução

Quase me apetece dizer que não há uma língua portuguesa, há línguas em português.
É uma língua que tinha que passar, inevitavelmente, por transformações, segundo os lugares onde a falam, as culturas e as influências.
Mas isso não tira nada a evidência de que se trata do corpo da língua portuguesa.
É um corpo espalhado pelo mundo
.” 

José Saramago

(em Lopes, 2013)

Neste tópico introdutório, falaremos sobre a presença da língua portuguesa no mundo, o que é um ótimo assunto para se começar a pensar nos principais aspectos a serem tratados ao longo de um curso em torno do 'Estudo da língua portuguesa'. De fato, o ser "um corpo espalhado pelo mundo" (nas palavras de José Saramago, em Lopes, 2003) é a característica que marca centralmente o português como língua histórica, e são os debates em torno das origens e os condicionamentos desse 'espalhamento' que marcam e diferenciam também a linguística do português. 

Para começar a pisar no vasto território das reflexões que têm sido construídas em torno do fenômeno da presença da língua portuguesa nos quatro continentes, vamos nos guiar pelas reflexões trazidas por Rosa Virgínia Mattos e Silva, em Mattos e Silva (2002[1987]), e nos apoiaremos também na breve descrição da geografia da língua portuguesa preparada por Celso Cunha e Lindley Cintra, em Cunha e Cintra (2009[1984]). Para quem quiser se aprofundar nos assuntos trazidos por este ponto, sugiro ainda a leitura complementar do Capítulo 2 de Castro (1991).

Diversidade e Unidade são os fios escolhidos por Mattos e Silva (2009[1984]) para tecer seu precioso panorama sobre a história da língua e sua situação contemporânea. De fato, como veremos ao longo do curso, Diversidade e Unidade tem sido vetores das inúmeras discussões em torno do português histórico desde os primórdios da reflexão científica em torno da língua. Neste momento inicial, tocaremos apenas de longe algumas das questões mais importantes tratadas por esta reflexão, para mais adiante voltarmos a elas com maior profundidade.

Evidentemente, as origens tanto de um como de outro ponto do vetor - ou seja, as origens da diversidade do português de um lado, e de sua diversidade de outro - só podem ser entendidas como ancoradas em acontecimentos políticos e sociais ao longo da história dos territórios onde o português é falado hoje. É por isso que, no começo do curso, estaremos dedicados a compreender esses condicionantes históricos e sociais - ou seja, à chamada 'sócio-história' da língua - para apenas mais adiante tratarmos dos aspectos linguísticos mais específicos que tem merecido a atenção da área.

Como material complementar para nos ajudar nesse começo de viagem, recomendo que vejam o filme Vida, Línguas em português (Lopes, 2003), pois debateremos juntos alguns dos depoimentos interessantes que ele mostra (há uma seleção desses trechos na seção Vidas em português). 


Referências bibliográficas

Cunha CF, Cintra LFL. Nova gramática do português contemporâneo. 5ª ed. Rio de Janeiro, Lexikon Editorial; 2009 [1ª ed. Lisboa: Sá da Costa; 1984]. 

Mattos e Silva RV. Diversidade e unidade: a aventura linguística do português. Revista ICALP.  2002;1:1-29.

Castro I. Curso de história da língua portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta; 1991.

Lopes V, diretor. Língua: vidas em português. [filme]. Rio de Janeiro: Riofilme; 2003.



2. 'Vidas em português'

Trechos para Discussão do Filme:
Língua, Vidas em português

(Lopes, 2013)


“Eu acho que a língua portuguesa é hoje talvez uma das línguas europeias com maior vivacidade, com maior dinamismo. Não por causa de nenhuma essência especial do Português, mas por causa de uma razão histórica que aconteceu ao Brasil, em que, digamos, Portugal deu origem a um filho maior que o próprio pai. A língua passou a ser gerida por outros mecanismos de cultura. Depois acontecerem outros países africanos que introduziram na Língua Portuguesa alguns fatores de mudança, coloração, que tornam o português hoje realmente uma língua que aceita muito, que é capaz de introduzir tonalidades, variações, que enriquecem muito a língua portuguesa, não só do ponto de vista linguístico, mas o quanto ela pode traduzir culturas.”
(Mia Couto, escritor, Moçambique)

“O que foi notável foi depois, num processo histórico, que está para além da língua, como é que estas culturas se mestiçaram e, a certa altura, o português perdeu o dono, quer dizer, ficou sem dono. Felizmente. E namorou, e namorou no chão, e namorou na poeira do Brasil, e namorou também aqui, na poeira de Moçambique. Quer dizer, sujou-se, no sentido que o Manoel de Barros dá. Sujou-se nesse sentido em que é capaz de casar com o chão.”
(Mia Couto, escritor, Moçambique)

“Nós falamos e usamos tudo isso, os substantivos, os verbos, os adjetivos, as conjunções. Tudo, digamos, usamolo como se isso tivesse existido sempre. A linguagem passou com certeza, digamos, de um estado rudimentar e pouco a pouco vai se tornando mais complexa. Vai sendo capaz de exprimir sentimentos, emoções. O que significa que quantas mais palavras conhecemos, mais somos capazes de dizer o que pensamos e o que sentimos. No século XVII houve um homem chamado Antônio Vieira, Padre Antônio Vieira, que viveu no Brasil, que defendeu os índios, foi diplomata, foi orador. Diz ele o seguinte: “São as afeições, como as vidas, que não há mais certo sinal de terem de durar pouco, que terem durado muito.” Ora bem, isso pode dizerse de uma maneira muito mais simples: “as vidas e as afeições, os afetos, os amores, quanto mais tiverem durado, mais perto estão de deixar de durar.” Devemos nós falar de uma maneira tão complicada na nossa comunicação cotidiana? Provavelmente não, claro, mas talvez nessa época, e é certo, o modo de comunicar-se era muito mais rico de expressão do que é hoje. E cada vez temos menos palavras, cada vez usamos menos palavras. Quer dizer, no tempo em que nós vivíamos nas cavernas e não conhecíamos nem os verbos e nem os substantivos, mas fazíamos “ohn, hem, ohn” e com isso nos entendíamos, suponho eu que nos entendíamos, e, sim, acabavam por se entender, evidentemente. E foi com esses sons iniciais, primitivos, que foram construindo a linguagem. Os idiomas, as línguas, tudo isso foi construído assim. Parece que estamos num processo de involução, em que estamos a voltar às cavernas. Se calhar, estamos/ qualquer dia começamos/ enfim, pra dizer a uma mulher, enfim, que se gosta dela, somos capazes de dizer “ohn, ohn” qualquer coisa assim. E ela ficará muito contente, porque lhe disseram, desta maneira um pouco estranha, que é amada.”
(José Saramago, escritor, Portugal)

“Nós temos sempre necessidade de pertencer a alguma coisa. E parece que a liberdade plena seria a de não pertencer a coisa nenhuma, mas como é que se pode não pertencer à língua que se aprendeu, à língua com que se comunica, a língua com que, neste caso, com que se escreve? Se o leitor, se o leitor de livros, aquele que gosta de ler, não se limitar àquilo que se faz agora, se ele andar pra trás, se ele começar do princípio, se ele pode ler os primitivos, e os grandes cronistas e depois os grandes poetas, a língua passa a ser algo mais que um mero instrumento de comunicação. Transforma-se numa, digamos, numa mina inesgotável de beleza e de valor. Pensemos que são, no nosso caso, oito séculos de pessoas a falar português e a escrever português. Muita coisa se perdeu, evidentemente, mas aquilo que ficou, aquilo que sobrou, aquilo que os arquivos e as bibliotecas guardam, dava pra passar lá a vida inteira, mergulhado na Língua Portuguesa.”
(José Saramago, escritor, Portugal)

“A primeira vez que estive no Rio foi em 86. Vinha muito inflamado, trazia Os Lusíadas, e não fazia muito sentido ler Os Lusíadas aqui.”
 (Pedro Ayres Magalhães, músico, Portugal)

“Nós portugueses gostamos de nos reconhecer nos brasileiros e vice-versa, quando simpatizamos uns com os outros e acho que isso é comum. Também não posso dizer que haja uma identificação total, porque são culturas totalmente diversas. E o Brasil é um país multicultural, é enorme, como eu dizia, e penso que tem tradições de culturas muito diferentes de norte ao sul. Portugal também é assim, mas é um país muito mais pequeno. Mas entre Portugal e o Brasil embora falando o mesmo idioma eu acho que isso também é aquilo que nos liga, não é. Falamos a mesma língua, mas ela não é falada da mesma maneira. E penso que quando estamos nos comunicando, sentimos isso, não é, essa vontade de aproximação e, ao mesmo tempo a distância que existe entre as duas maneiras de ser.”
(Teresa Salgueiro, cantora, Portugal)

“Me chamaram pra falar no Congresso, sobre a defe/, eu não vou não. E falar sobre a língua nacional. Eu não sou filólogo, eu não sou linguista, não sou um estudioso no assunto, sou apenas um usuário da língua. A que futuramente tenderá a ser a língua brasileira está evoluindo muito, e se tornou uma língua muito diversa, em certas áreas do que você poderia chamar chamar português padrão.”
(João Ubaldo Ribeiro, escritor, Brasil)

“Nós temos uma pluralidade de culturas e subculturas que Portugal não tem, pelo nosso tamanho e pela nossa história. Nós fomos colonizados por Portugal, mas recebemos vastas levas de povos de outra origem.”
(João Ubaldo Ribeiro, escritor, Brasil)

“Nós estamos importando não só vocabulário, mas nós estamos importando também a sintaxe americana, a maneira de pensar americana, a maneira de colocar o raciocínio. Isso é que é gravíssimo. Hoje você encontra a composição do futuro no Brasil, pelo menos na juventude, como se o nosso futuro fosse composto. 'Eu vou sair', quer dizer 'eu sairei', mas 'eu vou ir' é um pouco demais, né? Mas você ouve 'porque nós vamos ir na festa depois, primeiro nós vamos ir no cinema', é, é 'we will go'. Até isso (es)tá indo embora, (es)tá virando tempo composto em português brasileiro. Mas a verdade incontestável é que, se as línguas não mudassem, nós todos estaríamos falando latim até hoje, né?”
(João Ubaldo Ribeiro, escritor, Brasil) 

“Gostaria de exaltar em bom tupi, as belezas do meu país. Que seria a língua que nós deveríamos de falar como a língua do Brasil. Assim como tem as línguas moçambicanas, o crioulo da Guiné e de São Tomé e de Cabo Verde, tem os kimbundos e os umbundos e kicongos de Angola.”
(Martinho da Vila, cantor e compositor, Brasil)

“Quase me apetece dizer que não há uma língua portuguesa, há línguas em português. É uma língua que tinha que passar, inevitavelmente, por transformações, segundo os lugares onde a falam, as culturas e as influências. Mas isso não tira nada a evidência de que se trata do corpo da língua portuguesa. É um corpo espalhado pelo mundo.” 
(José Saramago, escritor, português)


Referências bibliográficas

Lopes V, diretor. Língua: vidas em português. [filme]. Rio de Janeiro: Riofilme; 2003.

3. Diversidade e Unidade: A Aventura Linguística do Português

Mattos e Silva RV. Diversidade e unidade: a aventura linguística do português. Revista ICALP.  2002;1:1-29.


Apontamentos

"A par dos estatutos sócio-políticos diversos mencionados, as configurações linguísticas internas que assume a língua portuguesa nos diversos lugares em que é utilizada são de natureza também diferenciada, decorrente da história própria que viveu a língua, a depender dos factores externos - históricos, sociais, geográficos, demográficos - que determinaram a sua difusão e implantação, em cada um desses locais. Assim sendo, a variação social e a variação espacial da língua têm feições típicas em cada um deles. Sobrepondo-se a essa variação, as normas sociais, configuradas a partir de determinado dialecto de prestígio sócio-político e cultural, considerado standard ou modelo para a sociedade de cada local, também são diferenciadas. / A esse entrecruzar-se de dialectos sociais, espaciais e de normas linguísticas impõem-se as normas específicas da língua escrita que neutralizam muitas das diferenças da fala quotidiana, mas estão longe de anulá-las. A espinha dorsal que, entretanto, une todas essas diferenças se capta em um nível de abstracção maior, que é do sistema de regras comuns que subjaz a essas diferenças, e que dá suporte a que, enquanto fenómeno histórico se possa afirmar que nesses diferentes pontos do globo está, ali, a língua portuguesa e não outra língua". Mattos e Silva, 2002:2.

"...quando se fala de língua portuguesa una, na diversidade de suas manifestações, tem-se em mente - por um lado - a estrutura comum que está na base das suas diversificadas realizações e por outros os factores históricos que a unem e a definem como tal". Mattos e Silva, 2002:4.

"Contrapondo-se à diversidade interna das variantes europeia e brasileira da língua portuguesa, poder-se-ia afirmar, com base no conhecimento científico existente dessas duas variantes de um mesmo sistema linguístico, que a diversidade horizontal em detrimento da vertical pesa mais no português europeu, enquanto no Brasil o contrário se verifica". Mattos e Silva, 2002:23.

"Independentemente dos questionamentos que sobre ela façam, a língua portuguesa viva e sã, e acredito que mais viva do que nunca, floresce no Brasil e se assume, não apenas na sua literatura forte, mas na voz a ser ouvida de cada brasileiro, qualquer que seja sua origem geográfica ou social. Com ela reforça-se a língua portuguesa no seu todo, lusitana ou africana. Diversa e una, em momento de liberdade, revendo criticamente a coerção normativa homogeneizadora, dominante outrora, sempre a esgueirar-se por frestas académicas, a aventura linguística que se definiu historicamente com Afonso Henriques no século XII continua o seu percurso e se afirma como uma das línguas mais usadas no mundo" . Mattos e Silva, 2002:29.


Navegando o texto a partir de alguns conceitos importantes


'Primeira parte'

1. Introdução: língua, 'grammar/language', 'langue/parole'; língua histórica; variante; dialeto; norma linguística; dialeto de prestígio; comunidade de fala; norma oficial; língua de cultura; dialectos diatópicos, dialectos diastráticos, dialectos diacrônicos; dialeto standard; línguas ágrafas; dialeto escrito. 

2. Da diversidade original ao estabelecimento da norma no século XVI:  variação dialetal, multilinguismo, dialetos de transição, dialetos veiculares; 'vulgar', 'vulgares', 'língua vulgar' (sécs. XVI-XVII). 


'Segunda parte'

1. Introdução: dialetologia; mapa dialetal diatópico; Atlas Linguístico; estudos dialetais horizontais; dialetos literários, dialeto de escola; Sociolinguística; contato entre línguas.

2. Glotocídios e nascimentos linguísticos na história da difusão do português pelo mundo:  glotocídio; línguas indígenas, línguas autóctones; plurilinguismo, bilinguismo, unilinguismo; língua majoritária, língua materna, língua estrangeira, língua nacional, língua oficial; pidgin, crioulos, línguas crioulas; (pidgin de) base portuguesa, língua de intercurso, crioulos de base portuguesa.

3. O português do Brasil, língua nacional: língua nacional; minorias linguísticas; política linguística; língua geral, língua geral da costa; língua dominante, nacional e oficial; derivas. isófonas; nivelamento fonético; variação diatópica, variação diastrática, diversidade sociolinguística. 

4. A diversidade e a norma no Brasil do fim do século XX: norma culta, Norma Urbana Culta, norma de prestígio; normas linguísticas em realização, usos linguísticos socialmente controlados; coerção normativa.


Material de apoio interessante para este texto

Página 'Geografia da Língua Portuguesa' no Instituto Camões:
http://cvc.instituto-camoes.pt/hlp/geografia/index.html